segunda-feira, 14 de março de 2022

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo


É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio Conselheiro...

A imagem é corretíssima.

Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas posto em função do meio, assombra. É uma diátese, e é uma síntese. As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais — vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade.

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensavam no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela própria receptividade mórbida do espírito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.

É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...

Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda; acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos.

Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A multidão aclamava o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranquilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo.

Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranoia, de Tanzi e Riva.

Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de atavismo.

A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando-lhes as relações com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie.




Um gnóstico bronco


Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista encontrá-lo-ia normal, marcando logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da evolução. O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização — um anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro de nossa era, aspectos religiosos vulgares. Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em período angustioso da vida portuguesa.

Poderíamos apontá-los em cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja, quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na última fase do mundo romano em que, precedendo o assalto dos Bárbaros, a literatura latina do Ocidente declinou, de súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio.

Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiólatras, os maniqueus bifrontes entre o ideal cristão emergente e o budismo antigo, os discípulos de Marcos, os encratitas abstinentes e macerados de flagícios, todas as seitas em que se fracionava a religião nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E foram normais. Acolchetaram-se bem a todas as tendências da época em que as extravagâncias de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de Marco Aurélio, com as suas procissões fantásticas, os seus mistérios e os seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador filósofo...

A história repete-se.

Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco.

Veremos mais longe a exação do símile.




Grande homem pelo avesso


Paranoico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que patenteou, caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência intelectual, mas não o isolou — incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde — no meio em que agiu.

Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. Era o servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela ideia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível.

A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia.

Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados. Não a transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram.




Representante natural do meio em que nasceu


O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou-a sem a comprimir, numa harmonia salvadora. De sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns.




Antecedentes de família. Os Maciéis


A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. Esclarece o conceito etiológico da doença que o vitimou. Delineemo-la de passagem.

“Os Maciéis que formavam, nos sertões entre Quixeramobim e Tamboril, uma família numerosa de homens válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação, vieram, pela lei fatal dos tempos, a fazer parte dos grandes fastos criminais do Ceará, em uma guerra de família. Seus êmulos foram os Araújos, que formavam uma família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da província.

Viviam na mesma região, tendo como sede principal a povoação de Boa Viagem, que demora cerca de dez léguas de Quixeramobim.

Foi uma das lutas mais sangrentas dos sertões do Ceará, a que se travou entre estes dois grupos de homens, desiguais na fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências, e numerosos.”

Assim começa o narrador consciencioso breve notícia sobre a genealogia de Antônio Conselheiro.

Os fatos criminosos a que se refere são um episódio apenas entre as razzias, quase permanentes, da vida turbulenta dos sertões. Copiam mil outros de que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios dos mandões de aldeia e a exploração pecaminosa por eles exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo. Luta de famílias — é uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis, comprometendo as próprias descendências que esposam as desavenças dos avós, criando uma quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os rancores e as vinganças.




Lutas entre Maciéis e Araújos


Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos Maciéis em propriedade de família numerosa, a dos Araújos.

Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida. Eram “homens vigorosos, simpáticos, bem apessoados, verdadeiros e serviçais” gozando em toda redondeza de reputação invejável.

Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras, não viam, porém, com bons olhos, a família pobre que lhes balanceava a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e boiadas grandes. Criadores opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar castigo aos delinquentes. E como estes eram bravos até a temeridade, chamaram a postos a guarda pretoriana dos capangas.

Assim apercebidos, abalaram na expedição criminosa para Quixeramobim.

Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota. Os Maciéis, reunida toda a parentela, rapazes desempenados e temeros, haviam-se afrontado com a malta assalariada, repelindo-a vigorosamente, suplantando-a, espavorindo-a.

O fato passou em 1833.

Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados, cuja imbecilidade triunfante passara por tão duro trato, apelaram para recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não faltam hoje, facínoras de fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram dous, dos melhores: José Joaquim de Meneses, pernambucano sanhudo, célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões famosos; e um cangaceiro terrível, Vicente Lopes, de Aracatiaçu. Reunida a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos e genros de Silvestre, seguiu, de pronto, para a empreitada criminosa.

Ao acercarem-se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicários — embora fossem em maior número — temeram-lhes a resistência. Propuseram-lhes que se entregassem, garantindo-lhes, sob palavra, a vida. Aqueles, certos de não poderem resistir por muito tempo, aquiesceram. Renderam-se. A palavra de honra dos bandidos teve, porém, o valor que poderia ter. Quando seguiam debaixo de escolta e algemados, para a cadeia de Sobral, logo no primeiro dia da viagem foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião, entre outros, o chefe da família. Antônio Maciel, e um avô de Antônio Conselheiro.

Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado e além disto com as pernas amarradas por baixo da barriga do cavalo que montava, a sua fuga é inexplicável. Afirma-a, contudo, a sisudez de cronista sincero.

Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário. Perseguiram-no. Bem armados, bem montados, encalçaram-no, prestes, em monteria bárbara, como se fossem sobre rastros de suçuarana bravia. O foragido, porém, emérito batedor de matas, seguido na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a escolta perseguidora chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio da “Passagem”, perto de Quixeramobim, ocultou-se, exausto, numa choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica.

Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os perseguidores. Eram nove horas da manhã. Houve então uma refrega desigual e tremenda. O temerário sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou-se com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se avantajara aos demais. Este caiu transversalmente à soleira da porta, impedindo-a que se fechasse. A irmã de Miguel Carlos, quando procurava arrastá-lo dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara-a o próprio Pedro Veras, que pagou logo a façanha, levando a queima-roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores recuaram por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse rapidamente a porta.

Isto feito, o casebre fez-se um reduto. Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de espingarda. Os bandidos não ousaram investi-lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de folhas.

O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no abrigo em chamas, Miguel Carlos resolve abandoná-lo. Derrama toda a água de um pote na direção do fundo da choupana, apagando momentaneamente as brasas e, saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja-se, de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra o círculo assaltante. Rompe-o e afunda na caatinga...

Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico criador de Tapaiara; e no dia das núpcias, já perto da igreja, tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero da noiva desditosa.

Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo...

Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra irmã, Helena Maciel, a “Nêmesis da família”, conforme o dizer do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos, muitos dos quais desconhecidos senão fabulados pela imaginação fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a urdidura de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto que o rastreava, em Quixeramobim.

Diz a narrativa a que acima nos reportamos:

“Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O que é certo é que, não obstante a sorte que tivera aquele seu apaniguado, costumava estar na vila.

Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de Freitas, viu entrar um indivíduo, que procurava comprar aguardente. Dando-o como espião, falou em matá-lo ali mesmo, mas sendo detido pelo dono da casa, tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, a faca, ao sair da vila, no riacho da Palha.

Uma manhã, finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado com uma sua parenta, e foi banhar-se no rio, que corre por trás dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila, junto à garganta que conduz à pequena praça Cotovelo. Nos fundos da casa indicada era então a embocadura do riacho da Palha, que em forma quase circular contornava aquela praça, e de inverno constituía uma cinta lindíssima de águas represadas. Miguel Carlos estava já despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de inimigos, que o esperavam acocorados por entre o denso mata-pasto. Estranhos e parentes de Miguel Carlos, tomando as roupas depostas na areia, e vestindo-as ao mesmo tempo que corriam, puseram-se em fuga. Em ceroulas somente, e com a sua faca em punho, ele correu também na direção dos fundos de uma casa, que quase enfrenta com a embocadura do riacho da Palha; casa na qual morava em 1845 Manuel Francisco da Costa. Miguel Carlos chegou a abrir o portão do quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá-lo, foi prostrado por um tiro, partido do séquito, que o perseguia. Outros dizem que isto se dera, quando ele passava pelo buraco da cerca de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a sua faca na mão, quando Manuel de Araújo, chefe do bando, irmão do noivo outrora assassinado, pegando-o por uma perna, lhe cravou uma faca. Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra facada na carótida, morrendo ambos instantaneamente, este por baixo daquele! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito, pisou a pés a cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita da perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo!

Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio Mendes Guerreiro, da família de Araújo, agente do correio da Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só no propósito de matá-los.

Helena não se abateu com esta desgraça. Nêmesis da família, imolou um inimigo aos manes do seu irmão. Foi ela, como ousou confessar muitos anos depois, quem mandou espancar barbaramente a André Jacinto de Sousa Pimentel, moço de família importante da Vila, aparentado com os Araújos, a quem atribuía os avisos que estes recebiam em Boa Viagem, das vindas de Miguel Carlos. Desse espancamento resultou uma lesão cardíaca, que fez morrer em transes horrorosos o infeliz, em verdade culpado dessa derradeira agressão dos Araújos.

O fato de ter sido o crime perpetrado por soldados do destacamento de linha, ao mando do alferes Francisco Gregório Pinto, homem insolente, de baixa educação e origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez acreditar muito tempo que fora esse oficial mal reputado o autor do crime. Helena deixara-se ficar queda e silenciosa.

Inúmeras vítimas anônimas fez esta luta sertaneja, que dizimava os sequazes das duas famílias, sendo o último dos Maciéis — Antônio Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Viagem. Ficou célebre muito tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele seus parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da energia dessa família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para uma luta com poderosos tais, como os da Boa Viagem e Tamboril.”

Não prossigamos.




Uma vida bem auspiciada


Nada se sabe ao certo o papel que coube a Vicente Mendes Maciel, pai de Antônio Vicente Mendes Maciel (o Conselheiro), nesta luta deplorável. Os seus contemporâneos pintam-no como “homem irascível mas de excelente caráter, meio visionário e desconfiado, mas de tanta capacidade que sendo analfabeto negociava largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de memória, sem mesmo ter escrita para os devedores”.

O filho, sob a disciplina de um pai de honradez proverbial e ríspido, teve educação que de algum modo o isolou da turbulência da família. Indicam-no testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente tranquilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído, avesso à troça, raro deixando a casa de negócio do pai, em Quixeramobim, de todo entregue aos misteres de caixeiro consciencioso, deixando passar e desaparecer vazia a quadra triunfal dos vinte anos. Todas as histórias, ou lendas entretecidas de exageros, segundo o hábito dos narradores do sertão, em que eram muita vez protagonistas os seus próprios parentes, eram-lhe entoadas em torno evidenciando-lhes sempre a coragem tradicional e rara. A sugestão das narrativas, porém, tinha o corretivo enérgico da ríspida sisudez do velho Mendes Maciel e não abalava o ânimo do rapaz. Talvez ficasse latente, pronta a se expandir em condições mais favoráveis. O certo é que falecendo aquele em 1855, vinte anos depois dos trágicos sucessos que rememoramos, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vida corretíssima e calma.

Arrostando com a tarefa de velar por três irmãs solteiras revelou abnegação rara. Somente depois de as ter casado procurou, por sua vez, um enlace que lhe foi nefasto.




Primeiros reveses


Data daí a sua existência dramática. A mulher foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária, que desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios.

A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação de caráter. Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidades de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima índole desta, tornam instável a sua situação.

Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões.

Nesta agitação, porém, percebe-se a luta de um caráter que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de fortuna, Antônio Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens do lar, ao chegar a qualquer nova sede de residência procura logo um emprego, um meio qualquer honesto, de subsistência. Em 1859, mudando-se para Sobral, emprega-se como caixeiro. Demora-se, porém, pouco ali. Segue para Campo Grande, onde desempenha as funções modestas de escrivão do Juiz de Paz. Daí, sem grande demora, se desloca para Ipu. Faz-se solicitador, ou requerente no fórum.

Nota-se já em tudo isto um crescendo para profissões menos trabalhosas, exigindo cada vez menos a constância do esforço; o contínuo despear-se da disciplina primitiva, a tendência acentuada para a atividade mais irrequieta e 68 mais estéril, o descambar para a vadiagem franca. Ia-se-lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a antiga serenidade.

Este período de vida mostra-o, todavia, aparelhado de sentimentos dignos. Ali estavam, em torno, permanentes lutas partidárias abrindo-lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros, ligando-se aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha o prestígio tradicional da família. Evitou-as sempre. E na descensão contínua, percebe-se alguém que perde o terreno, mas lentamente, reagindo, numa exaustão dolorosa.




A queda


De repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em queda formidável. Foge-lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta obscuridade.

Desce para o sul do Ceará.

Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere com ímpeto de alucinado, à noite, um parente, que o hospedara. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima reconhecendo a não culpabilidade do agressor. Salva-se da prisão. Prossegue depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E desaparece...

Passaram-se dez anos. O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido. Apenas uma ou outra vez lhe recordavam o nome e o termo escandaloso da existência, em que era magna pars um Lovelace de coturno reiúno, um sargento de polícia.

Graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens natais breve resquício de sua lembrança.

Morrera por assim dizer.


continua 068...


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Leia também:

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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: III ... Tradições
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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...

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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.



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