segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Moby Dick: 10 - Um Amigo do peito

Moby Dick



Herman Melville




10 - UM AMIGO DO PEITO

Ao voltar da Capela à Estalagem do Jato, lá encontrei Queequeg todo sozinho; tinha saído da Capela um pouco antes da bênção. Estava sentado num banco diante do fogo, com os pés na lareira; com uma das mãos segurava, perto do rosto, seu pequeno ídolo negro; olhava atento para o rosto do ídolo e com um canivete delicadamente lhe diminuía o nariz, enquanto cantarolava para si mesmo em seu modo pagão.

Mas, sendo então interrompido, colocou a imagem de lado; e logo, dirigindo-se à mesa, pegou um livro grande e, colocando-o no colo, começou a contar as páginas com uma regularidade deliberada; a cada cinquenta páginas – parece-me – parava um pouco, olhava despreocupadamente à sua volta e soltava um longo e gorgolejante assobio de espanto. Depois recomeçava com as próximas cinquenta; parecia começar sempre no número um, como se não soubesse contar mais do que cinquenta, e era apenas com um tal número de cinquentas encontrados juntos que seu espanto diante da multidão de páginas surgia.

Com muito interesse, sentei-me a observá-lo. Embora fosse um selvagem, com horrendas marcas no rosto – na minha opinião, pelo menos –, suas feições tinham contudo algo que não era de modo algum desagradável. Você não pode esconder a alma. Através de todas as suas tatuagens sobrenaturais, pensei ter visto traços de um coração simples e honesto; e em seus olhos grandes e profundos, de um negro vívido e audaz, lampejava uma coragem capaz de desafiar mil demônios. E além de tudo isso o Pagão tinha uma certa altivez de postura, que nem mesmo sua incivilidade conseguia atrapalhar. Parecia um homem que nunca tinha se curvado diante de alguém, nem tido credores. Se isso se devia ao fato de estar sua cabeça raspada, deixando a testa mais livre e brilhante, aparentemente maior do que de outro modo seria, não arriscarei dizer; mas certo era que sua cabeça era frenologicamente excelente. Pode parecer ridículo, mas me lembrava a cabeça do General Washington, como vista nos bustos mais conhecidos. Tinha a mesma longa e gradual depressão acima das sobrancelhas, que também se projetavam como dois longos promontórios densamente cobertos pela mata. Queequeg era uma versão canibal de George Washington.

Enquanto eu o examinava assim minuciosamente, como que fingindo nesse ínterim estar olhando a tempestade da janela, ele não prestou atenção à minha presença e tampouco se incomodou em me lançar um simples olhar; mas parecia inteiramente ocupado em contar as páginas daquele livro maravilhoso. Considerando a sociabilidade com que dormíramos juntos na noite anterior e, em especial, considerando o braço afetuoso que encontrei jogado em cima de mim enquanto acordava pela manhã, julguei sua indiferença muito estranha. Mas os selvagens são criaturas estranhas; às vezes você não sabe como lidar com eles. A princípio são intimidantes; sua simplicidade calma e contida parece uma sabedoria socrática. Também tinha notado que Queequeg nunca, ou quase nunca, se juntava aos outros marinheiros da estalagem. Não tomava nenhuma iniciativa; parecia não desejar aumentar o círculo das suas relações. Tudo isso me parecia muito estranho; mas, pensando melhor, havia algo de sublime nisso. Era um homem que estava a mais de vinte mil milhas de sua terra, a caminho do cabo Horn – que era o único caminho para se chegar lá –, jogado no meio de pessoas que para ele eram tão estranhas quanto se estivesse no planeta Júpiter; e, ainda assim, ele parecia bem à vontade; preservando ao máximo sua serenidade; satisfeito com sua própria companhia; sempre igual a si mesmo. É certo que isso era um toque de boa filosofia; embora ele sem dúvida jamais tivesse ouvido falar de algo parecido. Mas, talvez, para sermos verdadeiros filósofos, a nós, mortais, fosse necessário viver e lutar sem termos consciência disso. Tão logo um homem se apresente como filósofo, concluo que, como a velha dispéptica, ele deve ter “estragado o aparelho digestivo”.

Durante um tempo fiquei sentado ali naquele aposento solitário; o fogo baixo, num estágio intermediário após sua primeira intensidade ter aquecido o ar, apenas brilhando para ser olhado; as sombras e os fantasmas noturnos se juntando nos vãos das janelas, observando-nos, silenciosa e solitária dupla; a tempestade bramindo lá fora em ondas solenes; comecei a ter consciência de sentimentos estranhos. Senti algo derretendo em mim. Meu coração despedaçado e minhas mãos enlouquecidas já não se rebelavam contra o mundo lupino. Este selvagem conciliador o redimira. Lá estava ele sentado, sua indiferença era de uma natureza que não conhecia nem a hipocrisia civilizada, nem a fraude mais branda. Era um selvagem; um espetáculo dentre os espetáculos; contudo, comecei a me sentir misteriosamente atraído por ele. E aquelas mesmas coisas que teriam repelido a maioria dos outros eram os próprios ímãs que assim me atraíam. Vou experimentar um amigo pagão, pensei, já que a bondade Cristã se revelou mera cortesia vazia. Arrastei meu banco para perto dele e fiz sinais e gestos amistosos, enquanto me esforçava para falar com ele. No começo ele mal notou meus movimentos, mas dentro em pouco, quando me referi à sua hospitalidade da noite anterior, ele me perguntou se seríamos novamente companheiros de cama. Disse-lhe que sim; pareceu-me satisfeito, talvez até um pouco lisonjeado.

Nós então folheamos o livro juntos, e fui diligente em lhe explicar o propósito da impressão e o significado das poucas ilustrações que ali encontramos. Assim, logo cativei seu interesse; e em seguida passamos a tagarelar o mais que podíamos sobre outros lugares que podiam ser visitados nesta cidade famosa. De pronto propus que fumássemos; e, pegando sua bolsa para tabaco e sua machadinha, calmamente me ofereceu uma baforada. E ficamos então sentados, alternando baforadas daquele cachimbo esquisito, que passávamos um para o outro.

Se ainda restasse um vestígio de indiferença ou frieza no coração do Pagão em relação a mim, esta agradável e cordial cachimbada derreteu o gelo, e nos tornamos amigos íntimos. Ele parecia ter se afeiçoado a mim tão natural e espontaneamente quanto eu a ele; e, quando acabamos de fumar, encostou sua testa na minha, puxou-me pela cintura e disse que a partir daquele momento estávamos casados; o que significava no dizer de seu país que éramos amigos do peito; morreria por mim de boa vontade, se preciso fosse. Num conterrâneo, este súbito ardor de amizade teria parecido um pouco prematuro, algo bastante suspeito; mas a este simples selvagem as tais velhas regras não se aplicavam.

Após o jantar, e após novas conversas e fumadas, fomos juntos para o nosso quarto. Deu-me de presente sua cabeça embalsamada; pegou sua enorme bolsa de tabaco e, tateando por debaixo do tabaco, pegou uns trinta dólares em moedas; espalhou-as sobre a mesa e, dividindo-as mecanicamente em duas porções iguais, empurrou uma delas em minha direção e disse que eram minhas. Eu ia protestar; mas ele me deixou sem palavras quando as derramou nos bolsos de minha calça. Deixei-as ficar. Ele então começou suas orações noturnas, pegou seu ídolo e removeu o aparador. Devido a certos sinais e sons, pensei que ele devia estar ansioso para que eu me juntasse a ele; mas, sabendo bem o que aconteceria em seguida, deliberei por um momento se, caso ele me convidasse, deveria ou não aceitar.

Eu era um bom Cristão; nascido e logo trazido ao seio da infalível Igreja Presbiteriana. Como então poderia me unir a esse idólatra selvagem na adoração de seu pedaço de madeira? Mas o que é a adoração?, pensei. Você então supõe, Ishmael, que o magnânimo Deus do céu e da terra – e até dos pagãos – pode sentir ciúmes de um pedaço insignificante de madeira preta? Impossível! Mas o que é a adoração? – fazer o desejo de Deus – isso é adorar. E qual é o desejo de Deus? – fazer ao semelhante o que desejo que façam a mim – esse é o desejo de Deus. Ora, Queequeg é meu semelhante. E o que gostaria que Queequeg fizesse por mim? Ora, unir-se a mim em meu rito Presbiteriano de adoração. Portanto, eu devo unir-me a ele, logo, devo tornar-me um idólatra. Assim, acendi as aparas; ajudei a pôr o idolozinho inocente de pé; ofereci-lhe biscoito queimado com Queequeg; fiz uns dois ou três salamaleques diante dele; beijei seu nariz; terminadas essas cerimônias, nos despimos e fomos para a cama, em paz com as nossas consciências e em paz com o mundo todo. Mas não adormecemos sem antes papear um pouco.

Não sei por quê; mas não há lugar mais propício para confidências entre amigos do que uma cama. Marido e mulher, dizem, ali abrem até o fundo da alma um para o outro; e alguns casais idosos muitas vezes ficam deitados conversando sobre os velhos tempos até o amanhecer. E assim, na lua-de-mel de nosso coração, eu e Queequeg ficamos deitados – um casal aconchegante e amoroso.


Continua na página 63...

Moby Dick: 10 - Um Amigo do peito
Moby Dick: 11 - Camisola
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com o quê se identifica?


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