terça-feira, 26 de abril de 2022

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV Como se faz um monstro ...

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




Como se faz um monstro ...

E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos...
É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos. Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dous anos depois da partida do Crato. Das palavras desta testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares em destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude...
Tornou-se logo alguma cousa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas.
Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma sombra, das chapadas povoadas de duendes...
Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.
Dominava-os por fim, sem o querer.
No seio de uma sociedade primitiva que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo o domínio que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjecturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, exteriorizada. Espelhavam-lha a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção delirante, entre os quais evolve a loucura nos cérebros abalados. Remodelava-o à sua imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente, a vida, lançando-lhe dentro os erros de dous mil anos.
Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus...
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças.
E cresceu tanto que se projetou na História...


Peregrinações e martírios

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874.
Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos
— camisolão azul, sem cintura; chapéu de abas largas, derrubadas; e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas.
Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava aos poucos solitários. Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro.
Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte da Bahia. Ia-lhe crescendo o prestígio. Já não seguia só. Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis. Não os chamara. Chegaram-lhe espontâneos, felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provações e misérias. Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândola de vencidos da vida, vezada à mândria e à rapina.
Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro, encerrando a imagem do Cristo.
Nas paradas pelos caminhos prendiam-no a um galho de árvore; e, genuflexos, rezavam. Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos, e povoados, num coro de ladainhas.
Assim se apresentou o Conselheiro, em 1876, na vila do Itapicuru de Cima. Já tinha grande renome.
Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.
“Apareceu no sertão do Norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura.”
Estes dizeres, rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distância, delatam bem a fama que ele já granjeara.


Lendas

Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária. Foi, ali, naquele mesmo ano, entre o espanto dos fiéis, inopinadamente preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida excepcional e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam-no assassino da esposa e da própria mãe.
Era uma lenda arrepiadora.
Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê-la. Revelara, por isto, ao filho, que era traído; e como este, surpreso, lhe exigisse provas do delito, propôs-se apresentá-las sem tardança. Aconselhou-o a que fantasiasse qualquer viagem, permanecendo, porém, nos arredores, porque veria, à noite, invadir-lhe o lar o sedutor que o desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando-se cerca de meia légua, torceu depois de rédeas, tornando, furtivamente, por desfrequentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde pudesse observar bem e agir de pronto.
Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto aproximando-se de sua vivenda. Viu-o achegar-se cautelosamente e galgar uma das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu-o com um tiro.
Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a esposa infiel, adormecida.
Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara... E viu com horror que era sua própria mãe, que se disfarçara daquele modo para a consecução do plano diabólico.
Fugira, então, na mesma hora, apavorado, doudo, abandonando tudo, ao acaso, pelos sertões em fora...
A imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica.


O asceta

Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1876 a repressão legal o atingiu quando já se ultimara a evolução do seu espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava-se-lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios mais duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das secas; inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a, em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das caatingas...
Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, esse sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria, “descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e importuno da alma impaciente por fugir...”.
Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão era incidente mínimo. Recebeu-a indiferente. Proibiu aos fiéis que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da Bahia. Ali, a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentes caindo pelos ombros, emaranhando-se nos pelos duros da barba descuidada, que descia até a cintura — aferroaram a curiosidade geral.
Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e “pelos-sinais” dos crentes assustados e das beatas retransidas de sustos.
Interrogaram-no os juízes estupefatos.
Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea.
A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente nas estradas. Não formulou a mais leve queixa.
Quedou na tranquila indiferença superior de um estoico.
Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita — no dia do embarque para o Ceará pediu às autoridades que o livrassem da curiosidade pública, a única coisa que o vexava.
Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia, é posto em liberdade. E no mesmo ano reaparece na Bahia entre os discípulos, que o aguardavam sempre.
Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara, no momento de ser preso — tomou aspectos de milagre.
Tresdobrou a sua influência.
Vagueia então algum tempo, pelos sertões de Curaçá, estacionando (1877) de preferência em Xorroxó, lugarejo de poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores daquele trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica-lhe, ainda, hoje, a estadia. E, mais venerável talvez, pequena árvore, à entrada da vila, que foi muito tempo objeto de uma fitolatria extraordinária. À sua sombra descansara o peregrino. Era um arbusto sagrado. À sua sombra curvavam-se os crédulos doentes; as suas folhas eram panaceia infalível.
O povo começava a grande série de milagres de que não cogitava talvez o infeliz...
De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até ao litoral, em Vila do Conde (1887).
Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe, Mocambo, Maçacará, Pompal, Monte Santo, Tucano e outros, viram-no chegar, acompanhado da farândola de fiéis. Em quase todas deixava um traço de passagem: aqui um cemitério arruinado, de muros reconstruídos; além uma igreja renovada; adiante uma capela que se erguia, elegante sempre.
A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silêncio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam-se as ocupações normais. Ermavam-se as oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando, fazia-se autoridade única.
Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes.


As prédicas

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas...
Era truanesco e era pavoroso.
Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse...
Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopeia fatigante.
Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido por uma ou outra frase mais incisiva. Enunciava-a e emudecia; alevantava a cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar — uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo. A multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, com o estranho hipnotismo daquela insânia formidável.
E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre: conseguia não se tornar ridículo...
Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem as ouviu não se forra a aproximações históricas sugestivas. Relendo as páginas memoráveis1 em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoudados chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência integral de suas aberrações extintas. Não há desejar mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas palavras quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos entre os povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos místicos do passado. Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso de uma perspectiva através dos séculos...
Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários que Fouillée compara, em imagem feliz, à des coureurs sur le champ de la civilisation, de plus en plus en retard.


Preceitos de montanista

É um dissidente do molde exato de Themison. Insurge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. Esboça uma moral que é a tradução justalinear da de Montano: a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção do casamento.
O frígio pregava-a, talvez como o cearense, pelos ressaibos remanescentes das desditas conjugais. Ambos proíbem severamente que as moças se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras; insistem do mesmo modo, especialmente, sobre o luxo dos toucados; e — o que é singularíssimo — cominam, ambos, o mesmo castigo a este pecado: o demônio dos cabelos, punindo as vaidosas com dilaceradores pentes de espinho.
A beleza era-lhes a face tentadora de Satã. O Conselheiro extremou-se mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas, mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros.


Profecias

Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do passado as concepções absurdas do esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo na Terra... O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do anticristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo próximo...
Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo quanto os maculasse com um leve traço da vaidade. Todas as fortunas estavam a pique da catástrofe iminente e fora temeridade inútil conservá-las.
Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da vida um purgatório duro; e não a manchassem nunca com o sacrilégio de um sorriso. O Juízo Final aproximava-se, inflexível.
Prenunciavam-se anos sucessivos de desgraças:
“...Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão. Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéos e poucas cabeças. Em 1899 ficarão as aguas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam porque há um só pastor e um só rebanho!”
Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora o próprio Cristo que pressagiara a sua vinda quando
“na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus apóstolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós deixaes? Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae terno, pregando sermão pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas e capellinhas e dando seus conselhos...”
E no meio desse extravagar adoudado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando-o à insurreição contra a forma republicana:
“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com a Prussia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exercito. Desde o principio do mundo que encantou com todo seu exercito e o restituio em guerra. E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até os corpos e elle disse: Adeus mundo! Até mil e tantos a dois mil não chegarás! Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada deste papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até a junta grossa...”

Um heresiarca do século II em plena idade moderna

O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias.
Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do judaísmo?
Não há encobri-lo. Ademais este voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões, não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço judaico. Montano reproduz-se em toda a história, mais ou menos alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra a hierarquia eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas canonizados dos concílios.
A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongado sempre e ao cabo de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II.
Abeirara-se apenas do catolicismo mal compreendido.


Tentativas de reação legal

Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas homilias, penitências que de ordinário redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se cemitérios em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros e carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. Durante dias seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos salários se averbavam nos céus.
E terminada a empresa o predestinado abalava... para onde? Ao acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas chapadas multívias, sem olhar sequer para os que o encalçavam.
Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre. A dar-se crédito a testemunho valioso,1 aquele, em geral, estimulava-lhe ou permitia-lhe as práticas pelas quais, sem nada usufruir, promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero: batizados, desobrigas, festas e novenas.
Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo endemoninhado que ao menos lhes acrescia a côngrua reduzida. Percebeu-o, em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando pôr paradeiro a esta transigência, senão mal disfarçada proteção, por uma circular dirigida a todos os párocos.
“Chegando ao nosso conhecimento, que pelas freguesias do centro deste arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente rígida2 com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Revma., que não consinta em sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos Paroquianos que lhes proibimos absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo na igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os povos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtuoso, não tem autoridade para exercê-la.  
Entretanto sirva isto para excitar cada vez mais o zelo de V. Revma, no exercício do ministério da pregação, a fim de que os seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento de doutrina” etc.
Foi inútil a intervenção da Igreja.
Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. E como se desejasse reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve constantemente ao Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou para os poderes constituídos, em ofício onde, depois de historiar ligeiramente os antecedentes do agitador, disse:
“...Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no referido arraial construindo uma capela a expensas do povo.
Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável, para o lugar, todavia os excessos e sacrifícios não compensam este bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais que justo e fundado o receio de grandes desgraças.
Para que V. Sa. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta dizer que é acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem-no e cumprem suas ordens de preferência às do vigário da paróquia.
O fanatismo não tem limites e assim é quem, sem medo de erro, e firmando em fatos, posso afirmar que adoram-no, como se fosse um Deus vivo.
Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja féria semanal é de quase cem mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses, aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que têm sido remetidas para outras obras do Xorroxó, termo do Capim Grosso.”
E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos:
“Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se tivesse de ferir uma batalha campal, e consta que estão à espera que o vigário vá ao lugar denominado Junco para assassiná-lo. Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas, facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de ser infenso a Antônio Conselheiro.”
Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não foi correspondido. Nenhuma providência se tomou até meados de 1887, quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o arcebispo ao presidente da província, pedindo providências que contivessem o “indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel que pregando doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer de que era Espírito Santo” etc.
Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu-se ao ministro do Império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o notável argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago; e o presidente oficiou de novo ao prelado, tornando-o ciente da resolução admirável do governo.
Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram durante o Império.


Mais lendas

Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora, avultando na imaginação popular.
Apareciam as primeiras lendas.
Não as arquivaremos todas.
Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem pesado baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida, que dous homens apenas o levantem; e o que não haviam conseguido tantos, realizaram os dous, rapidamente, sem esforço algum...
Outra vez — ouvi o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado fanatizar! — chegou a Monte Santo e determinou que se fizesse uma procissão pela montanha acima, até a última capela, no alto. Iniciou-se à tarde a cerimônia. A multidão derivou, lenta, pela encosta clivosa, entoando benditos, estacionando nos passos, contrita. Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto, agitada pela ventania forte a cabeleira longa, arrimando-se ao bordão inseparável. Desceu a noite. Acenderam-se as tochas dos penitentes, e a procissão, estendida na linha de cumeadas, traçou uma estrada luminosa no dorso da montanha...
Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e queda-se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas...
A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela, enquanto outros permanecem fora ajoelhados sobre a rocha aspérrima.
O contemplativo, então, levanta-se. Mal sofreia o cansaço. Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, pendida para o chão a cabeça, humílimo e abatido, arfando.
Ao abeirar-se do altar-mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda, assombrada... Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem Santíssima...
Estas e outras lendas são ainda correntes no sertão. É natural. Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente de redução da nossa nacionalidade. Arrastava o povo sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as aberrações daquele. Favorecia-o o meio e ele realizava, às vezes, como vimos, o absurdo de ser útil. Obedecia à finalidade irresistível de velhos impulsos ancestrais; e jugulado por ela espelhava em todos os atos a placabilidade de um evangelista incomparável.
De feito, amortecia-lhe a nevrose inexplicável placidez.
Certo dia o vigário de uma freguesia sertaneja vê chegar à sua porta um homem extremamente magro e sucumbido: longos cabelos despenteados pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de peregrino a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um lado entre as camândulas da cintura, e o manto poento e gasto, e a borracha d’água, e o bordão comprido...
Dá-lhe o pároco com que se alimente, aceita um pedaço de pão apenas; oferece-lhe um leito, prefere uma tábua sobre que se deita sem cobertas, vestido, sem mesmo desatacar as sandálias.
No outro dia o singularíssimo hóspede, que poucas palavras até então pronunciara, pede ao padre lhe conceda pregar por ocasião da festa que ia realizar-se na igreja.
— Irmão, não tendes ordens; a Igreja não permite que pregueis.
— Deixai-me, então, fazer a via sacra.
— Também não posso, vou eu fazê-la, contraveio mais uma vez o sacerdote.
O peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer palavra tirou de sob a túnica um lenço. Sacudiu o pó das alpercatas. E partiu.
Era o clássico protesto inofensivo e tranquilo dos apóstolos...




Hégira para o sertão

A reação, porém, crescendo, malignou-lhe o ânimo. Dominador incondicional, principiou de se irritar ante a menor contrariedade.
Certa vez, em Natuba, estando ausente o vigário, com quem não estava em boas graças, apareceu e mandou carregar pedras para consertos da igreja. Chega o padre; vê a invasão dos domínios sagrados; irrita-se e resolve pôr embargos à desordem. Era homem prático; apelou para o egoísmo humano.
Tendo a Câmara, dias antes, imposto aos proprietários o calçamento dos passeios das casas, cedeu ao povo, para tal fim, as pedras já acumuladas.
O Conselheiro não se limitou, desta vez, a sacudir as sandálias. Saiu-lhe da boca a primeira maldição, às portas da cidade ingrata; e partiu.
Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência política do local o chamou. O templo desabava, em ruínas; o mato invadira todo o cemitério; e a freguesia era pobre. Só podia renová-los quem tão bem dispunha dos matutos crédulos. O apóstolo deferiu ao convite. Mas fê-lo através de imposições discricionárias, relembrando, com altaneria destoante da pacatez antiga, a afronta recebida.
Iam-no tornando mau.
Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente inteiramente nova.
Originou-a fato de pouca monta.
Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos, etc.
Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou-o a imposição; e planejou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o “auto de fé”, que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a insurreição contra as leis.
Avaliou, depois, a gravidade do atentado.
Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte Santo, para o norte.
O acontecimento repercutia na capital, de onde partiu numerosa força de polícia para prender o rebelde e dissolver os grupos turbulentos. Estes naquela época não excediam duzentos homens. A tropa alcançou-os em Massete, lugar desabrigado e estéril entre Tucano e Cumbe, nas cercanias das serras do Ovó. As trinta praças, bem armadas, atacaram impetuosamente a turba de penitentes depauperados, certas de os destroçarem à primeira descarga. Deram, porém, de frente, com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente desbaratadas, precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar exemplo o próprio comandante.
Esta batalha minúscula teria, infelizmente, mais tarde, muitas cópias ampliadas.
Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes. Demandavam o deserto.
O desbarato da tropa prenunciava-lhes perseguições mais vigorosas; e, certos do amparo da natureza selvagem, contavam com a vitória enterreirando entre as caatingas os novos contendores. Estes partiram, de fato, sem perda de tempo, da Bahia, em número de oitenta praças, de linha. Mas não prosseguiram além de Serrinha, de onde tornaram sem se aventurarem com o sertão. Antônio Conselheiro, porém, não se iludiu com o inexplicável recuo, que o salvara. Arrastou a matula de fiéis, a que se aliavam, dia a dia, dezenas de prosélitos, pelas trilhas sertanejas fora, seguindo prefixado rumo.
Conhecia o sertão. Percorrera-o todo numa romaria ininterrupta de vinte anos. Sabia de paragens ignotas de onde o não arrancariam. Marcara-as já talvez, prevenindo futuras vicissitudes.
Endireitou, rumo firme, em cheio para o norte.
Os crentes acompanharam-no. Não inquiriram para onde seguiam. E atravessaram serranias íngremes, tabuleiros estéreis e chapadas rasas, longos dias, vagarosamente, na marcha cadenciada pelo toar das ladainhas e pelo passo tardo do profeta...



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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.


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