sábado, 20 de setembro de 2025

Moby Dick: 32 - Cetologia (a)

Moby Dick

Herman Melville

32 - Cetologia

      Já fomos corajosamente lançados nas profundezas do mar; em breve estaremos perdidos em sua imensidão sem praias nem portos. Antes que isso aconteça; antes que o casco com algas do Pequod balance ao lado do casco coberto de cracas do Leviatã; desde o princípio, será conveniente tratar de um assunto quase indispensável para um entendimento satisfatório das mais particulares revelações e alusões leviatânicas de todos os tipos que se seguirão.
     Trata-se de uma exposição sistemática da baleia em todos os seus genera, que eu gostaria de apresentar aqui. Não é uma tarefa fácil. A classificação dos componentes de um caos é o que se tentará fazer. Veja o que escreveram as autoridades mais competentes e mais atualizadas.

“Nenhum ramo da Zoologia é tão complexo quanto a Cetologia”, diz o capitão Scoresby, no ano da graça de 1820.
“Não é minha intenção, mesmo que fosse possível, iniciar uma pesquisa sobre o verdadeiro método de classificar os cetacea em grupos e famílias. […] Uma confusão extrema reina entre os historiadores desse animal” (o cachalote), diz o Cirurgião Beale, no ano da graça de 1839.
 “Impossibilidade de dar prosseguimento à nossa pesquisa nas águas insondáveis.” “Um véu impenetrável cobre nosso conhecimento sobre os cetáceos.” “Um campo coberto de espinhos.” “Todas essas indicações incompletas servem apenas para torturar-nos, a nós, naturalistas.”

     Nesses termos falam da baleia o grande Cuvier, e John Hunter, e Lesson, expoentes da zoologia e da anatomia. Ainda que de real conhecimento exista pouco, muitos são os livros; e o mesmo sucede, em menor escala, com a Cetologia, ou a ciência das baleias. São muitos os homens, pequenos ou grandes, velhos ou jovens, da terra ou do mar, que escreveram pouco ou extensamente sobre a baleia. Vejamos alguns: – os Autores da Bíblia; Aristóteles; Plínio; Aldrovandi; Sir Thomas Browne; Gesner; Ray; Lineu; Rondeletius; Willoughby; Green; Artedi; Sibbald; Brisson; Marten; Lacépède; Bonneterre; Desmarest; Barão Cuvier; John Hunter; Owen; Scoresby; Beale; Bennett; J. Ross Browne; o autor de Miriam Coffin; Olmsted; e o reverendo Henry T. Cheever. Mas com qual propósito final em geral escreveram, os trechos citados acima demonstram com clareza.
     Dos nomes dessa lista de escritores, somente os que vêm depois de Owen viram baleias vivas; e apenas um deles foi arpoador e baleeiro profissional. Refiro me ao Capitão Scoresby. Sobre o caso específico da baleia franca ou da baleia da Groenlândia, ele é a melhor autoridade existente. Mas Scoresby nada sabia e nada comenta sobre o grande cachalote, comparado com o qual a baleia da Groenlândia não é digna de nota. E seja dito que a baleia da Groenlândia é uma usurpadora do trono dos mares. Não é de modo nenhum a maior das baleias. Mas devido à prioridade de seus direitos, e à ignorância profunda que até setenta anos atrás cercava o então fabuloso e desconhecido cachalote, ignorância que persiste até os nossos dias, salvo em alguns ambientes acadêmicos e determinados portos; essa usurpação se completou em todos os aspectos. As referências em quase todas as alusões leviatânicas feitas pelos poetas do passado mostram que a baleia da Groenlândia, sem nenhuma rival, era a soberana dos oceanos. Mas chegou finalmente a hora de uma nova proclamação. Estamos em Charing Cross: escutai, gente! – A baleia da Groenlândia foi deposta – Reina agora o grande cachalote!
     Há apenas dois livros que se propõem apresentar o cachalote vivo ao leitor e que têm um êxito relativo nessa tentativa. São os livros de Beale e de Bennett; ambos em seu tempo foram cirurgiões de navios baleeiros ingleses nos Mares do Sul, ambos homens precisos e confiáveis. A matéria original sobre o cachalote que se encontra nesses volumes é necessariamente escassa; mas, tão longe quanto vão, de excelente qualidade, ainda que restrita sobretudo à descrição científica. Até agora, no entanto, o cachalote, científico ou poético, ainda não vive inteiro em literatura alguma. Mais do que qualquer outra baleia perseguida, sua vida ainda está por ser contada.
     Ora, as várias espécies de baleias necessitam de um tipo de classificação compreensível e acessível às pessoas, mesmo se for apenas um rápido esboço a ser completado posteriormente por pesquisas subsequentes. Como não se apresenta ninguém melhor qualificado para realizá-lo, ofereço meus modestos préstimos. Não prometo nada completo; porque todas as coisas humanas que se suponham completas são, por esse motivo, imperfeitas. Não farei uma descrição anatômica minuciosa das várias espécies ou – pelo menos aqui – uma descrição exaustiva. Meu objetivo aqui se limita ao esboço de uma sistematização da Cetologia. Sou o arquiteto, não o construtor.
      Mas é uma tarefa que tem peso; não serviria para um simples classificador de cartas dos Correios. Procurá-las tateando no fundo do mar; colocar as mãos entre as fundações indizíveis, nas costelas, na própria pélvis do mundo; isso é uma coisa temerosa. Quem sou eu para esboçar ganchos e prender o nariz desse Leviatã? Os terríveis insultos em Jó deveriam me amedrontar. “Fará ele [o Leviatã] um pacto contigo? Atenção, vã é a esperança de vê-lo!” Mas nadei pelas bibliotecas e naveguei pelos oceanos; lidei com as baleias com as minhas próprias mãos; falo sério; e vou tentar. Há preliminares a serem definidas.
      Primeiro: a incerta e controvertida condição dessa ciência da Cetologia é em seu próprio vestíbulo atestada pelo fato de que em alguns meios ainda é discutível se a baleia é ou não um peixe. Em seu Sistema da Natureza, do ano da graça de 1766, Lineu declara, “Aqui distingo as baleias dos peixes”. Mas, que eu saiba, até o ano de 1850, os tubarões e o sável, as sabogas e o arenque, contra o édito explícito de Lineu, ainda dividiam a posse dos mesmos mares do Leviatã.
     As razões alegadas por Lineu para banir das águas as baleias são as seguintes: “Em virtude de seu coração quente e bilocular, dos pulmões, das suas pálpebras móveis, dos ouvidos ocos, penem intrantem feminam mammis lactantem”,{a} e finalmente, “ex lege naturæ jure meritoque”.{b} Mostrei tudo isso aos meus amigos Simeon Macey e Charley Coffin, de Nantucket, ambos companheiros meus em certa viagem, e ambos concordaram que os fatos apresentados eram insuficientes. Charley sugeriu mesmo, com irreverência, que eram uma fraude.
      Saiba-se que, renunciando a toda discussão, eu compartilho o bom e velho ponto de vista de que a baleia é um peixe e invoco o sagrado Jonas para sustentar minha opinião. Esta premissa fundamental estabelecida, o passo seguinte é saber em que aspecto interno a baleia é diferente dos demais peixes. É Lineu, acima, quem oferece a você essas explicações. Resumidamente, são os seguintes: os pulmões e o sangue quente; ao passo que todos os outros peixes não têm pulmões e trazem sangue frio.
     Depois: como definiremos a baleia por suas características externas, de forma a classificá-la distintamente e para sempre? Para ser breve, então, a baleia é um peixe que solta um jato de água e tem uma cauda horizontal. Ei-la! Embora tímida, eis a definição que resulta de longa reflexão. Uma morsa solta jatos de água como uma baleia, mas a morsa não é um peixe, porque é anfíbia. Mas o último termo da definição é mais convincente se associado ao primeiro. Quase todo mundo deve ter percebido que todos os peixes conhecidos têm uma cauda que não é chata, mas vertical, ou seja, de cima a baixo. Mas as caudas dos peixes que soltam jatos de água, ainda que tenham uma forma parecida, estão invariavelmente na posição horizontal.
     Com a definição de baleia feita acima, não quero excluir da irmandade leviatânica nenhuma criatura do mar até agora identificada com a baleia pelos mais bem informados nativos de Nantucket; por outro lado, também não quero incluir nenhum peixe até agora considerado estranho.{c} Portanto, todos os peixes pequenos, com cauda horizontal e que soltam jatos d’água, devem ser incluídos neste plano fundamental da Cetologia. Em seguida, vêm as grandes divisões do exército de baleias.

Continua na página 131...
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Leia também:

Moby Dick: Etimologia, Excertos, Citações
Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 32 - Cetologia (a)
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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