terça-feira, 10 de setembro de 2019

Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Oprimidos (5)

Paulo Freire





“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar 






AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 




1. Justificativa da «pedagogia do oprimido» 


A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO E OS OPRIMIDOS 




Será na sua convivência com os oprimidos, sabendo também um deles – somente a um nível diferente de percepção da realidade – que poderão compreender as formas de ser e comportar-se dos oprimidos, que refletem, em momentos diversos, a estrutura da dominação. 

Uma destas, de que já falamos rapidamente, é a dualidade existencial dos oprimidos que, “hospedando” o opressor cuja “sombra” eles “introjetam”, são eles e ao mesmo tempo são o outro. Dai que, quase sempre, enquanto não chegam a localizar o opressor concreta- mente, como também enquanto não cheguem a ser “consciência para si”, assumam atitudes fatalistas em face da situação concreta de opressão em que estão. [1] 



[1] “O camponês, que é um dependente, começa a ter ânimo para superar sua dependência quando se dá conta de sua dependência. Antes disto, segue o patrão e diz quase sempre: ‘que posso fazer, se sou um camponês?’ – Palavras de um camponês durante entrevista com o autor. Chile.

Este fatalismo, às vezes, dá, a impressão, em análises superficiais, de docilidade, como caráter nacional, o que é um engano. Este fatalismo, alongado em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser do povo.

Quase sempre este fatalismo está, referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potências irremovíveis – ou a uma destorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se encontra a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza [2], encontra no sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor desta “desordem organizada”.


[2] Ver Cândido A. Mendes, “Memento dos Vivos – a esquerda católica no Brasil”, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1966.


Na “imersão” em que se encontram, não podem os oprimidos divisar, claramente, a “ordem” que serve aos opressores que, de certa forma, “vivem” neles. “Ordem” que, frustrando-os no seu atuar, muitas vezes os leva a exercer um tipo de violência horizontal com que agridem os próprios companheiros [3]. É possível que, ao agirem assim, mais uma vez explicitem sua dualidade. Ao agredirem seus companheiros oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente, o opressor também “hospedado” neles e nos outras. Agridem, como opressores, o opressor nos oprimidos.


[3] Frantz Panon, Los condenados de la Tierra. México. Fondo de Cultura. 1965: “...el colonizado no deja de liberarse entre las nueve de la noche y las seis de la mañana. Esa agresividad sedimentada en sus músculos va a manifestarla al colonizado primero contra los suyos” (p. 46).


Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada classe “superior”.

É interessante observar como Memmi [4], em uma excepcional análise da “consciência colonizada”, se refere à sua repulsa de colonizado ao colonizador mesclada, contudo, de “apaixonada” atração por ele.


[4] Albert Memmi, – “How could the colonizer look after his workers while periodically gunning down a crowd of the colonized? How could the colonized deny himself so cruelly yet ma ke such excessive demands? How could he hate the colonizers and yet admire them so passionately? (I too felt this admiration, diz Memmi, in spite of myself).” Albert Memmi, The Colonizer and the Colonized. Boston, Beacon Press, 1967, p. X, Prefácio. Em português, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, 2ª edição.


A auto desvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles têm os opressores [5].


[5] “O camponês se sente inferior ao patrão porque este lhe aparece como o que tem o mérito de saber e dirigir.” (Entrevista do autor com um camponês.)


De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade” [6]. Falam de si como os que não sabem e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais.


[6] Ver a este respeito o livro citado de Albert Memmi.

Não se percebem, quase sempre, conhecendo, nas relações que estabelecem com o mundo e com os outros homens, ainda que um conhecimento ao nível da pura doxa.

Dentro dos marcos concretos em que se fazem duais é natural que descreiam de si mesmos [7].


[7] “Por que o senhor (disse certa vez um camponês participante de um ‘círculo de cultura’ ao educador) não explica primeiramente os quadros (referia -se às codificações). Assim, concluiu, nos custará menos e não nos dói a cabeça.”


Não são poucos os camponeses que conhecemos em nossa experiência educativa que, após alguns momentos de discussão viva em torno de um tema que lhes é problemático, param de repente e dizem ao educador: “Desculpe, nós devíamos estar calados e o senhor falando. O senhor é o que sabe; nós, as que não sabemos”.

Muitas vezes insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhecem alguma, é em vantagem do animal. “ mais livre do que nós”, dizem.

É impressionante, contudo, observar como, com as primeiras alterações numa situação opressora, se verifica uma transformação nesta auto desvalia. Escutamos, certa vez, um líder camponês dizer, em reunião, numa das unidades de produção ( asentamiento ) da experiência chilena de reforma agrária: “Diziam de nós que não produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos. Tudo mentira. Agora, que estamos sendo respeitados como homens, vamos mostrar a todos que nunca fomos borrachos, nem preguiçosos. Éramos explorados, isto sim”, concluiu enfático.

Enquanto se encontra nítida sua ambiguidade, os oprimidos dificilmente lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Têm uma crença difusa, mágica, na invulnerabilidade do opressor [8]. No seu poder de que sempre dá testemunho. Nos campos, sobretudo, se observa a força mágica do poder do senhor [9]É preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para que, em si, vá, operando- se convicção aposta à anterior. Enquanto isto não se verifica, continuarão abatidos, medrosos, esmagados [10].

[8] “O camponês tem um medo quase instintivo do patrão”. (Entrevista com um camponês).

[9] Recentemente, num país latino- americano, segundo depoimento que nos foi dado por sociólogo amigo, um grupo de camponeses, armados, se apoderou do latifúndio. Por motivos de ordem tática, se pensou em manter o proprietário como refém. Nenhum camponês, contudo, conseguiu dar guarda a ele. Só sua presença já os assustava. Possivelmente também a aço mesma de lutar contra o patrão lhes provocasse sentimento de culpa. O patrão, na verdade, estava “dentro” deles...

[10] Neste sentido ver, Regis Debret, La Revolución en la Revolución

Até o momento em que os oprimidos não tornem consciência das razões de seu estado de Opressão “aceitam” fatalistamente a sua exploração. Mais ainda, provavelmente assumam posições passivas, alheadas, com relação à necessidade de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua afirmação no mundo. Nisto reside sua “conivência” com o regime opressor.

Pouco e pouco, porém, a tendência é assumir formas de aço rebelde. Num quefazer libertador, não se pode perder de vista esta maneira de ser dos oprimidos, nem esquecer este momento de despertar.

Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo os oprimidos se sentem como se fossem uma quase “coisa" possuída pelo opressor. Enquanto, no seu afã de possuir, para este, como afirmamos, ser é ter à custa quase sempre dos que não têm, para os oprimidos, num momento da sua experiência existencial, ser nem sequer é ainda parecer com o opressor, mas é estar sob ele. É depender. Daí que os oprimidos sejam dependentes emocionais [11].


[11] “O camponês é um dependente. Não pode expressar o seu querer. Antes de descobrir sua dependência, sofre. Desabafa sua ‘pena’ em casa, onde grita com os filhos, bate, desespera-se. Reclama da mulher. Acha tudo mal. Não desabafa sua ‘pena’ com o patrão porque o considera um ser superior. Em muitos casos, o camponês desabafa sua ‘pena’ bebendo." (Entrevista.)



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PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA

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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparaço pelo Centro de Catalog aço -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)



Freire, Paulo

F934p      Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987

(O mundo, hoje, v.21)

1.   Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série

CDD-374.012
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido


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