sábado, 6 de dezembro de 2025

Moby Dick: 42 - A Brancura da Baleia

Moby Dick

Herman Melville

42 -  A Brancura da Baleia
      
      O que a baleia branca era para Ahab, foi sugerido; o que era, por vezes, para mim, resta ainda dizer.
      À parte as considerações mais óbvias a respeito de Moby Dick, que ocasionalmente despertavam apreensões na alma de qualquer um, havia um outro pensamento, ou melhor, um horror impreciso e inominável a seu respeito que, às vezes, superava todo o resto por sua intensidade; e tão místico e alheio à expressão, como era, que chego a desesperar de tentar colocá-lo em forma compreensível. Era a brancura da baleia que, acima de tudo, me pasmava. Mas como posso ter a esperança de me explicar aqui? E, contudo, de modo difuso e aleatório, explicar-me é preciso, ou todos esses capítulos podem reduzir-se a nada.
     Ainda que em muitos objetos naturais a brancura realce com refinamento sua beleza, como se lhe transmitisse alguma virtude própria, como nos mármores, camélias e pérolas; e ainda que várias nações tenham reconhecido de algum modo uma proeminência real desse matiz sobre os demais; mesmo os antigos e poderosos reis de Pegu colocando o título de “Senhor dos Elefantes Brancos” acima de todas as outras atribuições magniloquentes de domínio; e os modernos reis de Sião desfraldando o mesmo quadrúpede branco como a neve em seu estandarte real; e a flâmula de Hanover mostrando uma única figura, a de uma montaria branca como a neve; e o poderoso Império Austríaco, herdeiro Cesáreo da Roma soberana, tendo como cor imperial o mesmo matiz; e ainda que essa proeminência se aplique à própria raça humana, concedendo ao homem branco o domínio ideal sobre toda tribo escura; e ainda que, além disso tudo, a brancura tenha até significado alegria, pois entre os romanos uma pedra branca marcava um dia de júbilo; e ainda que em outras mortais simpatias e simbologias este mesmo matiz seja o emblema de coisas nobres e tocantes – a inocência das noivas, a benignidade da velhice; ainda que entre os peles-vermelhas da América presentear com um cinturão branco de conchas, o wampum, fosse a mais profunda penhora da honra; e ainda que em muitos climas o branco represente a majestade da Justiça no arminho do Juiz e contribua para o fausto diário de reis e rainhas transportados por corcéis brancos como o leite; e ainda que nos mistérios mais elevados das religiões mais augustas tenha se tornado o símbolo do imaculado e do poder divino; entre os Persas adoradores do fogo, a chama branca bifurcada sendo a mais sagrada do altar; e nas mitologias gregas, o Poderoso Jove encarnando um touro branco como a neve; e ainda que para o nobre Iroquês o sacrifício do Cachorro Branco sagrado no meio do inverno fosse de longe o ritual mais sagrado de sua teologia, sendo essa criatura imaculada e fiel considerada a oferenda mais pura que podiam enviar ao Grande Espírito, junto aos votos anuais de sua própria fidelidade; e ainda que diretamente da palavra Latina para branco todos os padres Cristãos derivem o nome de uma parte de sua veste sagrada, a alva ou túnica, usada embaixo da batina; e ainda que nas pompas sacras da fé Romana, o branco seja especialmente usado para a comemoração da Paixão do Senhor; e ainda que na visão de São João o manto branco seja dado aos redimidos, e os vinte e quatro anciãos estejam vestidos de branco diante do grande trono branco, e o Santíssimo, que ali se senta branco como a lã; mesmo a despeito dessa reunião de associações a tudo que é encantador, respeitável e sublime, insinua-se algo furtivo na ideia mais íntima desse matiz, que incute mais de pânico na alma do que o vermelho que amedronta o sangue.
     Essa qualidade furtiva é que faz com que a idéia de brancura, quando divorciada de associações benévolas, e em par com um objeto terrível, agrave o terror ao seu limite mais extremo. Veja o urso polar, e o tubarão branco dos trópicos; que outra coisa senão sua brancura lisa ou encarquilhada faz com que sejam os horrores transcendentes que são? É essa brancura horripilante que transmite uma suavidade abominável, mais repugnante do que terrível, à satisfação muda e maligna de seu aspecto. De modo que nem o tigre, de garras ferozes em seu manto heráldico, consegue abalar tanto a coragem quanto o urso, ou o tubarão, de branca mortalha.{a}
     Pense no albatroz, de onde vêm aquelas nuvens de alumbramento espiritual e de pálido pavor, em meio às quais esse fantasma branco plana em todas as imaginações? Não foi Coleridge quem primeiro lançou o feitiço; mas a grandiosa, laureada e nunca lisonjeira Natureza divina.{b}
     A história mais famosa em nossos anais do Oeste e nas tradições indígenas é a do Corcel Branco das Pradarias; um magnífico cavalo branco como o leite, de olhos grandes e cabeça pequena, peito amplo, e com a dignidade de mil monarcas em seu porte altivo e desdenhoso. Foi o Xerxes eleito de todos os enormes bandos de cavalos selvagens, cujas pastagens, naquele tempo, tinham por único limite as montanhas Rochosas e os Alleghanies. Com sua liderança flamejante comandava-os para o oeste como a estrela eleita que todas as noites traz consigo legiões de luzes. A cascata reluzente de sua crina e o cometa recurvo de sua cauda investiam-no com adornos mais resplandecentes do que poderiam lhe oferecer os melhores artesãos de ouro e prata. Uma aparição imperial e arcangélica naquele mundo do ocidente não decadente, que aos olhos dos velhos armadores e caçadores fazia reviver a glória dos tempos primevos, quando Adão caminhava majestoso como um deus, enfunado e destemido como esse cavalo poderoso. Quer marchasse entre os seus ajudantes e marechais à frente das inúmeras coortes que serpenteavam interminavelmente pelas planícies, como um Ohio; quer pastasse com seus súditos, dando voltas por toda parte até o horizonte, o Corcel Branco, a galope, os passava em revista, com suas narinas quentes se avermelhando através de sua brancura leitosa e fresca; sob qualquer aspecto que se apresentasse, para os Índios mais corajosos era sempre objeto de respeito e trêmula reverência. Também não se pode questionar, a julgar pelos registros lendários sobre esse nobre animal, que era especialmente sua brancura espiritual que assim o revestia de divindade; e que essa divindade, embora inspirasse adoração, ao mesmo tempo reforçava um certo terror inominável.
     Mas há outros exemplos nos quais a brancura perde toda essa glória estranha e acessória que envolve o Corcel Branco e o Albatroz.
     O que há no Albino de tão repugnante e muitas vezes terrível, que ele é por vezes odiado por seus próprios amigos e parentes! É a brancura que o cobre, algo que se expressa pelo nome que carrega. O Albino é tão bem feito quanto qualquer outro homem – não tem uma deformidade substantiva –, e, no entanto, seu aspecto de brancura absoluta torna-o mais estranhamente medonho do que o mais horrível dos abortos. Por que será?
      Tampouco em outros aspectos a Natureza, por seus meios menos palpáveis, mas não por isso menos maliciosos, deixou de juntar às suas forças esse régio atributo do terrível. Por seu aspecto nevado, o fantasma de luvas dos Mares do Sul foi denominado Branca Tormenta. Tampouco, em certos casos históricos, a arte da maldade humana deixou de lado a ação de um auxiliar tão poderoso. Como reforçou o efeito daquela passagem de Froissart, quando, mascarados com o símbolo alvo de sua facção, os desesperados Chapéus Brancos de Ghent assassinaram seu bailio na praça do mercado!
     Nem tampouco, em algumas coisas, a experiência hereditária comum a toda a humanidade deixou de testemunhar o aspecto sobrenatural desse matiz. Não se pode duvidar de que a característica visível no aspecto de um defunto que mais assusta o observador é a palidez marmórea que ali jaz; como se de fato aquela palidez fosse tanto o emblema da consternação no outro mundo, como da atribulação mortal neste daqui. E da palidez dos defuntos emprestamos o matiz expressivo das mortalhas com as quais os envolvemos. Nem mesmo em nossas superstições deixamos de jogar o mesmo manto nevado sobre os nossos fantasmas; todos os espectros surgem em meio a uma neblina branca como leite – Sim, enquanto estes terrores nos assaltam, acrescentemos que mesmo o rei dos terrores, quando personificado pelo evangelista, cavalga um cavalo branco.
     Portanto, ainda que ele, sob outras paixões, simbolize qualquer coisa grandiosa ou graciosa por meio do branco, nenhum homem pode negar que, em seu significado ideal mais profundo, essa cor invoca na alma uma aparição peculiar.
      Mas ainda que sobre este ponto não haja dissenso, como o homem o explica? Pareceria impossível analisá-lo. Será que podemos, então, citando alguns casos nos quais essa questão da brancura – que embora provisoriamente despida, total ou parcialmente, de todas as associações diretas que nos levem ao reconhecimento do terror, ainda exerce sobre nós o mesmo feitiço, contudo modificado; – podemos, dessarte, ter a esperança de lançar alguma luz sobre uma pista casual que nos conduza à causa oculta que buscamos?
      Tentemos. Mas, num assunto como esse, sutileza demanda sutileza, e sem usar a imaginação nenhum homem consegue acompanhar um outro por estes salões. E embora, sem dúvida, pelo menos algumas das impressões imaginativas prestes a ser apresentadas possam ter sido sentidas por grande parte dos homens, talvez poucos deles tivessem plena consciência então, e, por isso, talvez não sejam mais capazes de lembrá-las agora.
     Por que, para o homem de imaginação sem brida que conhece apenas vagamente as características desse dia, a simples menção do Domingo Branco cria em sua fantasia uma longa procissão silenciosa e sombria de peregrinos caminhando lentamente, deprimidos e cobertos de neve recém caída? Ou para os broncos, brutos protestantes do centro dos Estados Unidos, por que a referência ocasional a um frade ou a uma freira vestidos de branco invoca uma estátua sem olhos na alma?
     Ou o que é que, além das tradições de guerreiros e reis atirados ao calabouço (que não explicam isso inteiramente), torna a Torre Branca de Londres tão mais fértil na imaginação do norte-americano de província, do que outras estruturas históricas, vizinhas – a torre Byward, ou mesmo a Bloody? E as torres ainda mais sublimes, as Montanhas Brancas de New Hampshire, de onde, em certas disposições de humor, vem aquela alucinação gigantesca na alma à simples menção de seu nome, enquanto a ideia da Serra Azul da Virgínia é repleta de sonhos meigos, orvalhados e difusos? Ou por que, a despeito de todas as latitudes e longitudes, o nome do Mar Branco exerce uma impressão tão fantasmagórica sobre a imaginação, enquanto o Mar Amarelo nos embala com pensamentos mortais de tardes longas, brilhantes e amenas sobre as ondas, seguidas dos mais agradáveis e indolentes poentes? Ou então, para escolher um exemplo totalmente irreal, endereçado à fantasia, por que, ao ler os antigos contos de fadas da Europa Central, o “homem pálido e alto” das florestas de Hartz, cujo palor imutável desliza silenciosamente pelo verde dos arvoredos – por que esse fantasma é mais terrível do que todos os demônios barulhentos de Blocksburg?
      Tampouco é, unicamente, a recordação de seus terremotos, destruidores de catedrais; nem o estampido de seus mares frenéticos; nem a secura de seus áridos céus que nunca chovem; nem a visão de seu vasto campo de torres inclinadas, cúpulas alquebradas e cruzes derrubadas (como as vergas inclinadas das frotas ancoradas); nem suas avenidas suburbanas onde as paredes das casas se empilham umas sobre as outras, como um baralho em desordem – não são essas coisas isoladamente que fazem de Lima, cidade sem lágrimas, a mais estranha e triste que tu poderias ver. Pois que Lima vestiu o véu branco; e existe um horror supremo na brancura de sua desgraça. Antiga como Pizarro, essa brancura mantém suas ruínas sempre novas; não admite o verdor alegre da ruína completa; espalha por toda sua fortificação destruída a palidez rígida de uma apoplexia que corrige suas próprias distorções.
     Bem sei que, na opinião da maioria, não se admite que o fenômeno da brancura seja o agente principal a realçar o terror dos objetos já em si terríveis; nem para as mentes sem imaginação há algo de terrível naquelas aparências, cujo horror, para um outro tipo de mente, consiste quase que exclusivamente nesse fenômeno, ainda mais quando se apresenta sob uma forma que se aproxime do silêncio ou da universalidade. O que quero dizer com essas duas afirmações talvez possa ser elucidado pelos seguintes exemplos.
     Primeiro: O marujo, quando se aproxima da costa de terras desconhecidas, se à noite escuta o rugir das ondas, fica vigilante, e sente um palpitar que lhe aguça as faculdades; mas, em circunstâncias muito similares, espere vê-lo ser chamado a sair da rede para contemplar seu navio velejando no mar noturno de uma brancura leitosa – como se, vindos dos promontórios das cercanias, bandos de ursos brancos de pelos alisados nadassem à sua volta, e então ele sente um medo mudo e supersticioso; a mortalha espectral das águas embranquecidas lhe é tão terrível quanto um verdadeiro fantasma; em vão o comando lhe assegura que ainda estão longe das águas rasas; coração e leme ambos baixam; e ele não descansa até que esteja outra vez sobre águas azuis. Mas que marujo diria: “Senhor, não foi tanto o medo de bater nos rochedos submersos que me deixou agitado, mas o medo daquela brancura hedionda”?
      Segundo: Para o Índio nativo do Peru, a contínua visão dos Andes e seus baixeiros de neve não transmite pavor, exceto, talvez, pelo simples imaginar da eterna desolação congelada que reina em altitudes tão vastas, e a ideia natural do terror que seria perder-se em solidões tão inóspitas. O mesmo sucede com o homem das florestas do Oeste, que com uma relativa indiferença contempla uma pradaria sem limites coberta pela neve, nem sombra de árvore ou galho que quebre o transe imóvel da brancura. Já não é assim com o marinheiro diante do cenário dos mares Antárticos; no qual, às vezes, por um ardil infernal de prestidigitação das potências do ar e do gelo, tremendo e a ponto de naufragar, em lugar de avistar um arco-íris que pudesse lhe trazer conforto e esperança em sua desgraça, vê o que parece um cemitério imenso que range à sua frente com seus monumentos de gelo inclinados e cruzes estilhaçadas.
     Mas, dizes tu, julgo que este capítulo alvaiadado sobre a brancura é apenas uma bandeira branca desfraldada por um espírito covarde; tu te rendeste à melancolia, Ishmael.
     Diga-me, então, por que esse potro jovem e forte, criado num vale pacífico de Vermont, longe dos animais predadores – por que é que se atrás dele se agitar, no dia mais ensolarado, uma veste feita de búfalo, de tal modo que ele nem a possa ver, mas apenas sentir seu cheiro animal almiscarado –, por que ele irá se sobressaltar, resfolegar e começar a patear a terra com os olhos esbugalhados num frenesi assustado? Não há nele recordação de ataques de criaturas selvagens de sua terra verde setentrional, de modo que o estranho almíscar que sente não pode suscitar lembranças de coisa alguma associada à experiência de perigos anteriores. O que sabe esse potro da Nova Inglaterra sobre os bisões negros do distante Oregon?
      Não! Mas aqui se vê, mesmo num animal que não fala, o instinto do conhecimento do demonismo no mundo. Ainda que a milhares de milhas do Oregon, quando sente aquele almíscar selvagem, as manadas de bisões que chifram e atacam se tornam tão presentes como o são para o abandonado potro selvagem das pradarias, que naquele instante pode estar sendo pisoteado na poeira.
     Assim, então, as ondulações sufocadas do mar leitoso; o ruído triste do gelo dos festões das montanhas; os deslocamentos melancólicos da neve amontoada na pradaria; para Ishmael, tudo isso é equivalente ao agitar a veste de búfalo para o potro assustadiço!
     Embora ninguém saiba onde ficam essas coisas inomináveis cujos sinais místicos oferecem essas indicações, tanto para mim quanto para o potro, algures tais coisas devem existir. Embora em muitos de seus aspectos o mundo visível pareça ser feito de amor, as esferas invisíveis foram feitas de medo.
     Mas ainda não resolvemos a magia dessa brancura, e nem sabemos por que tem um apelo tão poderoso na alma; e ainda mais estranha e muito mais prodigiosa – por que, como vimos, é ela simultaneamente o símbolo mais significativo das coisas espirituais, o próprio véu da Divindade Cristã; e, contudo, o agente intensificador nas coisas que mais aterrorizam a humanidade.
     Será que, por sua indefinição, ela obscurece os vácuos e as imensidões impiedosas do universo, e dessa forma nos apunhala pelas costas com a idéia da aniquilação quando contemplamos as profundezas brancas da Via Láctea? Ou será que o branco, em sua essência, não é uma cor, mas a ausência visível de cor, e, ao mesmo tempo, a fusão de todas as cores; será que são essas as razões pelas quais existe um espaço em branco, repleto de significado, na ampla paisagem das neves – um ateísmo sem cor e de todas as cores do qual nos esquivamos? E quando consideramos a outra teoria dos filósofos naturais, segundo a qual todas as outras cores terrenas – todos os adornos imponentes ou atraentes –, os tons suaves do céu e da floresta no crepúsculo; sim, e o veludo dourado das borboletas, e a borboleta dos lábios das moças; tudo isso não passa de ilusões sutis, que não são em verdade inerentes às substâncias, mas apenas formas exteriores; de tal modo que toda a Natureza deificada se pinta como a prostituta, cuja sedução cobre apenas a câmara mortuária dentro de si; e se formos mais além, e imaginarmos que o místico cosmético que produz cada um de seus matizes, o grande princípio da luz, permanecesse sempre branco ou sem cor em si, e se agindo sem mediação sobre a matéria tocasse todos os objetos, mesmo as tulipas e as rosas, com sua própria tinta ausente – pensando nisso tudo, o universo paralisado quedaria leproso diante de nós; e como os viajantes obstinados na Lapônia, que se recusam a usar lentes coloridas ou corantes nos olhos, assim também o condenado infiel se vê cego diante da monumental mortalha branca que envolve toda a perspectiva à sua volta. E de todas essas coisas a baleia albina é o símbolo. Surpreende-te ainda a ferocidade da caçada?


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Moby Dick: 1  - Miragens
Moby Dick: 42 -  A Brancura da Baleia
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?
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{a} Com referência ao Urso polar, é possível ser argumentado por aquele que de bom grado queira ir ainda mais fundo nesse assunto que não é a brancura, tomada em separado, que agrava a intolerável hediondez do animal; porque, analisada, a hediondez agravada, pode-se dizer, origina-se da circunstância de que a ferocidade irresponsável da criatura está investida no tosão da inocência celestial e do amor; e assim, se juntarmos duas emoções tão diferentes em nossas mentes, o Urso polar nos assusta com esse contraste tão pouco natural. Mas, mesmo que isso tudo seja verdade; se não pela brancura, não se sentiria um terror tão intenso.
     Quanto ao tubarão branco, o aspecto fantasmal, branco e deslizante da calma dessa criatura, quando considerada em seus humores normais, corresponde estranhamente à mesma qualidade do quadrúpede polar. Essa peculiaridade é mais bem percebida pelos franceses, pelo nome que consagram a tal peixe. A missa romana dos mortos começa com Requiem eternam (repouso eterno), de onde vem Requiem, a denominar a própria missa e todas as demais músicas fúnebres. Portanto, aludindo à imobilidade de morte, silenciosa e branca desse tubarão, e à mortalidade branda de seus hábitos, os franceses chamam no de Requin. [N. A.]
{b} Lembro-me do primeiro albatroz que vi. Foi durante uma longa tormenta, nas águas turbulentas dos mares antárticos. Do meu turno da manhã, embaixo, subi para o convés nublado; e lá, projetado no convés principal, vi uma coisa magnífica, em suas penugens de brancura imaculada, e com um bico adunco e sublime como um nariz romano. De vez em quando arquejava suas grandes asas de arcanjo, como se cobrisse uma arca sacrossanta. Fantásticas palpitações e vibrações agitavam-no. Ainda que o corpo não estivesse ferido, soltava gritos, como o espectro de um rei em angústia sobrenatural. Em seus olhos estranhos e inexpressivos pensei ver segredos que chegavam até Deus. Como Abraão diante dos anjos, inclinei-me; aquela coisa branca era tão branca, suas asas tão vastas, e naquelas águas de perpétuo exílio, eu perdera as memórias que trouxera a reboque de tradições e cidades. Durante algum tempo fiquei admirando aquele prodígio emplumado. Não sei dizer, só sugerir, as coisas que, então, passavam pela minha cabeça. Mas por fim despertei e me virando perguntei a um marinheiro que pássaro era aquele. Um goney, ele respondeu. Goney! Nunca tinha ouvido esse nome antes; seria possível que aquela coisa gloriosa fosse totalmente desconhecida pelos homens da terra? Não! Mas algum tempo depois descobri que goney era o nome que os marinheiros davam ao albatroz. De modo que não havia possibilidade de a Balada insana de Coleridge ter relação com as minhas impressões místicas, quando vi o pássaro em nosso convés. Pois naquela ocasião ainda não tinha lido a Balada, nem sabia que pássaro era o albatroz. Contudo, ao dizer isso, não faço senão conferir indiretamente um pouco mais de brilho aos já em si brilhantes méritos do poema e do poeta.
     Afirmo, então, que em sua brancura maravilhosa se esconde principalmente o segredo do feitiço; uma verdade ainda mais evidente por esse solecismo que é o de haver aves chamadas albatrozes cinza; e essas, vi-as muitas vezes, mas nunca com a mesma emoção que senti quando vi a ave Antártica.
      Mas como essa criatura mística tinha sido apanhada? Não espalhe, que eu conto: com anzol e linha traiçoeiros, enquanto a ave flutuava sobre o mar. Por fim, o Capitão transformou-a num mensageiro; amarrando em seu pescoço uma etiqueta de couro, na qual estava escrita a data e a posição do navio; e depois a soltando. Mas não duvido que a etiqueta de couro, destinada aos homens, tenha sido tirada no Céu, quando a ave branca voou para se juntar ao alado, evocado e adorado querubim! [N. A.]

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