Capítulo 1
Talvez fosse culpa de Orlando; mas, afinal, devemos culpar Orlando? A época era a elisabetana; sua moral não era a nossa; nem os poetas; nem o clima; nem mesmo os legumes. Tudo era diferente. O próprio clima, o calor e o frio do verão e do inverno eram, podemos crer, totalmente de outra feição. O dia brilhante e amoroso era tão completamente separado da noite como a terra da água. Os poentes mais vermelhos e mais intensos; as alvoradas mais brancas e mais luminosas. Nada sabia de nossa meia-luz crepuscular nem de nossa lânguida penumbra. A chuva ou caía com veemência ou nada. O sol brilhava ou havia a escuridão. Traduzindo isto para as regiões espirituais, como é seu costume, os poetas cantavam lindamente como as rosas fenecem e as pétalas caem. O momento é breve — cantavam; o momento acabou; uma longa noite será dormida por todos. Usar artifícios de estufas ou viveiros para prolongar ou preservar esses cravos e rosas não era de seu feitio. A insípidas complicações e ambiguidades de nossa época mais gradual e duvidosa eram desconhecidas para eles. A violência era tudo. A flor vicejava e murchava. O sol nascia e se punha. O amante amava e partia. E tudo o que os poetas diziam com rimas, os jovens traduziam na prática. As moças eram rosas, e suas estações tão breves quanto as das flores. Precisavam ser colhidas antes do anoitecer; pois o dia era curto, e o dia era tudo. Portanto, se Orlando seguia a tendência do clima, dos poetas e da própria época, e colhia sua flor no peitoral da janela mesmo com a neve cobrindo o chão e a rainha vigilante no corredor, não podemos culpá-lo. Ele era jovem; era ingênuo; só fazia o que a natureza lhe ordenava. Quanto à moça, ignoramos seu nome, tanto quanto a rainha Elizabeth. Poderia ser Doris, Clóris, Délia, ou Diana, pois ele fizera versos para todas elas; poderia igualmente ter sido uma dama da corte ou alguma aia. Pois o gosto de Orlando era amplo; não amava apenas as flores de jardim; as selvagens e as ervas daninhas sempre exerceram fascínio sobre ele.
Aqui, sem dúvida, revelamos rudemente — como um biógrafo pode — um traço curioso nele, que talvez possa ser explicado pelo fato de uma de suas avós ter usado avental e carregado baldes de leite. Alguns grãos da terra de Kent ou de Sussex se misturaram ao fino e delicado fluido proveniente da Normandia. Ele sustentava que a mistura da terra marrom e sangue azul era boa. É certo que sempre gostara da companhia de inferiores, especialmente dos letrados, cuja sabedoria frequentemente os mantém em nível inferior, como se houvesse uma afinidade sanguínea entre eles. Nesta fase de sua vida, em que a cabeça estava cheia de rimas, nunca ia para a cama sem emitir algum conceito, a face da filha do hospedeiro parecia mais fresca, e a sagacidade da sobrinha do guarda-caça mais veloz que a das senhoras da corte. Assim, começou a ir com frequência a Wapping Old Staire e às cervejarias à noite, envolto numa capa cinza para ocultar a estrela no pescoço e a jarreteira no joelho. Lá, com uma caneca diante de si, entre as alamedas de areia e campos de jogos de bola e toda a arquitetura simples desses lugares, ouvia histórias dos marinheiros, da miséria, horror e crueldade do mar das Antilhas; de como alguns perderam os dedos do pé, outros os narizes — pois a história oral nunca era tão refinada nem ricamente colorida quanto a escrita. Acima de tudo, gostava de ouvi-los disparar suas canções dos Açores, enquanto os papagaios, trazidos daquela região, bicavam os brincos em suas orelhas, batiam com os bicos duros e ávidos nos rubis em seus dedos e praguejavam de forma tão vil quanto seus donos. As mulheres eram pouco menos atrevidas em seu discurso e menos livres em seus modos do que os pássaros. Empoleiravam-se em seus joelhos, lançavam os braços ao redor de seu pescoço e, percebendo que algo fora do comum se escondia sob sua capa de pano grosso, ficavam tão ansiosas em chegar à descoberta quanto o próprio Orlando.
Não faltavam oportunidades. O rio estava agitado desde cedo com barcaças, balsas e embarcações de todos os tipos. Cada dia zarpava um belo navio rumo às Índias; de vez em quando um outro enegrecido e desconjuntado, com homens cabeludos a bordo, arrastava-se penosamente para ancorar. Ninguém sentia falta de um rapaz ou de uma moça que vadiassem um pouco a bordo depois do pôr do sol; nem erguia a sobrancelha se os mexeriqueiros os vissem dormindo profundamente, abraçados, entre os sacos de tesouro. Esta foi, sem dúvida, a aventura que aconteceu a Orlando, Sukey e o conde de Cumberland. O dia estava quente; seus amores tinham sido intensos; eles adormeceram entre os rubis. Tarde da noite, o conde, cuja fortuna estava ligada a empresas espanholas, veio verificar o saque sozinho, com uma lanterna. Projetou a luz num barril. Recuou assustado, praguejando. Abraçados junto ao casco, dois espíritos dormiam. Supersticioso por natureza, e com a consciência pesada por muitos crimes, o conde tomou o casal — eles estavam envoltos num manto vermelho, e o peito de Sukey era quase tão branco quanto as neves eternas da poesia de Orlando — por um espectro saído das tumbas dos marinheiros afogados, para acusá-lo. Benzeu-se. Jurou arrependimento. A fileira de asilos que ainda existe na Sheen Road é o fruto visível deste momento de pânico. Doze velhas pobres da paróquia hoje bebem chá e à noite bendizem o Senhor pelo teto sobre suas cabeças; por um amor ilícito num navio carregado de tesouros — mas omitimos a moral.
Logo, entretanto, Orlando se cansou, não apenas do desconforto desse tipo de vida e das tortuosas ruas dos arredores, mas também das maneiras primitivas do povo. Pois é preciso lembrar que o crime e a pobreza não tinham para os elisabetanos a mesma atração que têm para nós. Eles não possuíam a vergonha moderna de ter aprendido nos livros; nem a nossa crença de que ser filho de um açougueiro é uma bênção e não saber ler uma virtude; não imaginavam que o que chamamos “vida” e “realidade” estivesse relacionado de alguma forma com ignorância e brutalidade; nem tinham, na verdade, nenhum equivalente para estas duas palavras. Não foi para procurar a “vida” que Orlando andou entre eles; nem para procurar a “realidade” que os abandonou. Mas, depois de ouvir um certo número de vezes como Jakes perdera o nariz e Sukey a honra — eles contam histórias admiravelmente, é preciso admitir —, começou a ficar fatigado da repetição, pois um nariz só pode ser cortado de uma maneira, e a virgindade perdida de outra — ou assim lhe pareceu —, enquanto as artes e as ciências eram de uma diversidade tal que estimulavam sua curiosidade profundamente. Assim, embora levando deles boas recordações, deixou de frequentar as cervejarias, os jogos de boliche, pendurou a capa cinzenta no armário, deixou a estrela brilhar no pescoço e a jarreteira cintilar no joelho e voltou para a corte do rei Jaime. Era jovem, rico e belo. Ninguém poderia ter sido recebido com maior aclamação do que ele.
É claro que muitas damas estavam prontas a lhe conceder seus favores. Pelo menos três nomes foram livremente associados ao seu em matrimônio — Clorinda, Favila, Eufrosina — assim as chamou em seus sonetos.
Tomando-as por ordem: Clorinda era uma jovem de modos bastante graciosos; — é certo que Orlando tinha andado muito interessado nela por seis meses e meio; contudo ela tinha pestanas brancas e não podia suportar a visão de sangue. Uma lebre assada, trazida à mesa de seu pai, fez com que desmaiasse. Era também excessivamente influenciada pela Igreja e economizava sua roupa branca para dar aos pobres. Decidiu corrigir Orlando de seus pecados, o que o aborreceu tanto que resolveu desistir do casamento e não lamentou muito quando ela morreu de varíola, pouco tempo depois.
Favila, a próxima, era muito diferente. Era filha de um cavalheiro pobre de Somersetshire; que, por total perseverança e pelos trejeitos de seus olhos, conseguira chegar à corte, onde sua destreza na equitação, seus belos tornozelos, sua graça ao dançar conquistaram a admiração de todos. Um dia, porém, teve a má ideia de espancar um cachorro spaniel que lhe rasgara a meia de seda (e, para ser justo, deve ser dito que Favila tinha poucas meias e que a maioria era de lã) deixando-o quase sem vida, debaixo da janela de Orlando. Orlando, que era apaixonado por animais, logo reparou que os dentes dela eram tortos, os dois da frente virados para dentro, o que considerava ser nas mulheres um sinal infalível de caráter perverso e cruel, e assim, naquela mesma noite, desfez o compromisso para sempre.
A terceira, Eufrosina, foi sem dúvida a mais séria destas paixões. Ela era, de berço, dos Desmonds da Irlanda e tinha uma árvore genealógica tão antiga e profundamente arraigada quanto a do próprio Orlando. Era loura, corada e um pouco apática. Falava bem italiano, tinha uma fileira de dentes perfeitos no maxilar superior, embora os do maxilar inferior fossem um pouco desbotados. Nunca estava sem um cão de corrida ou um spaniel no colo; alimentava-o com pão branco de seu próprio prato; cantava docemente acompanhando o virginal; e nunca estava pronta antes do meio-dia devido ao extremo cuidado que dedicava à aparência. Em suma, teria sido uma perfeita esposa para um nobre como Orlando, e as coisas estavam tão adiantadas que os advogados de ambas as partes se ocupavam com contratos, dotes, legados, senhorios, aforamentos e tudo o que é necessário antes que uma grande fortuna possa se juntar a outra, quando, com a rapidez e o rigor que então caracterizavam o clima inglês, chegou a Grande Geada.
A Grande Geada foi, segundo os historiadores, a mais severa que jamais atingiu estas ilhas. Os pássaros gelavam no ar e caíam como pedras no chão. Em Norwich, uma jovem camponesa de saúde vigorosa, que se dispunha a atravessar a rua, foi vista por testemunhas desfazer-se em pó e ser soprada por uma lufada de poeira para cima dos telhados quando uma rajada glacial a atingiu numa esquina. A mortandade de rebanhos e de gado foi enorme. Os cadáveres congelavam e não podiam ser arrancados dos lençóis. Não era raro se encontrar uma vara inteira de porcos congelados, imóveis, no caminho. Os campos estavam cheios de pastores, lavradores, parelhas de cavalos e meninos como espantalhos, todos paralisados na atitude do momento, um com a mão no nariz, outro com a garrafa na boca, um terceiro com uma pedra pronta para ser arremessada num corvo que pousava, como se empalhado, numa cerca próxima. O rigor da geada era tanto que às vezes causava uma certa petrificação; e era comum se acreditar que o grande aumento de rochas em algumas partes de Derbyshire se devia não à erupção, pois não houve nenhuma, mas à solidificação de infelizes caminhantes, literalmente transformados em pedra, no lugar em que se encontravam. A Igreja pouco ajudou no assunto, e, embora alguns proprietários fossem benzer essas relíquias, a maioria preferiu usá-las como marcos, postes para as ovelhas se coçarem, ou, quando a forma da pedra permitia, como bebedouro para o gado, funções a que servem, em geral, admiravelmente até hoje.
Mas, enquanto os camponeses sofriam necessidade extremas e o comércio do país estava paralisado, Londres desfrutava de um carnaval de brilho máximo. A corte estava em Greenwich, e o novo rei aproveitou a oportunidade de sua coroação para se congraçar com os cidadãos. Ordenou que o rio, que congelara a uma profundidade de mais de vinte pés, e por seis ou sete milhas de ambos os lados, fosse varrido, decorado e tivesse o aspecto de um parque de diversões, com caramanchões, labirintos, alamedas, barracas de bebidas etc., a suas próprias expensas. Para si e para seus cortesões reservou um certo espaço, imediatamente em frente aos portões do palácio, que, separado do público apenas por um cordão de seda, logo se tornou o centro da mais brilhante sociedade da Inglaterra. Grandes políticos, com barbas e gorjeiras, despachavam assuntos oficiais sob o toldo vermelho da Tenda Real. Soldados planejavam a conquista dos mouros e a derrota dos turcos em pavilhões listrados, encimados por plumas de avestruz. Almirantes caminhavam de um lado para outro nas alamedas estreitas, com lunetas na mão, varrendo o horizonte e contando histórias da travessia do noroeste e da Invencível Armada. Os amantes namoravam nos divãs cobertos por peles de marta. Rosas geladas caíam em chuveiro quando a rainha passeava com suas damas. Balões coloridos permaneciam imóveis no ar. Aqui e ali ardiam vastas fogueiras de madeira de cedro e carvalho, profusamente salgadas, para que as chamas fossem verdes, laranja e púrpura. Mas, por mais ferozmente que ardessem, o calor não era suficiente para derreter o gelo que, embora duro como aço, era de uma transparência singular. Era tão límpido que se podia ver congelados a uma profundidade de vários pés aqui um golfinho, ali um linguado. Cardumes de enguias jaziam imóveis, em transe, mas se seu estado era de morte ou de interrupção de vida que o calor pudesse reanimar, desconcertava filósofos. Perto da ponte de Londres, onde o rio gelara até umas vinte braças de profundidade, um navio era totalmente visível, jazendo no leito do rio no local onde naufragara, no último outono, carregado de maçãs. A velha do barco, que levava sua fruta para o mercado na ribeira de Surrey, estava sentada nas suas mantas e saia-balão, com o regaço cheio de maçãs, e, para todo mundo, parecia que estava atendendo um freguês, embora um certo tom azulado em seus lábios sugerisse a verdade. Era uma visão que o rei Jaime gostava de contemplar, e trazia um bando de cortesões para admirar com ele. Em suma, nada podia exceder o brilho e alegria da cena, durante o dia. Mas era à noite que o carnaval ficava mais alegre. Porque o gelo continuava intacto; as noites eram de tranquilidade perfeita; a lua e as estrelas brilhavam com a dura fixidez de diamantes, e ao som da bela música de flauta e trombeta os cortesões dançavam.
Orlando, é certo, não era daqueles que dançavam com leveza o coranto e a lavolta; era desajeitado e um pouco distraído. Preferia as danças simples de sua região, que dançava desde menino, a estes fantásticos compassos estrangeiros. Tinha acabado justamente uma quadrilha ou um minueto, pelas seis da tarde do dia 7 de janeiro, quando viu, saindo do pavilhão da embaixada moscovita, uma figura de homem ou de mulher, pois a túnica ampla e as calças à moda russa serviam para disfarçar o sexo, que o encheu da maior curiosidade. A pessoa, qualquer que fosse seu nome ou sexo, era de estatura mediana, de forma delgada e inteiramente vestida de veludo cor de ostra, orlado de uma estranha pele esverdeada. Mas esses detalhes eram obscurecidos pela extraordinária sedução proveniente da própria pessoa. Imagens, metáforas das mais excessivas e extravagantes se entrelaçaram e reviraram em sua cabeça. Ele a chamou de melão, abacaxi, oliveira, esmeralda ou raposa na neve, tudo no espaço de três segundos; não sabia se a tinha ouvido, provado, visto ou feito as três coisas juntas. (Pois, embora não devamos interromper em nenhum momento a narrativa, temos que anotar aqui, às pressas, que todas as suas imagens naquela época eram extremamente simples, para combinarem com seus sentidos, e eram, em sua maioria, extraídas de coisas de que tinha gostado em pequeno. Mas, se os sentidos eram simples, eram, ao mesmo tempo, extremamente fortes. Parar e procurar a razão das coisas era impossível.)… Um melão, uma esmeralda, uma raposa na neve — assim delirava, assim a fitava. Quando o rapaz, porque, ai de mim!, tinha de ser um rapaz — nenhuma mulher poderia patinar com tanta velocidade e vigor —, passou por ele quase na ponta dos pés, Orlando quase arrancou os cabelos de vergonha ao ver que a pessoa era do seu sexo, e que os abraços estavam fora de questão. Mas o patinador se aproximou. Pernas, mãos, porte eram de rapaz, mas nenhum rapaz tinha uma boca assim; nenhum rapaz tinha aqueles peitos; nenhum rapaz tinha olhos daqueles, que pareciam pescados no fundo do mar. Por fim, parando e dirigindo com a maior graça uma reverência para o rei, que negligentemente passava de braço com um camareiro, o patinador desconhecido parou. Ela estava ao alcance da mão. Era uma mulher. Orlando fitou-a; tremeu; sentiu calor; sentiu frio; teve vontade de se atirar pelo ar de verão; esmagar com os pés bolotas de carvalho; sacudir o braço com as faias e os carvalhos. Na verdade, ergueu os lábios sobre os pequenos dentes brancos; abriu-os talvez meia polegada, como se fosse morder algo; fechou-os como se tivesse mordido. Lady Eufrosina pendia de seu braço.
Ele descobriu que o nome da estrangeira era princesa Marousha Stanilovska Dagmar Natasha Iliana Romano-vitch, e viera na comitiva do embaixador moscovita, seu tio ou talvez seu pai, para assistir à coroação. Muito pouco se sabia dos moscovitas. Com barbas grandes e chapéus de peles, sentavam quase sempre em silêncio, tomando uma bebida escura que cuspiam de vez em quando no gelo. Nenhum falava inglês, e o francês ao qual alguns estavam pelo menos familiarizados era então pouco falado na corte da Inglaterra.
Foi por causa desse incidente que Orlando e a princesa se conheceram: estavam sentados um diante do outro, na grande mesa preparada sob um toldo enorme, para abrigo dos nobres. A princesa estava entre dois jovens senhores, um, Lorde Francis Vere, e o outro, o jovem conde de Moray. Era cômico ver a situação em que ela os colocara, pois, embora ambos fossem, a seu modo, belos rapazes, seus conhecimentos de francês eram como os de um recém-nascido. Quando, no começo do jantar, a princesa virou-se para o conde e disse com uma graça que lhe arrebatou o coração: “Je crois avoir fait la connaissance d’un gentilhomme qui vous; était apparenté en Pologne l’eté dernier” [1] — ou — “La beauté des dames de la cour d’Angleterre me met dans le ravissement. On ne peut voir une dame plus gracieuse que votre reine, ni une coiffure plus belle que la sienne”, [2] tanto Lorde Francis quanto o conde mostraram o maior embaraço. Um serviu-a abundantemente de molho de rábano, e o outro assobiou para o seu cachorro e fez com que ele pedisse um osso com tutano. Diante disso, a princesa não pôde mais conter o riso, e Orlando, captando seus olhos entre as cabeças de javali e os pavões recheados, riu também. Ele riu, mas o riso em seus lábios congelou de admiração. A quem teria amado, o que ele teria amado até agora?, perguntava a si mesmo, num tumulto de emoção. Uma velha senhora, que era só pele e ossos, respondia. Prostitutas de faces vermelhas, inúmeras para serem mencionadas. Uma monja choramingueira. Uma aventureira intratável e desbocada. Uma sonolenta massa de renda e etiqueta. O amor não tinha sido para ele mais do que serragem e cinzas. As alegrias que ele tinha experimentado, insípidas ao extremo. Admirava-se como pudera passar por isso sem bocejar. Pois quando a olhava, a espessura de seu sangue se derretia; o gelo se transformava em vinho em suas veias; ouvia as águas fluindo e os pássaros cantando; a primavera rompeu a pesada paisagem invernal; sua virilidade despertou; ele empunhou uma espada; investiu contra um inimigo mais ousado do que um polonês ou um mouro; mergulhou na água profunda; viu a flor do perigo crescendo numa fresta; estendeu a mão — na verdade, estava declamando um dos seus mais apaixonados sonetos quando a princesa se dirigiu a ele:
— Poderia ter a bondade de me passar o sal?
Ele corou violentamente.
— Com o maior prazer do mundo, Madame — respondeu, falando em francês com uma pronúncia perfeita. Pois, o céu seja louvado, ele falava a língua como se fosse a sua própria; a aia de sua mãe lhe havia ensinado. Contudo, porém, talvez tivesse sido melhor para ele que nunca tivesse aprendido aquela língua; nunca tivesse respondido àquela voz; nunca tivesse seguido a luz daqueles olhos...
continua pag 23...
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Leia também:
Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) - A princesa prosseguiu
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[1] Creio ter conhecido, na Polônia, no verão passado, um cavalheiro que era seu parente.
[2] A beleza das damas da corte da Inglaterra me encanta. Não se pode ver dama mais graciosa do que a vossa rainha, nem um penteado mais belo do que o seu.
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VERBO SOLTO: "Orlando", de Virgínia Woolf, por Eugenio Dale
Talvez fosse culpa de Orlando; mas, afinal, devemos culpar Orlando? A época era a elisabetana; sua moral não era a nossa; nem os poetas; nem o clima; nem mesmo os legumes. Tudo era diferente. O próprio clima, o calor e o frio do verão e do inverno eram, podemos crer, totalmente de outra feição. O dia brilhante e amoroso era tão completamente separado da noite como a terra da água. Os poentes mais vermelhos e mais intensos; as alvoradas mais brancas e mais luminosas. Nada sabia de nossa meia-luz crepuscular nem de nossa lânguida penumbra. A chuva ou caía com veemência ou nada. O sol brilhava ou havia a escuridão. Traduzindo isto para as regiões espirituais, como é seu costume, os poetas cantavam lindamente como as rosas fenecem e as pétalas caem. O momento é breve — cantavam; o momento acabou; uma longa noite será dormida por todos. Usar artifícios de estufas ou viveiros para prolongar ou preservar esses cravos e rosas não era de seu feitio. A insípidas complicações e ambiguidades de nossa época mais gradual e duvidosa eram desconhecidas para eles. A violência era tudo. A flor vicejava e murchava. O sol nascia e se punha. O amante amava e partia. E tudo o que os poetas diziam com rimas, os jovens traduziam na prática. As moças eram rosas, e suas estações tão breves quanto as das flores. Precisavam ser colhidas antes do anoitecer; pois o dia era curto, e o dia era tudo. Portanto, se Orlando seguia a tendência do clima, dos poetas e da própria época, e colhia sua flor no peitoral da janela mesmo com a neve cobrindo o chão e a rainha vigilante no corredor, não podemos culpá-lo. Ele era jovem; era ingênuo; só fazia o que a natureza lhe ordenava. Quanto à moça, ignoramos seu nome, tanto quanto a rainha Elizabeth. Poderia ser Doris, Clóris, Délia, ou Diana, pois ele fizera versos para todas elas; poderia igualmente ter sido uma dama da corte ou alguma aia. Pois o gosto de Orlando era amplo; não amava apenas as flores de jardim; as selvagens e as ervas daninhas sempre exerceram fascínio sobre ele.
Aqui, sem dúvida, revelamos rudemente — como um biógrafo pode — um traço curioso nele, que talvez possa ser explicado pelo fato de uma de suas avós ter usado avental e carregado baldes de leite. Alguns grãos da terra de Kent ou de Sussex se misturaram ao fino e delicado fluido proveniente da Normandia. Ele sustentava que a mistura da terra marrom e sangue azul era boa. É certo que sempre gostara da companhia de inferiores, especialmente dos letrados, cuja sabedoria frequentemente os mantém em nível inferior, como se houvesse uma afinidade sanguínea entre eles. Nesta fase de sua vida, em que a cabeça estava cheia de rimas, nunca ia para a cama sem emitir algum conceito, a face da filha do hospedeiro parecia mais fresca, e a sagacidade da sobrinha do guarda-caça mais veloz que a das senhoras da corte. Assim, começou a ir com frequência a Wapping Old Staire e às cervejarias à noite, envolto numa capa cinza para ocultar a estrela no pescoço e a jarreteira no joelho. Lá, com uma caneca diante de si, entre as alamedas de areia e campos de jogos de bola e toda a arquitetura simples desses lugares, ouvia histórias dos marinheiros, da miséria, horror e crueldade do mar das Antilhas; de como alguns perderam os dedos do pé, outros os narizes — pois a história oral nunca era tão refinada nem ricamente colorida quanto a escrita. Acima de tudo, gostava de ouvi-los disparar suas canções dos Açores, enquanto os papagaios, trazidos daquela região, bicavam os brincos em suas orelhas, batiam com os bicos duros e ávidos nos rubis em seus dedos e praguejavam de forma tão vil quanto seus donos. As mulheres eram pouco menos atrevidas em seu discurso e menos livres em seus modos do que os pássaros. Empoleiravam-se em seus joelhos, lançavam os braços ao redor de seu pescoço e, percebendo que algo fora do comum se escondia sob sua capa de pano grosso, ficavam tão ansiosas em chegar à descoberta quanto o próprio Orlando.
Não faltavam oportunidades. O rio estava agitado desde cedo com barcaças, balsas e embarcações de todos os tipos. Cada dia zarpava um belo navio rumo às Índias; de vez em quando um outro enegrecido e desconjuntado, com homens cabeludos a bordo, arrastava-se penosamente para ancorar. Ninguém sentia falta de um rapaz ou de uma moça que vadiassem um pouco a bordo depois do pôr do sol; nem erguia a sobrancelha se os mexeriqueiros os vissem dormindo profundamente, abraçados, entre os sacos de tesouro. Esta foi, sem dúvida, a aventura que aconteceu a Orlando, Sukey e o conde de Cumberland. O dia estava quente; seus amores tinham sido intensos; eles adormeceram entre os rubis. Tarde da noite, o conde, cuja fortuna estava ligada a empresas espanholas, veio verificar o saque sozinho, com uma lanterna. Projetou a luz num barril. Recuou assustado, praguejando. Abraçados junto ao casco, dois espíritos dormiam. Supersticioso por natureza, e com a consciência pesada por muitos crimes, o conde tomou o casal — eles estavam envoltos num manto vermelho, e o peito de Sukey era quase tão branco quanto as neves eternas da poesia de Orlando — por um espectro saído das tumbas dos marinheiros afogados, para acusá-lo. Benzeu-se. Jurou arrependimento. A fileira de asilos que ainda existe na Sheen Road é o fruto visível deste momento de pânico. Doze velhas pobres da paróquia hoje bebem chá e à noite bendizem o Senhor pelo teto sobre suas cabeças; por um amor ilícito num navio carregado de tesouros — mas omitimos a moral.
Logo, entretanto, Orlando se cansou, não apenas do desconforto desse tipo de vida e das tortuosas ruas dos arredores, mas também das maneiras primitivas do povo. Pois é preciso lembrar que o crime e a pobreza não tinham para os elisabetanos a mesma atração que têm para nós. Eles não possuíam a vergonha moderna de ter aprendido nos livros; nem a nossa crença de que ser filho de um açougueiro é uma bênção e não saber ler uma virtude; não imaginavam que o que chamamos “vida” e “realidade” estivesse relacionado de alguma forma com ignorância e brutalidade; nem tinham, na verdade, nenhum equivalente para estas duas palavras. Não foi para procurar a “vida” que Orlando andou entre eles; nem para procurar a “realidade” que os abandonou. Mas, depois de ouvir um certo número de vezes como Jakes perdera o nariz e Sukey a honra — eles contam histórias admiravelmente, é preciso admitir —, começou a ficar fatigado da repetição, pois um nariz só pode ser cortado de uma maneira, e a virgindade perdida de outra — ou assim lhe pareceu —, enquanto as artes e as ciências eram de uma diversidade tal que estimulavam sua curiosidade profundamente. Assim, embora levando deles boas recordações, deixou de frequentar as cervejarias, os jogos de boliche, pendurou a capa cinzenta no armário, deixou a estrela brilhar no pescoço e a jarreteira cintilar no joelho e voltou para a corte do rei Jaime. Era jovem, rico e belo. Ninguém poderia ter sido recebido com maior aclamação do que ele.
É claro que muitas damas estavam prontas a lhe conceder seus favores. Pelo menos três nomes foram livremente associados ao seu em matrimônio — Clorinda, Favila, Eufrosina — assim as chamou em seus sonetos.
Tomando-as por ordem: Clorinda era uma jovem de modos bastante graciosos; — é certo que Orlando tinha andado muito interessado nela por seis meses e meio; contudo ela tinha pestanas brancas e não podia suportar a visão de sangue. Uma lebre assada, trazida à mesa de seu pai, fez com que desmaiasse. Era também excessivamente influenciada pela Igreja e economizava sua roupa branca para dar aos pobres. Decidiu corrigir Orlando de seus pecados, o que o aborreceu tanto que resolveu desistir do casamento e não lamentou muito quando ela morreu de varíola, pouco tempo depois.
Favila, a próxima, era muito diferente. Era filha de um cavalheiro pobre de Somersetshire; que, por total perseverança e pelos trejeitos de seus olhos, conseguira chegar à corte, onde sua destreza na equitação, seus belos tornozelos, sua graça ao dançar conquistaram a admiração de todos. Um dia, porém, teve a má ideia de espancar um cachorro spaniel que lhe rasgara a meia de seda (e, para ser justo, deve ser dito que Favila tinha poucas meias e que a maioria era de lã) deixando-o quase sem vida, debaixo da janela de Orlando. Orlando, que era apaixonado por animais, logo reparou que os dentes dela eram tortos, os dois da frente virados para dentro, o que considerava ser nas mulheres um sinal infalível de caráter perverso e cruel, e assim, naquela mesma noite, desfez o compromisso para sempre.
A terceira, Eufrosina, foi sem dúvida a mais séria destas paixões. Ela era, de berço, dos Desmonds da Irlanda e tinha uma árvore genealógica tão antiga e profundamente arraigada quanto a do próprio Orlando. Era loura, corada e um pouco apática. Falava bem italiano, tinha uma fileira de dentes perfeitos no maxilar superior, embora os do maxilar inferior fossem um pouco desbotados. Nunca estava sem um cão de corrida ou um spaniel no colo; alimentava-o com pão branco de seu próprio prato; cantava docemente acompanhando o virginal; e nunca estava pronta antes do meio-dia devido ao extremo cuidado que dedicava à aparência. Em suma, teria sido uma perfeita esposa para um nobre como Orlando, e as coisas estavam tão adiantadas que os advogados de ambas as partes se ocupavam com contratos, dotes, legados, senhorios, aforamentos e tudo o que é necessário antes que uma grande fortuna possa se juntar a outra, quando, com a rapidez e o rigor que então caracterizavam o clima inglês, chegou a Grande Geada.
A Grande Geada foi, segundo os historiadores, a mais severa que jamais atingiu estas ilhas. Os pássaros gelavam no ar e caíam como pedras no chão. Em Norwich, uma jovem camponesa de saúde vigorosa, que se dispunha a atravessar a rua, foi vista por testemunhas desfazer-se em pó e ser soprada por uma lufada de poeira para cima dos telhados quando uma rajada glacial a atingiu numa esquina. A mortandade de rebanhos e de gado foi enorme. Os cadáveres congelavam e não podiam ser arrancados dos lençóis. Não era raro se encontrar uma vara inteira de porcos congelados, imóveis, no caminho. Os campos estavam cheios de pastores, lavradores, parelhas de cavalos e meninos como espantalhos, todos paralisados na atitude do momento, um com a mão no nariz, outro com a garrafa na boca, um terceiro com uma pedra pronta para ser arremessada num corvo que pousava, como se empalhado, numa cerca próxima. O rigor da geada era tanto que às vezes causava uma certa petrificação; e era comum se acreditar que o grande aumento de rochas em algumas partes de Derbyshire se devia não à erupção, pois não houve nenhuma, mas à solidificação de infelizes caminhantes, literalmente transformados em pedra, no lugar em que se encontravam. A Igreja pouco ajudou no assunto, e, embora alguns proprietários fossem benzer essas relíquias, a maioria preferiu usá-las como marcos, postes para as ovelhas se coçarem, ou, quando a forma da pedra permitia, como bebedouro para o gado, funções a que servem, em geral, admiravelmente até hoje.
Mas, enquanto os camponeses sofriam necessidade extremas e o comércio do país estava paralisado, Londres desfrutava de um carnaval de brilho máximo. A corte estava em Greenwich, e o novo rei aproveitou a oportunidade de sua coroação para se congraçar com os cidadãos. Ordenou que o rio, que congelara a uma profundidade de mais de vinte pés, e por seis ou sete milhas de ambos os lados, fosse varrido, decorado e tivesse o aspecto de um parque de diversões, com caramanchões, labirintos, alamedas, barracas de bebidas etc., a suas próprias expensas. Para si e para seus cortesões reservou um certo espaço, imediatamente em frente aos portões do palácio, que, separado do público apenas por um cordão de seda, logo se tornou o centro da mais brilhante sociedade da Inglaterra. Grandes políticos, com barbas e gorjeiras, despachavam assuntos oficiais sob o toldo vermelho da Tenda Real. Soldados planejavam a conquista dos mouros e a derrota dos turcos em pavilhões listrados, encimados por plumas de avestruz. Almirantes caminhavam de um lado para outro nas alamedas estreitas, com lunetas na mão, varrendo o horizonte e contando histórias da travessia do noroeste e da Invencível Armada. Os amantes namoravam nos divãs cobertos por peles de marta. Rosas geladas caíam em chuveiro quando a rainha passeava com suas damas. Balões coloridos permaneciam imóveis no ar. Aqui e ali ardiam vastas fogueiras de madeira de cedro e carvalho, profusamente salgadas, para que as chamas fossem verdes, laranja e púrpura. Mas, por mais ferozmente que ardessem, o calor não era suficiente para derreter o gelo que, embora duro como aço, era de uma transparência singular. Era tão límpido que se podia ver congelados a uma profundidade de vários pés aqui um golfinho, ali um linguado. Cardumes de enguias jaziam imóveis, em transe, mas se seu estado era de morte ou de interrupção de vida que o calor pudesse reanimar, desconcertava filósofos. Perto da ponte de Londres, onde o rio gelara até umas vinte braças de profundidade, um navio era totalmente visível, jazendo no leito do rio no local onde naufragara, no último outono, carregado de maçãs. A velha do barco, que levava sua fruta para o mercado na ribeira de Surrey, estava sentada nas suas mantas e saia-balão, com o regaço cheio de maçãs, e, para todo mundo, parecia que estava atendendo um freguês, embora um certo tom azulado em seus lábios sugerisse a verdade. Era uma visão que o rei Jaime gostava de contemplar, e trazia um bando de cortesões para admirar com ele. Em suma, nada podia exceder o brilho e alegria da cena, durante o dia. Mas era à noite que o carnaval ficava mais alegre. Porque o gelo continuava intacto; as noites eram de tranquilidade perfeita; a lua e as estrelas brilhavam com a dura fixidez de diamantes, e ao som da bela música de flauta e trombeta os cortesões dançavam.
Orlando, é certo, não era daqueles que dançavam com leveza o coranto e a lavolta; era desajeitado e um pouco distraído. Preferia as danças simples de sua região, que dançava desde menino, a estes fantásticos compassos estrangeiros. Tinha acabado justamente uma quadrilha ou um minueto, pelas seis da tarde do dia 7 de janeiro, quando viu, saindo do pavilhão da embaixada moscovita, uma figura de homem ou de mulher, pois a túnica ampla e as calças à moda russa serviam para disfarçar o sexo, que o encheu da maior curiosidade. A pessoa, qualquer que fosse seu nome ou sexo, era de estatura mediana, de forma delgada e inteiramente vestida de veludo cor de ostra, orlado de uma estranha pele esverdeada. Mas esses detalhes eram obscurecidos pela extraordinária sedução proveniente da própria pessoa. Imagens, metáforas das mais excessivas e extravagantes se entrelaçaram e reviraram em sua cabeça. Ele a chamou de melão, abacaxi, oliveira, esmeralda ou raposa na neve, tudo no espaço de três segundos; não sabia se a tinha ouvido, provado, visto ou feito as três coisas juntas. (Pois, embora não devamos interromper em nenhum momento a narrativa, temos que anotar aqui, às pressas, que todas as suas imagens naquela época eram extremamente simples, para combinarem com seus sentidos, e eram, em sua maioria, extraídas de coisas de que tinha gostado em pequeno. Mas, se os sentidos eram simples, eram, ao mesmo tempo, extremamente fortes. Parar e procurar a razão das coisas era impossível.)… Um melão, uma esmeralda, uma raposa na neve — assim delirava, assim a fitava. Quando o rapaz, porque, ai de mim!, tinha de ser um rapaz — nenhuma mulher poderia patinar com tanta velocidade e vigor —, passou por ele quase na ponta dos pés, Orlando quase arrancou os cabelos de vergonha ao ver que a pessoa era do seu sexo, e que os abraços estavam fora de questão. Mas o patinador se aproximou. Pernas, mãos, porte eram de rapaz, mas nenhum rapaz tinha uma boca assim; nenhum rapaz tinha aqueles peitos; nenhum rapaz tinha olhos daqueles, que pareciam pescados no fundo do mar. Por fim, parando e dirigindo com a maior graça uma reverência para o rei, que negligentemente passava de braço com um camareiro, o patinador desconhecido parou. Ela estava ao alcance da mão. Era uma mulher. Orlando fitou-a; tremeu; sentiu calor; sentiu frio; teve vontade de se atirar pelo ar de verão; esmagar com os pés bolotas de carvalho; sacudir o braço com as faias e os carvalhos. Na verdade, ergueu os lábios sobre os pequenos dentes brancos; abriu-os talvez meia polegada, como se fosse morder algo; fechou-os como se tivesse mordido. Lady Eufrosina pendia de seu braço.
Ele descobriu que o nome da estrangeira era princesa Marousha Stanilovska Dagmar Natasha Iliana Romano-vitch, e viera na comitiva do embaixador moscovita, seu tio ou talvez seu pai, para assistir à coroação. Muito pouco se sabia dos moscovitas. Com barbas grandes e chapéus de peles, sentavam quase sempre em silêncio, tomando uma bebida escura que cuspiam de vez em quando no gelo. Nenhum falava inglês, e o francês ao qual alguns estavam pelo menos familiarizados era então pouco falado na corte da Inglaterra.
Foi por causa desse incidente que Orlando e a princesa se conheceram: estavam sentados um diante do outro, na grande mesa preparada sob um toldo enorme, para abrigo dos nobres. A princesa estava entre dois jovens senhores, um, Lorde Francis Vere, e o outro, o jovem conde de Moray. Era cômico ver a situação em que ela os colocara, pois, embora ambos fossem, a seu modo, belos rapazes, seus conhecimentos de francês eram como os de um recém-nascido. Quando, no começo do jantar, a princesa virou-se para o conde e disse com uma graça que lhe arrebatou o coração: “Je crois avoir fait la connaissance d’un gentilhomme qui vous; était apparenté en Pologne l’eté dernier” [1] — ou — “La beauté des dames de la cour d’Angleterre me met dans le ravissement. On ne peut voir une dame plus gracieuse que votre reine, ni une coiffure plus belle que la sienne”, [2] tanto Lorde Francis quanto o conde mostraram o maior embaraço. Um serviu-a abundantemente de molho de rábano, e o outro assobiou para o seu cachorro e fez com que ele pedisse um osso com tutano. Diante disso, a princesa não pôde mais conter o riso, e Orlando, captando seus olhos entre as cabeças de javali e os pavões recheados, riu também. Ele riu, mas o riso em seus lábios congelou de admiração. A quem teria amado, o que ele teria amado até agora?, perguntava a si mesmo, num tumulto de emoção. Uma velha senhora, que era só pele e ossos, respondia. Prostitutas de faces vermelhas, inúmeras para serem mencionadas. Uma monja choramingueira. Uma aventureira intratável e desbocada. Uma sonolenta massa de renda e etiqueta. O amor não tinha sido para ele mais do que serragem e cinzas. As alegrias que ele tinha experimentado, insípidas ao extremo. Admirava-se como pudera passar por isso sem bocejar. Pois quando a olhava, a espessura de seu sangue se derretia; o gelo se transformava em vinho em suas veias; ouvia as águas fluindo e os pássaros cantando; a primavera rompeu a pesada paisagem invernal; sua virilidade despertou; ele empunhou uma espada; investiu contra um inimigo mais ousado do que um polonês ou um mouro; mergulhou na água profunda; viu a flor do perigo crescendo numa fresta; estendeu a mão — na verdade, estava declamando um dos seus mais apaixonados sonetos quando a princesa se dirigiu a ele:
— Poderia ter a bondade de me passar o sal?
Ele corou violentamente.
— Com o maior prazer do mundo, Madame — respondeu, falando em francês com uma pronúncia perfeita. Pois, o céu seja louvado, ele falava a língua como se fosse a sua própria; a aia de sua mãe lhe havia ensinado. Contudo, porém, talvez tivesse sido melhor para ele que nunca tivesse aprendido aquela língua; nunca tivesse respondido àquela voz; nunca tivesse seguido a luz daqueles olhos...
continua pag 23...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.
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Leia também:
Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) - A princesa prosseguiu
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[1] Creio ter conhecido, na Polônia, no verão passado, um cavalheiro que era seu parente.
[2] A beleza das damas da corte da Inglaterra me encanta. Não se pode ver dama mais graciosa do que a vossa rainha, nem um penteado mais belo do que o seu.
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VERBO SOLTO: "Orlando", de Virgínia Woolf, por Eugenio Dale
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