domingo, 2 de abril de 2023

Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (03)

Edgar Allan Poe - Contos


Os Crimes da Rua Morgue
Título original: The Murders in the Rue Morgue 
Publicado em 1841


continuando...

Dupin parecia interessar-se extraordinariamente pelo seguimento deste caso, pelo menos no que eu podia julgar nos seus modos, porque ele não fazia nenhum comentário. Foi só depois de o jornal ter anunciado a prisão de Lebon que ele me perguntou que opinião eu tinha relativamente a estes dois crimes. Não pude confessar-lhe senão que pensava como Paris inteira e que o considerava um mistério insolúvel. Não via nenhum meio de encontrar o rasto do criminoso.

— Não devemos julgar os meios possíveis — diz Dupin — apenas por um conhecimento embrionário. A Polícia parisiense, tão gabada pela sua ação, é muito astuciosa, nada mais. Procede sem método, não tem outro processo, apenas o do momento. Faz-se aqui um grande alarde de medidas, mas acontece muitas vezes que são tão inoportunas e tão mal adequadas que dão que pensar a M. Jourdain, que pedia o « seu roupão para ouvir melhor a música» . Os resultados obtidos são algumas vezes surpreendentes, mas são, na maior parte dos casos, simplesmente devidos à diligência e à atividade. No caso destas faculdades serem insuficientes, os planos falham. Vidocq, por exemplo, era bom de compreender e um homem paciente, mas o seu raciocínio não estava suficientemente educado, enveredava constantemente por uma pista falsa, pelo próprio ardor das suas investigações. A intensidade da sua visão diminuía ao observar o objeto demasiado perto. Podia sim, observar um ou dois pontos com uma clareza estranha, mas devido ao seu procedimento, perdia a visão do seu conjunto. A isso pode chamar-se o meio de ser demasiado profundo. A verdade nem sempre está num poço. Em suma, quanto ao que se refere às noções que nos interessam mais de perto, creio que está invariavelmente à superfície. Procuramo-la na profundidade do vale e é no cume das montanhas que o descobrimos.

« Encontram-se na contemplação dos corpos celestes exemplos e amostras excelentes deste género de erro. Repare numa estrela de relance, olhe obliquamente, voltando para ela a parte lateral da retina (muito mais sensível à luz fraca que o centro), e verá nitidamente a estrela; terá a apreciação mais justa do seu brilho, brilho esse que diminui à medida que dirige para ela toda a pupila.

« No último caso, incide no olho um maior número de raios, mas no primeiro tem uma recetividade mais completa, uma suscetibilidade muito mais intensa. Uma profundidade exagerada enfraquece o pensamento e torna-o inseguro; e é possível fazer desaparecer do firmamento a própria Vénus devido a uma atenção demasiado mantida, muito concentrada e muito direta.

« Quanto a este assassínio, façamos nós mesmos um exame antes de formar uma opinião. Uma investigação provocará uma diversão (encontrei esta palavra estranha aplicada ao caso em questão, mas não digo palavra); e, além disso, Lebon prestou-me um serviço e não posso mostrar-me ingrato. Iremos aos lugares, para examinar com os nossos próprios olhos. Eu conheço G..., o prefeito da Polícia, e obteremos sem dificuldade a necessária autorização.»

Depois de a obtermos fomos direitos à Rua Morgue. É uma dessas miseráveis passagens que ligam a Rua Richelieu à Rua de Saint-Roch. Fomos da parte da tarde, e chegámos a uma hora bastante avançada, porque este bairro está situado a uma grande distância do que habitamos. Encontrámos bem depressa a casa, porque havia uma imensidade de pessoas que a contemplavam do outro lado da rua, com uma curiosidade doentia. Era uma casa como todas as de Paris, com um portal largo, e num dos lados um nicho quadrado, envidraçado, com uma armação móvel que representa o cubículo da porteira. Antes de entrarmos subimos a rua, virámos numa alameda e passámos pelas traseiras da casa. Dupin, entretanto, examinava os arredores, bem como a própria casa, com uma minuciosa atenção cujo objetivo eu não podia adivinhar.

Voltámos para a frente; tocámos, declinámos a nossa identidade e os polícias permitiram a entrada. Subimos até ao quarto onde tinham encontrado o corpo da menina L’Espanaye e onde permaneciam ainda os dois cadáveres. A desordem do quarto tinha sido respeitada como é costume fazer-se em semelhantes casos. Não vi nada mais do que tinha constado na Gazette des Tribunaux. Dupin analisou minuciosamente tudo, sem excetuar os corpos das vítimas.

Entrámos em seguida nos outros quartos e descemos para os pátios, sempre acompanhados por um polícia.

Este exame durou muito tempo e era noite quando nos retirámos. Ao regressar à nossa casa, o meu camarada parou por alguns instantes no escritório de um jornal. Disse já que o meu amigo tinha todas as espécies de excentricidades e que eu as respeitava. Desta vez deu-lhe para se recusar a qualquer conversa relativamente ao assassínio, até ao meio-dia do dia seguinte.

Foi então que ele me perguntou bruscamente se eu tinha notado alguma coisa de « particular» no local do crime. Ele teve uma entoação « particular» ao pronunciar essa palavra, o que me fez arrepiar sem que eu soubesse porquê.

— Não, nada de particular — respondi. — Nada mais, pelo menos, do que ambos lemos no jornal.

— A Gazette — prosseguiu — não penetrou no horror insólito deste caso. Mas deixemos por aqui as opiniões idiotas deste jornal. Parece-me que o mistério é considerado como insolúvel, pela mesma razão que deveria fazê-lo encarar como de fácil solução, e quero falar do caráter excessivo sob o qual ele aparece. Os polícias estão confundidos também pela ausência aparente de motivos legitimando não o assassínio em si, mas a atrocidade do assassino. Estão embaraçados também pela impossibilidade aparente em conciliar as vozes que altercavam com o facto de se não encontrar no alto da escada outra pessoa senão a menina L’Espanaye, assassinada, e que não tinha nenhuma forma de sair sem ser vista pelas pessoas que subiam a escada. A estranha desordem do quarto, o corpo introduzido com a cabeça para baixo na chaminé, a medonha mutilação do corpo da senhora idosa — estas considerações juntas às que mencionei e às outras das quais não tenho necessidade de falar, bastam para paralisar a ação dos agentes do ministério e para derrotar completamente a sua perspicácia tão elogiada. Eles cometeram a enorme e muito comum falta de confundir o extraordinário com o absurdo. Mas é justamente ao seguir estes desvios do curso vulgar da natureza que a razão encontrará o seu caminho, se a coisa é possível e se está encaminhada para a verdade. Nas investigações do género da que nos preocupa não é preciso perguntar como as coisas se passaram, mas sim estudar porque é que elas se distinguem de tudo o que aconteceu até ao presente. A faculdade pela qual chegarei — ou já cheguei — à solução do mistério, está na razão direta da sua insolubilidade aparente aos olhos da Polícia.

Fixei Dupin com um espanto mudo.

— Espero agora — continuou ele, deitando um olhar para a porta do nosso quarto — um indivíduo, que, se bem que não seja talvez o autor desta carnificina, deve encontrar-se em parte implicado na sua perpetração. E provável que esteja inocente da parte atroz do crime. Espero não me enganar nesta hipótese, porque é baseado nesta hipótese que espero decifrar todo o enigma. Aguardo aqui o homem — neste quarto — de um momento para o outro. É verdade que pode muito bem não vir, mas há algumas possibilidades de que venha. Se vier, será necessário vigiá-lo. Estão aqui as pistolas e ambos sabemos para que é que elas servem quando a ocasião o exige.

Peguei nas pistolas sem saber muito bem o que fazia, mal podendo acreditar no que ouvia — enquanto Dupin continuava mais ou menos num monólogo. Já falei dos seus modos distraídos nesses momentos. O seu discurso dirigia-se a mim; mas a sua voz, se bem que regulada por um diapasão muito vulgar, tinha essa entoação que se dá habilmente ao falar a alguém colocado a uma grande distância. Os seus olhos tinham uma expressão vaga, não deixavam de fixar a parede.

— As vozes que discutiam — dizia ele — as que se ouviam quando as pessoas subiam a escada não eram as dessas infelizes mulheres. Isso é uma prova bem evidente. Isto leva-nos a abandonar a hipótese de que a senhora de idade teria assassinado a filha e se teria suicidado em seguida.

« Não falo do caso senão por amor ao método, porque a força da senhora L’Espanay e era absolutamente insuficiente para introduzir o corpo da filha na chaminé, da maneira como a descobriram; e a natureza dos ferimentos encontrados na sua própria pessoa exclui por completo a ideia de suicídio. Portanto, o assassínio foi cometido por terceiros, e as vozes deles eram as que se ouviram a questionar

« Permita-me agora chamar a sua atenção — não sobre os depoimentos relativos a essas vozes — mas sobre o que havia de “particular” nestas.»

— Reparei que, enquanto todas as testemunhas concordavam em considerar a voz grossa como sendo a de um francês, havia um grande desacordo em relação à voz aguda, ou, como definira um só indivíduo, à voz áspera.

— Isso constitui a evidência — disse Dupin — mas não a particularidade da evidência. Não reparou em nada de especial; no entanto, havia « qualquer coisa» para observar. As testemunhas, repare bem, estão de acordo sobre a voz grossa, são unânimes nisso. Mas, relativamente à voz aguda, há uma particularidade — não consiste no seu desacordo — mas nisto, pois que um italiano, um inglês, um espanhol, um holandês, tentam descrevê-la; cada um fala como de uma voz de « estrangeiro» , cada qual está seguro de que não era a de um compatriota.

« Cada um compara-a, não com a voz de um indivíduo cujo idioma lhe seria familiar, mas justamente ao contrário. O francês presume que era a voz de um espanhol e poderia distinguir algumas palavras se ele estivesse familiarizado com o espanhol. O holandês afirma que era a voz de um francês; mas está estabelecido que a testemunha, não sabendo o francês, foi interrogada por meio de um intérprete. O inglês pensa que era a voz de um alemão, e ele não compreende o alemão. O espanhol está absolutamente certo de que era a voz de um inglês, mas julga apenas pela pronúncia, porque não tem nenhum conhecimento de inglês. O italiano crê que é a voz de um russo, mas nunca conversou com uma pessoa da Rússia.

« Um outro francês, no entanto, difere do primeiro e está certo de que era a voz de um italiano; mas não tendo conhecimento desta língua faz como o espanhol, certifica-se pela pronúncia. Ora esta voz era, portanto, bem insólita e bem estranha, para que se não possa a seu respeito ter testemunhos semelhantes? Uma voz cuja entoação alguns cidadãos de cinco partes da Europa não puderam identificar. Dir-me-á que era talvez a voz de um asiático ou de um africano. Os africanos e os asiáticos não abundam em Paris; mas, sem negar a possibilidade do caso, chamaria simplesmente a sua atenção sobre três pontos.

« Uma testemunha descreve a voz assim: “Mais áspera do que aguda.” Duas outras falam como de uma voz “rápida e sacudida”. Estas testemunhas não distinguem nenhuma palavra — nenhum som que se pareça com palavras.»

— Não sei — continuou Dupin — que impressão possa fazer sobre o seu raciocínio, mas não hesito em afirmar que se podem tirar deduções legítimas em relação às duas vozes. A voz grossa e a voz aguda são suficientes em si para levantar uma dúvida que indicaria o caminho em toda esta investigação ulterior do mistério.


continua na página 346...

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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