terça-feira, 11 de outubro de 2022

Edgar Allan Poe - Contos: O Homem das Multidões (b)

Edgar Allan Poe - Contos



O Homem das Multidões
Título original: The Man of the Crowd
Publicado em 1840


continuando...


Podia agora estudá-lo à minha vontade. Era baixo, muito magro e aparentemente fraco. Trazia o fato porco e rasgado, mas quando passou defronte de um candelabro reparei que a sua camisa, apesar de suja, era de boa qualidade; e se os olhos não me enganaram, através de um rasgão do capote evidentemente comprado em segunda mão, que o envolvia todo, brilhavam um diamante e um punhal. Estas observações excitaram-me a tal ponto a curiosidade que resolvi seguir o desconhecido por toda a parte onde lhe aprouvesse ir.

Era já noite cerrada e o nevoeiro espesso, que pairava sobre a cidade, ia-se convertendo em chuva grossa e contínua. Aquela mudança de tempo produziu um efeito bizarro sobre a multidão, que se agitou com um movimento novo, escondendo-se sob um mundo de chapéus de chuva.

A ondulação, os encontrões e o zunzum das vozes tornaram-se dez vezes mais fortes. Pela minha parte não fiz grande caso da chuva (ardia-me ainda no sangue um resto de febre antiga, de sorte que a humidade para mim, embora perigosa, era uma voluptuosidade). Atei um lenço à volta do pescoço e deixei-me ir. Durante mais de meia hora o velho lutou com dificuldades para abrir caminho através da grande artéria e eu então quase que tinha de caminhar em cima dele para não o perder de vista. Mas como nunca se voltava para trás, não podia dar por mim. Daí a pouco meteu-se por uma travessa, a qual, embora cheia de gente, não estava tão atulhada como a rua principal que acabávamos de deixar. Quando chegou ali começou a andar lentamente, com uma certa hesitação. Atravessou e tornou a atravessar a multidão diferentes vezes sem fim algum aparente; e a multidão era tão espessa que cada movimento novo me obrigava a segui-lo mais de perto. A rua era estreita e comprida. O homem passeou-a durante cerca de uma hora e nesse meio tempo a turba dos transeuntes reduziu-se, a pouco e pouco, à quantidade de gente que se vê de ordinário em Broadway, perto do parque, tão grande é a diferença entre a concorrência de Londres e a da cidade americana mais populosa.

Uma segunda mudança de itinerário levou-me a uma praça brilhantemente iluminada, exuberante de vida. Então as maneiras do homem voltaram à primeira forma: deixou pender a barba sobre o peito, ergueu os olhos por baixo das sobrancelhas carregadas, olhou para todos os lados e apressou o passo. Causou-me surpresa vê-lo voltar para trás depois de ter dado a volta à praça e fiquei ainda mais admirado quando o vi recomeçar aquele passeio umas poucas de vezes. De uma vez, ao voltar-se subitamente, ia-me descobrindo. Este exercício levou-lhe ainda uma hora, durante a qual a quantidade de transeuntes havia diminuído consideravelmente. A chuva caía grossa, o ar resfriava, cada um tratava de se recolher.

Com um movimento de impaciência, o homem errante passou para uma rua obscura, relativamente deserta. Depois desatou a correr (durante cerca de um quarto de milha) com uma agilidade que eu não teria nunca suspeitado num ser tão velho. A sua agilidade era tal que me custava a segui-lo. Pouco depois desembocámos num bazar vasto e tumultuoso. O desconhecido, que apresentava sempre um ar apropriado às localidades, retomou o seu andar primitivo, furando por aqui e por ali através da multidão de compradores e vendedores.

Durante a hora ou hora e meia que divagámos naquele lugar, tive de fazer uso de uma total prudência para não o perder de vista sem ao mesmo tempo lhe atrair a atenção. Felizmente as minhas galochas de borracha não faziam no solo o mínimo ruído; por isso, o nosso homem não chegou nunca a perceber que era seguido. Ele entrava sucessivamente em todas as lojas, não comprava nada, não dizia uma palavra e mirava tudo com um olhar vago e espantado. A sua conduta maravilhava-me cada vez mais, estimulando-me a não o largar enquanto não tivesse satisfeito a minha curiosidade.

Ao soar das onze horas, toda a gente se deu pressa a sair do bazar. Tendo sido empurrado por um lojista, que fechava apressadamente os mostradores, o homem estremeceu violenta e convulsivamente, saiu para a rua, olhou um instante com ansiedade em redor de si, depois marchou, com uma velocidade incrível, através de muitas travessas tortuosas e desertas, até chegarmos outra vez à grande rua do hotel de onde havíamos partido. Contudo, o aspecto da rua tinha mudado. O gás dos revérberos continuava a brilhar, mas a chuva caía copiosamente e apenas de vez em quando se viam alguns viandantes. O desconhecido empalideceu. Deu alguns passos, com um ar triste, na avenida há pouco populosa, depois suspirou profundamente, tomou a direção do rio e, internando-se num labirinto de travessas e becos afastados, chegou finalmente defronte de um dos teatros principais, que estava prestes a fechar e cujo público se precipitava para a rua por todas as portas. O homem abriu a boca, como que para respirar, e meteu-se no meio da multidão. Ao mesmo tempo pareceu-me ver diminuir a tristeza profunda da sua fisionomia. Deixou pender outra vez a cabeça sobre o peito e retomou a forma sob a qual me aparecera da primeira vez. Observei que se dirigia sempre para onde o apertão era maior; mas de resto não pude compreender absolutamente nada do seu comportamento bizarro.

Entretanto, o público ia-se dispersando e na mesma proporção voltaram ao velho a sua tristura e as suas hesitações. Seguiu de perto, durante muito tempo, um grupo de dez ou doze estroinas, mas pouco a pouco, um a um, o número diminuiu, reduzindo-se a três indivíduos que ficaram todos numa rua estreita, obscura e pouco frequentada. Então o desconhecido fez uma pausa e pareceu ficar, durante um momento, imerso em profundas reflexões. De súbito, com uma agitação evidente, enfiou a toda a pressa por um caminho que nos conduziu ao extremo da cidade, a regiões muito diferentes das que havíamos atravessado até ali.

Estávamos agora no bairro mais insalubre de Londres, onde todos os objetos têm o estigma horrível da pobreza misérrima e do vício incurável. À luz acidental de um revérbero sombrio, apercebiam-se as casas de pau, altas, antigas, carunchosas, ameaçando ruína e em direções tão várias e tão numerosas que mal se podia adivinhar, no meio delas, a aparência de uma passagem. As pedras da calçada, expulsas dos seus alvéolos pela relva triunfante, andavam espalhadas ao acaso; as valas das ruas estavam obstruídas pelas imundícies estagnadas. Toda a atmosfera regurgitava de desolação. Contudo, à medida que avançávamos, sentíamos reavivarem-se gradualmente os ruídos da vida humana. Por fim apareceram, oscilantes por aqui e por acolá, vastos bandos de homens dos mais infames que compõem a povoação de Londres. O espírito do velho tornou a palpitar, como a luz de um candeeiro prestes a extinguir-se. Avançou outra vez com um passo elástico. De repente, ao quebrar de uma esquina, apareceu-nos a luz flamejante de um desses templos enormes suburbanos da intemperança, um palácio do demónio Gin.

Era quase madrugada, mas a turba dos bêbados miseráveis apertava-se ainda em torno da faustuosa porta. Ante aquele espetáculo tumultuoso, o velho deu quase um grito de alegria; retomou logo a fisionomia primitiva e começou a passar e a repassar em todos os sentidos, pelo meio da multidão, sem fim algum aparente. No entanto, não havia ainda muito tempo que ele se entregava àquele exercício quando um movimento anormal na direção das portas anunciou que o taverneiro achava estar na hora de fechar. O que observei então na fisionomia do ser singular que me inspirava tanto interesse foi alguma coisa mais intensa do que o desespero. Todavia, sem um momento de hesitação e com uma energia louca, voltou imediatamente atrás, ao centro da poderosa Londres. Correu ligeiramente durante muito tempo (e eu sempre atrás dele, com um espanto crescente que me incitava cada vez mais a não abandonar uma investigação na qual o meu espírito se absorvia tão inteiramente).

Enquanto prosseguíamos a nossa carreira, levantou-se o sol. Quando chegamos outra vez ao ponto de reunião comercial da populosa cidade, a rua do hotel D... apresentava um aspecto de atividade e de movimento humanos quase igual ao que havíamos presenciado na noite precedente. E ainda ali, no meio da confusão sempre crescente, obstinei-me longo tempo a seguir o desconhecido.

Como de ordinário ele passeava de um para o outro lado e em todo o dia não saiu do turbilhão daquela rua. Aproximavam-se já as sombras da segunda noite... Eu estava extenuado! Então, estacando defronte do homem errante, olhei-o intrepidamente. Mas sem me prestar a mínima atenção, continuou o seu passeio solene, ao passo que eu, tendo renunciado a persegui-lo mais tempo, ficava absorto e pasmado na sua contemplação!

Este velho, disse eu por fim para comigo, é o tipo e o génio do crime profundo: o homem que não pode estar só, o homem das multidões. Segui-lo-ia em vão, pois nunca chegaria a saber coisa alguma, nem dele nem das suas ações!

Um coração perverso é um livro mais repelente do que o Hostulus animae; e é talvez uma das grandes misericórdias de Deus que es loesst sich nicht lesen (que não se deixa ler).


continua na página 312...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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