Eduardo Galeano
30. O Livro dos Abraços
Crônica da cidade de Buenos Aires
Em meados de 1984, viajei para o Rio da Prata. Fazia onze anos que não via Montevidéu; fazia oito que não via Buenos Aires. Tinha ido embora de Montevidéu porque não gostava de ser preso; e de Buenos Aires, porque não gosto de ser morto. Mas em 1984 a ditadura militar tinha acabado, deixando atrás um rastro de sangue e lodo que ninguém apagaria, e a ditadura militar uruguaia estava acabando.
Eu acabava de chegar a Buenos Aires. Não tinha avisado os amigos. Queria que os encontros acontecessem por acaso.
Um jornalista da televisão holandesa, que me acompanhava na viagem, estava me entrevistando na frente da porta que tinha sido da minha casa. O jornalista me perguntou o que tinha sido feito de um quadro que eu tinha em casa, a pintura de um porto para chegar e não para partir, um porto que dizia alô e não adeus, e eu comecei a responder com o Olhar pregado no olho vermelho da câmara. Disse que não sabia onde esse quadro tinha ido parar, nem onde tinha ido parar o seu autor, Emilio Casablanca: o quadro e Emilio tinham-se perdido na névoa, como tantas outras pessoas e coisas engolidas por aqueles anos de terror e distância.
Enquanto eu falava, percebi que uma sombra vinha caminhando por trás da câmara e tinha ficado de lado, esperando. Quando terminei e o olho vermelho da câmara se apagou, movi a cabeça e vi: naquela cidade de treze milhões de habitantes, Emilio tinha chegado naquela esquina, por acaso, ou como quer que se chame isso, e estava naquele exato lugar no exato instante. Nos abraçamos dançando, e depois de muito abraço Emilio me contou que há duas semanas sonhava que eu voltava, noite após noite, e agora não podia acreditar.
E não acreditou. Naquela mesma noite telefonou para o meu hotel e perguntou se eu não era sonho ou bebedeira.
O bem-querer/1
Em Buenos Aires procurei a cafeteria que era a minha cafeteria, e não a encontrei. Procurei o restaurante onde comia mocotó em enormes travessas a qualquer hora do dia ou da noite, e ele tampouco existia. Onde antes havia a minha cantina preferida, o Bachín, havia um montão de escombros. Tinham arrasado o Bachín, e com ele o mercado onde eu ia sempre comprar frutas e flores ou pelo puro prazer do nariz e dos olhos. Alguém me disse que o Bachín tinha se mudado, e que agora tinha outro lugar e outro nome.
Uma noite, fui. Parei na frente da porta deste novo Bachín que tinha outro nome, duvidando, sim, não, perguntando-me se não seria uma traição, quando uma súbita explosão ocorreu no momento exato em que eu abria a porta: foram-se os fusíveis da eletricidade e tudo ficou absolutamente mergulhado na escuridão. Dei meia-volta e me afastei, caminhando na ponta dos pés.
E assim fiquei um tempo, doendo esquecimentos, buscando lugares e pessoas que não encontrei, ou não soube encontrar; e finalmente cruzei o rio, rio-mar, e entrei no Uruguai.
Os generais uruguaios ainda tinham o poder, estavam quase indo embora, quase nos adeuses dos tempos do terror: entrei cruzando os dedos. Tive sorte.
E caminhando pelas ruas da cidade onde nasci, fui reconhecendo-a, e senti que voltava sem ter ido embora: Montevidéu, que dorme sua eterna sesta sobre as suaves colinas do litoral, indiferente ao vento que a golpeia e a chama: Montevidéu, chata e íntima, profundamente íntima, que no verão cheira a pão e no inverno cheira à fumaça. E soube que eu andava querendo bem-querer, e que tinha chegado a hora do fim do exílio. Depois de muito mar, o salmão nada em busca do rio, e o encontra e remonta, guiado pelo cheiro das águas, até o arroio de sua origem.
Então, quando voltei a Calella para dizer-lhe adeus, adeus à Espanha, adeus e obrigado, tive um infarto.
O bem-querer/2
Quando a seca chega e leva embora as águas do rio Uruguai, as pessoas de Pueblo Federación regressam à sua perdida querência. As águas, ao ir embora, deixam nua uma paisagem de lua; e as pessoas voltam. Elas vivem agora numa aldeia que também se chama Pueblo Federación, como se chamava a sua velha aldeia antes que a represa de Salto Grande a inundasse e a deixasse debaixo das águas. Da velha aldeia já não se vê nem mesmo a cruz no alto da torre da igreja; e a aldeia nova é muito mais cômoda e muito mais linda. Mas eles voltam à aldeia velha que a seca lhes devolve enquanto dura. Eles voltam e ocupam as casas que foram suas casas e que agora são ruínas de guerra. Ali, onde a avó morreu e onde aconteceram o primeiro gol e o primeiro beijo, eles fazem fogo para o chimarrão e para o churrasco, enquanto os cães cavam a terra em busca dos ossos que tinham escondido.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
30. O Livro dos Abraços
Crônica da cidade de Buenos Aires
Em meados de 1984, viajei para o Rio da Prata. Fazia onze anos que não via Montevidéu; fazia oito que não via Buenos Aires. Tinha ido embora de Montevidéu porque não gostava de ser preso; e de Buenos Aires, porque não gosto de ser morto. Mas em 1984 a ditadura militar tinha acabado, deixando atrás um rastro de sangue e lodo que ninguém apagaria, e a ditadura militar uruguaia estava acabando.
Eu acabava de chegar a Buenos Aires. Não tinha avisado os amigos. Queria que os encontros acontecessem por acaso.
Um jornalista da televisão holandesa, que me acompanhava na viagem, estava me entrevistando na frente da porta que tinha sido da minha casa. O jornalista me perguntou o que tinha sido feito de um quadro que eu tinha em casa, a pintura de um porto para chegar e não para partir, um porto que dizia alô e não adeus, e eu comecei a responder com o Olhar pregado no olho vermelho da câmara. Disse que não sabia onde esse quadro tinha ido parar, nem onde tinha ido parar o seu autor, Emilio Casablanca: o quadro e Emilio tinham-se perdido na névoa, como tantas outras pessoas e coisas engolidas por aqueles anos de terror e distância.
Enquanto eu falava, percebi que uma sombra vinha caminhando por trás da câmara e tinha ficado de lado, esperando. Quando terminei e o olho vermelho da câmara se apagou, movi a cabeça e vi: naquela cidade de treze milhões de habitantes, Emilio tinha chegado naquela esquina, por acaso, ou como quer que se chame isso, e estava naquele exato lugar no exato instante. Nos abraçamos dançando, e depois de muito abraço Emilio me contou que há duas semanas sonhava que eu voltava, noite após noite, e agora não podia acreditar.
E não acreditou. Naquela mesma noite telefonou para o meu hotel e perguntou se eu não era sonho ou bebedeira.
O bem-querer/1
Em Buenos Aires procurei a cafeteria que era a minha cafeteria, e não a encontrei. Procurei o restaurante onde comia mocotó em enormes travessas a qualquer hora do dia ou da noite, e ele tampouco existia. Onde antes havia a minha cantina preferida, o Bachín, havia um montão de escombros. Tinham arrasado o Bachín, e com ele o mercado onde eu ia sempre comprar frutas e flores ou pelo puro prazer do nariz e dos olhos. Alguém me disse que o Bachín tinha se mudado, e que agora tinha outro lugar e outro nome.
Uma noite, fui. Parei na frente da porta deste novo Bachín que tinha outro nome, duvidando, sim, não, perguntando-me se não seria uma traição, quando uma súbita explosão ocorreu no momento exato em que eu abria a porta: foram-se os fusíveis da eletricidade e tudo ficou absolutamente mergulhado na escuridão. Dei meia-volta e me afastei, caminhando na ponta dos pés.
E assim fiquei um tempo, doendo esquecimentos, buscando lugares e pessoas que não encontrei, ou não soube encontrar; e finalmente cruzei o rio, rio-mar, e entrei no Uruguai.
Os generais uruguaios ainda tinham o poder, estavam quase indo embora, quase nos adeuses dos tempos do terror: entrei cruzando os dedos. Tive sorte.
E caminhando pelas ruas da cidade onde nasci, fui reconhecendo-a, e senti que voltava sem ter ido embora: Montevidéu, que dorme sua eterna sesta sobre as suaves colinas do litoral, indiferente ao vento que a golpeia e a chama: Montevidéu, chata e íntima, profundamente íntima, que no verão cheira a pão e no inverno cheira à fumaça. E soube que eu andava querendo bem-querer, e que tinha chegado a hora do fim do exílio. Depois de muito mar, o salmão nada em busca do rio, e o encontra e remonta, guiado pelo cheiro das águas, até o arroio de sua origem.
Então, quando voltei a Calella para dizer-lhe adeus, adeus à Espanha, adeus e obrigado, tive um infarto.
O bem-querer/2
Quando a seca chega e leva embora as águas do rio Uruguai, as pessoas de Pueblo Federación regressam à sua perdida querência. As águas, ao ir embora, deixam nua uma paisagem de lua; e as pessoas voltam. Elas vivem agora numa aldeia que também se chama Pueblo Federación, como se chamava a sua velha aldeia antes que a represa de Salto Grande a inundasse e a deixasse debaixo das águas. Da velha aldeia já não se vê nem mesmo a cruz no alto da torre da igreja; e a aldeia nova é muito mais cômoda e muito mais linda. Mas eles voltam à aldeia velha que a seca lhes devolve enquanto dura. Eles voltam e ocupam as casas que foram suas casas e que agora são ruínas de guerra. Ali, onde a avó morreu e onde aconteceram o primeiro gol e o primeiro beijo, eles fazem fogo para o chimarrão e para o churrasco, enquanto os cães cavam a terra em busca dos ossos que tinham escondido.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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