quinta-feira, 17 de março de 2022

Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1b)

Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


PRIMEIRO ATO


CENA 1


continuando..



VITÓRIA
Vai, minha filha. Deus te abençoe.

A orquestra silencia; Fichinha sai pela porta giratória, volta, sai; volta, sai e na terceira volta quem entra é Genival, ou Geni, com uma chapeleira

GENI
Olá, todo mundo. Vitória, meu anjo, arranja um conhaque rápido senão eu tenho uma síncope. (Atira-se numa poltrona)

DURAN
Que houve, rapaz? Apanhou dum taifeiro?

VITÓRIA
Nossa, Genival, como você está pálido! Tá com cada olheira. . . (Vai buscar a garrafa

GENI 
É, devo estar mesmo um bofe! Imagina que nos bons tempos eu levava quatro, cinco noites de enfiada com os marujos na maior disposição. Agora que tô pra lá de balzaqueana, basta uma noite em claro pra me deixar podre e bolorenta.

VITÓRIA
Mas por dentro você deve estar uma bela viola. Eu sei como essas aventuras rejuvenescem o espírito.
 
GENI
Que aventura nada. Foi só uma festinha que o Max organizou.
 
DURAN
Continua cumpincha daquele safado, é?

VITÓRIA
Ih, Genival, me contaram que esse Max é um cafajeste!
 
GENI
Que nada, inveja do povo! Não é por ele ser meu patrão, mas se vocês conhecessem pessoalmente o Max, tenho certeza que ficariam cativados. Se vocês quiserem, eu posso trazer ele aqui dia desses. . .
 
VITÓRIA
Deus me livre e guarde, Genival!
 
DURAN
Um fora-da-lei não põe os pés nesta casa!
 
VITÓRIA
Me disseram até que ele é ateu e materialista!
 
GENI
Não sei, Vitória, mas é graças a ele que você pode andar assim cheirosa. . . (Abre a chapeleira) Olha, falando nisso o teu Aimant de Coty continua em falta. . . Deve ser por causa dessa porcaria de guerra. O Max disse que os alemães ocuparam as fábricas de perfume francês e agora só vão produzir ácidos e gases venenosos.
 
DURAN
Esse teu patrão deve estar adorando a guerra. Pra quem vive do câmbio negro, nada como um black-out.
 
GENI
É, mas eu continuo achando uma bosta, essa guerra. Um fedor! Se eu fosse presidente, os meus soldadinhos iam pra guerra cheirando a jasmim.
 
VITÓRIA
O que é que você tem aí?
 
GENI
Olha, isto aqui o Max conseguiu por milagre. É o que há de melhor, o dernier cri. Fica um pouquinho mais caro mas vale a pena. Chama-se Shalimar. Lembra muito o Aimant, também é à base de sândalo. . . Ah, Duran, eu quase ia esquecendo. A farra de ontem foi num dos teus puteiros, lá na Mem de Sá.
 
DURAN
Ah, é? Pelo menos o teu Max deve ter garantido um bom movimento, pra quarta-feira de chuva. A Dorinha Tubão já deve estar chegando com o borderô. . .

GENI
Gostou do buquê, Vitória? Não é especial? Fica com os três frasquinhos que eu faço um desconto. Deixo por oitocentos. . .
 
DURAN
Oitocentos mil-réis de perfumaria? Isso é um assalto!
 
GENI
Bem, Vitória, se ele não quer pagar, paciência. Você pode comprar dessas lavandas nacionais que estão fabricando aí. Mas depois não vá reclamar, se ficar cheirando igual a sovaco de estivador. VITÓRIA
Dudu...
 
DURAN (Paga
Toma, ladrão.
 
GENI (Recebe
Duran, você tá falando no borderô do bordel e eu acho melhor se prevenir logo pra não esperar grande coisa. O Max nunca pagou uma puta na vida dele. Tem é muita puta que paga pra dormir com ele.
 
DURAN
Você quer dizer que esse vigarista fechou minha butique, comeu minhas balconistas e ainda deu o beiço?
 
GENI
Não, ele não. O Max só entrou de patrocinador e saiu cedo. Depois que ele saiu é que começou o melhor. Começou um quebra-quebra que não sei se sobrou alguma coisa em pé no teu puteiro.
 
DURAN
O quê? Mas isso é provocação!
 
VITÓRIA
É alta sabotagem!
 
GENI
Eu não quero desanimar ninguém não, mas tenho a impressão que vai precisar fechar aquele puteiro pra reformas.
 
VITÓRIA
E muito me admira que você, Genival, tenha participado dum vandalismo desses! E depois ainda tem o desplante de me vender perfume. Cínico!
 
GENI
Vitória, eu sou tua amiga mas não sou tua empregada. O meu patrão é o Max e o que ele ordena eu obedeço. Ontem a ordem era comemorar e a turma dele, que já não é das mais raffinées, comemorou mesmo!
 
DURAN
Comemorou o quê? Só se for a minha falência. Até logo, Vitória, eu vou à butique ver o estrago. . .
 
GENI
Comemoramos a despedida de solteiro do Max, ora.
 
VITÓRIA
Despedida de solteiro?
 
GENI
Ué, vocês não sabiam? Que horas são? Ah, a esta altura o Max já é um homem casado.
 
DURAN
Não acredito.
 
GENI
Pois é, foi uma decisão repentina. Ninguém esperava mesmo...
 
DURAN
Max? Max casado? Bem, talvez isso seja uma boa notícia, afinal. Quem sabe se agora ele toma jeito e deixa de se meter com as minhas mulheres.
 
VITÓRIA
Duvido e faço pouco. Esse tipo de homem não se satisfaz com uma só mulher. Oh, eu só fico pensando é no destino da coitada que foi parar nas mãos desse bandido.
 
DURAN
Que coitada o quê! Deve ser uma putinha!
 
VITÓRIA
A família dessa moça, então, nem quero pensar na desgraça que se abateu sobre esse lar. Calcule o que não deve estar padecendo a mãe dessa moça.
 
DURAN
Deve ser uma putona, a mãe dessa moça. Pai, então, ela nunca ouviu falar. Deve ser gentinha que vive nos mesmos buracos que o Max frequenta. Não é, Genival?
 
GENI
Olha, eu não conheço a moça, mas parece que ela é louça fina. O Max nunca levou ela a puteiro não. Ontem mesmo ele saiu de lá às oito e meia pra encontrar a noiva. Ia levar ela pra ver o Grande Otelo no Cassino da Urca.
 
VITÓRIA
Aonde?
 
GENI
Pois é, no Cassino da Urca, olha que chique. Parece até que ela é uma jovem muito simpática, culta, prendada. .. E rica, é claro. Diz que a família dela tem muito dinheiro.
 
DURAN
Café?
 
GENI
Não, parece que é gado. Os negócios da família dela, eu não entendo não, parece que são uns comércios meio atrapalhados... Os pais dela moram por aqui mesmo, na Lapa, que é onde eles têm esses comércios.
 
DURAN
Gado? Na Lapa? Então tá explicado! Essa mocinha fina é filha dum açougueiro.
 
GENI
Não é açougueiro não. Diz que ele trabalha com carne viva. Mas apesar disso, apesar dos pais serem bem ordinários, diz que a filha saiu diferente e que foi muito bem educada.
 
VITÓRIA
Quantos anos?
 
GENI
Uns vinte e poucos. . . Deve regular com a tua filha, Vitória. Por sinal, eu trouxe aqui um anel que deve ficar um amor no dedo duma mocinha. Olha só, Vitória, pura platina, com um big diamante da índia. . .
 
VITÓRIA
Diz logo o nome, Genival!
 
GENI
O nome? Solitário, esse brilhante é um solitário. Pra você eu faço um precinho camarada: três contos.
 
VITÓRIA
O nome da noiva, Geni!
 
GENI
Ah, o nome da noiva. . . Como é mesmo o nome da noiva? Ah, já sei! O nome da noiva é Teresinha Fernandes de Duran. (Duran e Vitória ficam paralisados) Engraçado, né? Que coincidência. Eu nem tinha notado. .. Com esse sobrenome, será que a moça não é parenta de vocês? 

Vitória berra e desmaia para cima de Duran que, no entanto, não ampara o corpo; sobe as escadas correndo e solta um urro
 
DURAN
Vitória, a cama da tua filha está intata! A vaquinha não dormiu em casa esta noite!
 
GENI
Acho que a Vitória morreu. Tá tão quietinha. . .
 
DURAN (Desce
Tem um porta-pó aí na mesa. Dá rapé pra ela cheirar, que ela entrou em estado depressivo. Dá logo duas porções pra ela superar a crise. Ah, o capitão! O gentleman! O cavalheiro das luvas de vidro! É o filho da puta do capitão Max! Esse cangaceiro é capaz de dissipar minha fortuna numa noite de roleta. E ainda joga a minha filha na mesa de bacará!
 
VITÓRIA (Levanta-se
Duran, o nosso nome está manchado. Uma vida inteira construindo uma reputação de dignidade e decoro, e da noite pro dia cai tudo por água abaixo! Agora é que a sociedade não nos recebe mesmo. O meu nome nunca vai sair na coluna do Jacinto de Thormes! Imagine! Luxuoso cocktail na casa da sogra do muambeiro. . . E eu que sonhava um dia entrar pra sócia do Country Club, agora sou capaz de levar bola preta no Bangu! Vou ser barrada até em porta de gafieira. Confeitaria Colombo, então, posso riscar da agenda. . . Que desgraça! Ah, não! Eu não vou permitir que façam isso comigo! Eu vou ao Papa! Vou conseguir a anulação desse casamento!
 
DURAN
Também não delira, Vitória. . .
 
VITÓRIA
Vou mesmo! Embarco no primeiro aeroplano! Outro dia li no Cruzeiro que o filho dum conde italiano anulou o casamento lá no Vaticano porque a noiva tinha bigode.
 
DURAN
Vitória, a gente está diante dum fato consumado. . .
 
GENI
Eu sinto muito ter dado a má notícia, Vitória. Mas já que a sua filha casou mesmo, você não vai dar um presentinho? Se eu abater pra dois contos, você fica com o solitário?
 
DURAN
Ô, Genival, enfia esse solitário. . .
 
GENI
Tá bem, tá bem, vou embora. Quero ver se ainda pego a fila dos cumprimentos. (Sai)
 
DURAN .
Vitória, vamos pensar nós dois juntos, com a cabeça fria. . .
 
VITÓRIA
Cabeça fria. . . Eu não consigo pensar! Eu me recuso a pensar! Só fico vendo como é inútil a gente tentar ser honesta neste mundo, Duran. Adiantou alguma coisa ser cidadão exemplar? Adiantou ser rotariano, adiantou? Ah, eu quero que esse homem morra! Quero ver o corpo desse homem crivado de chumbo, num barranco do rio da Guarda!
 
DURAN
O que é que você disse, Vitória?
 
VITÓRIA
Isso mesmo. Cheio de urubu disputando as tripas dele!
 
DURAN
Vitória, você disse tudo! Vou ter uma conversinha já já com o inspetor Chaves. Ele tá me devendo as calças e chegou a hora de acertar as contas. 

Black-out; orquestra ataca um breve interlúdio.



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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
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Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 2 (2a)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.



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