Albert Camus
10. O céu estava puro
O céu estava puro, mas sem brilho, por cima das árvores ao longo da rua. No passeio da frente, o vendedor de tabaco tirou uma cadeira, instalou-a diante da porta e pôs-se a cavalo nela, com os dois braços nas costas. Os eléctricos, há pouco cheios, iam quase vazios. No pequeno café "Pierrot" ao lado da tabacaria, o criado varria a serradura na sala deserta. Era realmente domingo. Peguei na minha cadeira e coloquei-a como a do vendedor de tabaco porque me pareceu muito mais cómodo. Fumei dois cigarros, entrei para ir buscar um bocado de chocolate e voltei para o comer à janela. Pouco depois o céu escureceu e julguei que íamos ter uma chuvada de Verão. Pouco a pouco, no entanto, o céu foi-se descobrindo. Mas a passagem das nuvens deixara na rua como que uma promessa de chuva que a tornara mais sombria. Fiquei ali muito tempo, a olhar para o céu.
Às cinco horas, os eléctricos chegaram ruidosamente. Traziam do estádio cachos de espectadores pendurados nos degraus e nas pegas das portas.
Os eléctricos seguintes transportavam os jogadores, que reconheci pelas malinhas que traziam na mão. Gritavam e cantavam aos berros que o seu clube era o melhor. Muitos deles fizeram-me sinais. Um deles, gritou-me mesmo: "Demos cabo deles!" E, sacudindo a cabeça, eu disse: "Sim, sim". A partir deste momento, os automóveis começaram a afluir. O dia mudou ainda um pouco. Por cima dos tetos, o céu tornou-se avermelhado e, com o nascer da noite, as ruas ganharam animação. Os mesmos transeuntes foram voltando pouco a pouco. Reconheci o senhor distinto no meio dos outros. As crianças choravam ou deixavam-se arrastar: Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram para a rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes de há pouco tinham gestos mais decididos do que o costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam dos cinemas da cidade chegaram um pouco mais tarde. Pareciam mais sérios. Ainda riam, mas de tempos a tempos. Tinham um ar cansado e pensativo. Deixaram-se ficar na rua, dando de um lado para o outro no passeio do lado de lá. As raparigas do bairro, de cabelos soltos, passeavam de braço dado. Os rapazes passavam por elas e dirigiam-lhes gracejos, elas riam-se e voltavam a cabeça para o lado. Algumas, minhas conhecidas, acenaram-me com a mão.
Os candeeiros da rua acenderam-se bruscamente e empalideceram as primeiras estrelas que subiam na noite. Senti os olhos fatigados, de tanto olhar os passeios, com o seu carregamento de homens e de luzes. As lâmpadas tornaram os pavimentos luzidios, e os eléctricos, a intervalos regulares, lançaram os seus reflexos sobre uns cabelos brilhantes, um sorriso ou uma pulseira de prata. Pouco depois, os eléctricos fizeram-se mais raros, a noite escureceu por sobre as árvores e os candeeiros, e o bairro esvaziou-se insensivelmente, até à altura em que o primeiro gato atravessou lentamente a rua outra vez deserta. Pensei então que era preciso jantar.
Doía-me um bocadinho o pescoço por ter ficado tanto tempo apoiado sobre as costas da cadeira. Fui à rua comprar pão e pastéis, cozinhei eu mesmo o que tinha em casa e comi em pé. Quis fumar outro cigarro à janela, mas o ar tinha refrescado e eu estava com um pouco de frio. Fechei os vidros e, à volta, vi no espelho um bocado da mesa onde a lâmpada de álcool estava junto a uns pedaços de pão.
Pensei que passara mais um domingo, que a mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma.
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A Constatação do Absurdo
Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.
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Camus, Albert, 1913-1960.
O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:
9.O Estrangeiro: Ao acordar, compreendi - Albert Camus
11.O Estrangeiro: Hoje trabalhei muito - Albert Camus
Capítulo 2
10. O céu estava puro
O céu estava puro, mas sem brilho, por cima das árvores ao longo da rua. No passeio da frente, o vendedor de tabaco tirou uma cadeira, instalou-a diante da porta e pôs-se a cavalo nela, com os dois braços nas costas. Os eléctricos, há pouco cheios, iam quase vazios. No pequeno café "Pierrot" ao lado da tabacaria, o criado varria a serradura na sala deserta. Era realmente domingo. Peguei na minha cadeira e coloquei-a como a do vendedor de tabaco porque me pareceu muito mais cómodo. Fumei dois cigarros, entrei para ir buscar um bocado de chocolate e voltei para o comer à janela. Pouco depois o céu escureceu e julguei que íamos ter uma chuvada de Verão. Pouco a pouco, no entanto, o céu foi-se descobrindo. Mas a passagem das nuvens deixara na rua como que uma promessa de chuva que a tornara mais sombria. Fiquei ali muito tempo, a olhar para o céu.
Às cinco horas, os eléctricos chegaram ruidosamente. Traziam do estádio cachos de espectadores pendurados nos degraus e nas pegas das portas.
Os eléctricos seguintes transportavam os jogadores, que reconheci pelas malinhas que traziam na mão. Gritavam e cantavam aos berros que o seu clube era o melhor. Muitos deles fizeram-me sinais. Um deles, gritou-me mesmo: "Demos cabo deles!" E, sacudindo a cabeça, eu disse: "Sim, sim". A partir deste momento, os automóveis começaram a afluir. O dia mudou ainda um pouco. Por cima dos tetos, o céu tornou-se avermelhado e, com o nascer da noite, as ruas ganharam animação. Os mesmos transeuntes foram voltando pouco a pouco. Reconheci o senhor distinto no meio dos outros. As crianças choravam ou deixavam-se arrastar: Quase imediatamente, os cinemas do bairro despejaram para a rua uma onda de espectadores. Entre eles, os rapazes de há pouco tinham gestos mais decididos do que o costume e eu calculei que haviam visto um filme de aventuras. Os que regressavam dos cinemas da cidade chegaram um pouco mais tarde. Pareciam mais sérios. Ainda riam, mas de tempos a tempos. Tinham um ar cansado e pensativo. Deixaram-se ficar na rua, dando de um lado para o outro no passeio do lado de lá. As raparigas do bairro, de cabelos soltos, passeavam de braço dado. Os rapazes passavam por elas e dirigiam-lhes gracejos, elas riam-se e voltavam a cabeça para o lado. Algumas, minhas conhecidas, acenaram-me com a mão.
Os candeeiros da rua acenderam-se bruscamente e empalideceram as primeiras estrelas que subiam na noite. Senti os olhos fatigados, de tanto olhar os passeios, com o seu carregamento de homens e de luzes. As lâmpadas tornaram os pavimentos luzidios, e os eléctricos, a intervalos regulares, lançaram os seus reflexos sobre uns cabelos brilhantes, um sorriso ou uma pulseira de prata. Pouco depois, os eléctricos fizeram-se mais raros, a noite escureceu por sobre as árvores e os candeeiros, e o bairro esvaziou-se insensivelmente, até à altura em que o primeiro gato atravessou lentamente a rua outra vez deserta. Pensei então que era preciso jantar.
Doía-me um bocadinho o pescoço por ter ficado tanto tempo apoiado sobre as costas da cadeira. Fui à rua comprar pão e pastéis, cozinhei eu mesmo o que tinha em casa e comi em pé. Quis fumar outro cigarro à janela, mas o ar tinha refrescado e eu estava com um pouco de frio. Fechei os vidros e, à volta, vi no espelho um bocado da mesa onde a lâmpada de álcool estava junto a uns pedaços de pão.
Pensei que passara mais um domingo, que a mãe já fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma.
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A Constatação do Absurdo
Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.
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Camus, Albert, 1913-1960.
O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:
9.O Estrangeiro: Ao acordar, compreendi - Albert Camus
11.O Estrangeiro: Hoje trabalhei muito - Albert Camus
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