terça-feira, 19 de julho de 2022

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: V... Polícia de bandidos

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




Polícia de bandidos

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a poeira, no dizer dos jagunços — viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.
Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinquência especial, traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves faltas.
O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! do dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto!
Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.
Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias era permitida, desde que aumentasse o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembleia Estadual da Bahia.




Depredações

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razzia escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranha para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.
Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava conta dos desmandos.
Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país transformam a fantasia do sufrágio universal na calva de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.
Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a lei marca, denominando-as “eleições”, eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.
Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém, exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado, — ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que lhes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões.



Do céu veio uma luz
Que Jesus Cristo mandou.
Santo Antônio Aparecido
Dos castigos nos livrou!

Quem ouvir e não aprender
Quem souber e não ensinar
No dia do Juízo
A sua alma penará!


Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivavam-lhe, porventura, os últimos traços da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por excelência.
O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.




O templo

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo.
A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a pureza principal da religião antiga.
Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.
Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para fazer o saco nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em piquetes vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada.
Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.
É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloquência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet...
Devia ser como foi. Devia surgir, mole formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhe a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores...
Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável; mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante.
Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante sobre o edifício monstruoso.
Não faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.
Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.




Estrada para o céu

Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas fascinadoramente traiçoeiras que levam ao Inferno. Canudos, imunda ante-sala do Paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo repugnante, aterrador, horrendo...
Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentado esperanças singulares. “Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.”
Chegavam.
Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas...
Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam do misticismo lamentável...




As rezas

Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob a latada coberta de folhagens. Derramava-se pela praça. Ajoelhava.
Difundia-se nos ares o coro do primeira reza.
A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos.
Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras.
Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de Antônio Conselheiro, a multidão repartia-se, separados os sexos, em dous agrupamentos destacados. E em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes...




continua 084...

______________________

Leia também:


OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES - A Terra: III O clima
OS SERTÕES - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES - A Terra: IV As caatingas
OS SERTÕES - A Terra: IV A tormenta
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - A Terra: V Como se extingue o deserto
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: I Variabilidade do meio físico
OS SERTÕES - O Homem: I ...e sua reflexão na História
OS SERTÕES - O Homem: II ... A gênese do jagunço
OS SERTÕES - O Homem: II ... O vaqueiro
OS SERTÕES - O Homem: II ... Um parêntese irritante
OS SERTÕES - O Homem: III ... O sertanejo é, antes de tudo, um forte
OS SERTÕES - O Homem: III ... Servidão inconsciente
OS SERTÕES - O Homem: III ... Tradições
OS SERTÕES - O Homem: III ... Religião mestiça
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...
OS SERTÕES - O Homem: V... Canudos antecedentes
OS SERTÕES - O Homem: V   Polícia de bandidos
OS SERTÕES - O Homem: V... Agrupamento bizarro 

______________________


Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.



Nenhum comentário:

Postar um comentário