domingo, 24 de novembro de 2019

Pedagogia do Oprimido - A Concepção “BANCÁRIA” e a Contradição Educador-Educando (2)



Paulo Freire








“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar 









AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica




A Concepção “BANCÁRIA” e a Contradição Educador-Educando (2)





Esta concepção “bancária” implica, além dos interesses já referidos, em outros aspectos que envolvem sua falsa visão dos homens. Aspectos ora explicitado, ora não, em sua prática.

Sugere uma dicotomia inexistente homens -mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo especializado neles e não aos homens como “corpos conscientes”. A consciência como se fosse alguma seção “dentro” dos homens, mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá “enchendo” de realidade. Uma consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homem fossem uma presa do mundo e este um eterno caça,dor daqueles, que tivesse por distração “enchê-los” de pedaços seus.

Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que escrevo, estariam “dentro” de mim, como pedaços do mundo que me circunda, a mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos todos que aqui estão, exatamente como dentro deste quarto estou agora.

Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada, na consciência. A mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me cercam estão simplesmente presentes à minha consciência e não dentro dela. Tenho a consciência deles mas não os tenho dentro de mim.

Mas, se para a concepção “bancária”, a consciência é, em sua relação com o mundo, esta “peça” passivamente escancarada a ele, a espera de que entre nela, coerentemente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de “encher” os educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de “comunicados” – falso saber – que ele considera como verdadeiro saber [1].


[1] A concepção do saber, da concepção "bancária" é, no fundo, o que Sartre (El Hombre y las Cosas)  chamaria de concepção "digestiva" ou “alimentícia” do saber. Este é como se fosse o “alimento" que o educador vai introduzindo nos educandos, numa espécie de tratamento de engorda ..

E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já são seres passivos, cabe à  educação apassivá -los mais ainda e adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais "educados”, porque adequados ao mundo.

Esta é uma concepção que, implicando numa prática, somente pode interessar aos opressores que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os homens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando o mundo estejam os homens.

Quanto mais se adaptam as grandes maiorias às finalidades que lhes sejam prescritas pelas minorias dominadoras, de tal modo que careçam aquelas do direito de ter finalidades próprias, mais poderão estas minorias prescrever.

A concepção e a prática da educação que vimos criticando se instauram como eficientes instrumentos para este fim. Dai que um dos seus objetivos fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos do que a realizam, seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico. Nas aulas verbalistas, nos métodos de avaliação dos “conhecimentos”, no chamado “controle de leitura”, na distância entre o educador e os educandos, nos critérios de promoção, na indicação bibliográfica , em tudo, há, sempre a conotação [2] “digestiva” e a proibição ao pensar verdadeiro.

[2] Há professores que, ao indicar uma relação bibliográfica, determinam a leitura de um livro da página 10 a página 15, e fazem isto para ajudar os alunos...
Entre permanecer porque desaparece, numa espécie de morrer para viver, e desaparecer pela e na imposição de sua presença, o educador “bancário” escolhe a segunda hipótese. Não pode entender que permanecer é buscar ser, com os outros. É conviver, simpatizar. Nunca sobrepor-se, nem sequer justapor-se aos educandos, des-simpatizar. Não há, permanência na hipertrofia.

Mas, em nada disto pode o educador “bancário" crer. Conviver, simpatizar implicam em comunicar-se, o que a concepção que informa sua prática rechaça e teme.

Não pode perceber que somente na comunicação tem sentido a vida humana. Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto. Dai que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos de uma realidade.

E, se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo, o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a superposição dos homens aos homens.

Esta superposição, que é uma das notas fundamentais da concepção “educativa” que estamos criticando, mais uma vez a situa como prática da dominação.

Dela, que parte de uma compreensão falsa dos homens, – reduzidos a meras coisas – não se pode esperar que provoque o desenvolvimento do que Fromm chama de biofilia, mas o desenvolvimento de seu contrário, a necrofilia.

Mientras la vida (diz Fromm) se caracteriza por el crecimiento de una manera estructurada, funcional, el indivíduo necrófilo ama todo lo que no crece, todo lo que es mecánico. La persona necrófila es movida por un deseo de convertir lo orgánico en inorgánico, de mirar la vida mecanicamente, como si todas las personas vivientes fuezen cosas. Todos los procesos, sentimientos y pensamientos de vida se transforman en cosas. La memoria y no la experiencia; tener y no ser es lo que cuenta. El invididuo necrófilo puede realizar-se con un objeto – una flor o una persona – únicamente si lo posee; en consecuencia una amenaza a su posesión es una amenaza a él mismo, si pierde la posesión, pierde el contacto con el mundo”. E, mais adiante: “Ama el control y en el acto de controlar, mata la vida” [3].

[3] Erich Fromm, op. Cit., pp.28- 9 .


A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida.

A concepção “bancária”, que a ela serve, também o é. No momento mesmo em que se funda num conceito mecânico, estático, especializado da consciência e em que transforma por isto mesmo, os educandos em recipientes, em quase coisas, não pode esconder sua marca necrófila. Não se deixa mover pelo ânimo de libertar tarefa comum de refazerem o mundo e de torná-la mais e mais humano.

Seu ânimo é justamente o contrário – o de controlar o pensar e a aço, levando os homens ao ajustamento ao mundo. É inibir o poder de criar, de atuar. Mas, ao fazer isto, ao obstaculizar a atuação dos homens, como sujeitos de sua aço, como seres de opção, frustra-os.

Quando, porém, por um motivo qualquer, os homens se sentem proibidos de atuar, quando se descobrem incapazes de usar suas faculdades, sofrem.

Este sofrimento provém “do fato de se haver perturbado o equilíbrio humano” (Fromm). Mas, o não poder atuar, que provoca o sofrimento, provoca também aos homens o sentimento de recusa à sua impotência. Tentam, então, “restabelecer a sua capacidade de atuar” (Fromm).
“Pode, porém, fazê -lo? E como?”, pergunta Fromm. “Um modo, responde, é submeter-se a uma pessoa ou a um grupo que tenha poder e identificar-se com eles. Por esta participação simbólica na vida de outra pessoa, o homem tem a ilusão de que atua, quando, em realidade, não faz mais que submeter- se aos que atuam e converter-se em parte deles”  [4]

.
[4] Erich Fromm, op. cit., pp. 28 -9 

Talvez possamos encontrar nos oprimidos este tipo de reação nas manifestações populistas. Sua identificação com lideres carismáticos, através de quem se possam sentir atuantes e, portanto, no uso de sua potência, bem como a sua rebeldia, quando de sua emersão ao processo histórico, estão envolvidas por este ímpeto de busca de atuação de sua potência.

Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seu remédio em mais dominação – na repressão feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz social que, no fundo, não é outra senão a paz privada dos dominadores.

Por isto mesmo b que podem considerar – logicamente, do seu ponto de vista – um absurdo “the violence of a strike by workers and (can) call upon the state in the same breath to use violence in putting down the strike” [5]
.
[5] Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society. Nova Iorque, Charles Scribner’s Sons, 1960, p. 130.


A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta critica, mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão.

Ao denunciá-la, não esperamos que as elites dominadoras renunciem à sua prática. Seria demasiado ingênuo esperá -lo.

Nosso objetivo é chamar a atenção dos verdadeiros humanistas para o fato de que eles não podem, na busca da libertação, servir-se da concepção “bancária”, sob pena de se contradizerem em sua busca. Assim como também não pode esta concepção tornar- se legado da sociedade opressora à sociedade revolucionária.

A sociedade revolucionária que mantenha a prática da educação "bancária” ou se equivocou nesta manutenção ou se deixou "morder” pela desconfiança e pela descrença nos homens. Em qualquer das hipóteses, estará ameaçada pelo espectro da reação.

Disto, infelizmente, parece que nem sempre estão convencidos os que se inquietam pela causa da libertação. É que, envolvidos pelo clima gerador da concepção “bancária" e sofrendo sua influência, não chegam a perceber o seu significado ou a sua força desumanizadora. Paradoxalmente, então, usam o mesmo instrumento alienador, num esforço que pretendem libertador. E há até os que, usando o mesmo instrumento alienador, chamam aos que divergem desta prática de ingênuos ou sonhadores, quando - não de reacionários.

O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá -lo.

Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentos implícitos na visão “bancária” criticada, é que não podemos aceitar, também, que a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos slogans, dos “depósitos”.

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar- se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo.
Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da consciência, que é sua intencionalidade, nega os comunicados e existência à comunicação. Identifica-se com o próprio da consciência que é sempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos mas também quando se volta sobre si mesma, no que Jaspers chama de “cisão”. Cisão em que a consciência é [6] consciência de consciência.

[6] “The reflexion of consciousness upon itself is as self -evident and marvelous as is its intentionality. I am at myself; I am both one and twofold. I do not exist as thing exists, but in an inner split, as my own object, and thus in motion and inner unrest”. Karl Jaspers, Philosophy, vol. I. The University of Chicago Press. 1969, p. 50. 


Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.

O antagonismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”, que serve à dominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpo exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição educador-educandos, a segunda realiza a superação.

Para manter a contradição, a concepção “bancária” nega a dialogicidade como essência da educação e se faz antidialógica; para realizar a superação, a educação problematizadora – situação gnosiológica – afirma a dialogicidade e se faz dialógica.





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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido


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