Memórias na Pele
Maria Helena Weber
2. Viviane, respondendo a carta de P.
Olá escritor! Desculpas iniciais por desapontá-lo com uma não-carta. Isto é uma gravação. Como devo te chamar: Pedro ou Paulo? Não te darei uma carta assinada como tua ex-namorada, porque não quero te ajudar no livro que escreves para resolver a tua vida. Tão simples e tão românticas as soluções que encontras! Continuas igual: cartas para colocares a vida em ordem. Deverias abrir uma clínica e todos poderíamos ser felizes com as tuas técnicas, ou então, talvez, tenhas que decorar o poema “peço perdão à alma por todas vezes que o poema substitui o gesto, altera o encontro, abranda o choque”. O nome é “Dor(?)”.
Mas, quando vi aquele pacotão no saguão do edifício e o nome do remetente, quase desmaiei. Não dormi. Li todo o teu romance, tão rapidamente quanto a curiosidade e saudade permitiriam. Li novamente, num final de semana em Maceió, numa praia verde, antiga e sem nome. Adorarias! Teu pacote de folhas te trouxe para perto e me fez viajar. Primeiro fiquei imaginando como me descobriras, como seguraste a caneta para escrever o bilhete.
Sabe, meus quadros deixam pedaços de mim em Nova Iorque, Milão, Rio, mas aí em Porto Alegre está o maior pedaço da minha vida, de coisas não resolvidas, não realizadas. Assim, gostei de te sentir, de tocar em ti nos teus textos. De te imaginar. Adoro, ainda, esse teu jeito comportado de ser e a forma descarada de escrever.
Estou confusa, Paulo. Como sempre, Pedro. Não sei escrever e sabes disto e, no entanto, me pedes uma carta. Não soube tirar-te de mim e, mesmo assim, me pedes para lembrar parte da minha vida e justamente aquela em que perdi a batalha, ou melhor, te perdi. Por quê? Para quê? Minha forma de expressão são os rabiscos, as linhas, as convergências, as sombras... Desculpas, então, professor, pelos erros e ideias em desalinho.
Vem me abraçar!
Eu poderia ter respondido com um belo desenho onde o teu lado cagão apareceria junto a uma mulher – não tão grande como insistes em me descrever – e grades ou, como imaginei inúmeras vezes: de costas, misturado às areias. Metafóricos dirias. Tua literatura, o conto com o meu nome “Viviane” cutuca e classifica todo o meu trabalho de criação, daquela época, como mera “reprodução de grades e antiguidades”. Lembrei de como te odiava porque sequer tentavas entender como eu vivia em meio àquela loucura que denominas “Tratado Geral da Reunião Dançante” e chamas de teu livro. Afinal, éramos universitários infantis, não? Eu querendo o novo, a vanguarda, e tu, dependente de crenças, de uma revolução, e sem coragem para entrar nela. E o meu trabalho era a arte “burguesa e tão inconsequente”. Ouvia sempre “há tempo para que as coisas aconteçam juntas e a seu tempo”. Lembras destas frases lapidares? Continuam gravadas na mágoa que, descubro mais uma vez, ainda carrego.
Sempre tão organizado, tão Virgem e... tão amado. Te amava, sabias? De um jeito confuso, te misturando às minhas linhas e riscos, mas te amava. De um jeito único e talvez o único homem, também.
Queres um pouco de vinho francês? Estou abrindo a segunda garrafa.
O intocável é sempre o desejado, professor? Continuas querendo o que não podes ter e te agarrando ao que te é dado?
Não quero te ajudar a escreveres um livro sobre amores adolescentes e as frustrações político-ideológicas da década de sessenta, da nossa complicada e desbravadora geração. Quero me ajudar a te entender em mim. O que falo me é mais necessário do que a ti, certamente, já que não poderás usar o que eu não escrevi nem assinei. Talvez esta seja a hora de pensar e escrever a minha história...
Que este som fique entre nós.
Eu, pelo menos, tenho a possibilidade de culpar este magnífico vinho ou a saudade que provocaste. Afinal as minhas palavras sempre te “atropelaram”, não? Nunca compreendeste que não eras atropelado pela minha fala e sim pelo fato de eu ser mulher, da cabeça aos pés e por estarmos atravessando o histórico impasse masculino/feminino. Eu já sabia o que me fazia bem. Era mais livre do que tu. Sabia ir além das minhas grades, da minha criação. Enquanto eu as pintava tu as tinha gravadas na pele e na alma. O que te atropelava era o fato de eu demonstrar como te queria e não suportavas ser amado e desejado de corpo e alma. Só a tua cabeça estava liberada para ser querida. Sonhavas com todas as mudanças, mas querias toda segurança. Até família e virgindade!
Desculpas pelas gargalhadas.
Continuas sem saber nada de mim. Não sou do PT, caríssimo. Apenas noticiaram a participação, com algumas obras minhas, para a campanha daquele nosso eterno amigo a candidato. Não sou professora, embora tenha alguns alunos, artistas, interessados na minha técnica. Desculpa-me pelo desapontamento, mas ainda faço as coisas sem vínculos e não acredito em política.
Nunca pensei que pudesse usar a palavra “torturar” junto a minha lembrança, mesmo sendo naquele capítulo medroso da tua ficção, caro não-namorado. Sempre domaste tão bem as tuas relações, reagindo adequadamente e controlando emoções. Enfim, sempre me tocas no fundo. Não estou envergonhada em abrir todas as comportas, provocada por este momento, mesmo não conseguindo ser gentil, como a tua personagem Viviane. A carta desencadeou em mim tua masculina lembrança. Lembro a sensação de implodir, quando te olhava, ou ao te encontrar; sensações de morte e cegueira, coração saindo pela boca e a impressão que todos percebiam quando dançávamos e sempre dançaste mal. Mas inesquecível e doloroso era o prazer molhado entre as pernas, que nunca tocaste, mesmo brincando de namoradinhos. Odeio lembrar o passeio das minhas mãos substituindo teu corpo. Me ensinaste, professor, a solidão do amor, os tamanhos da mágoa, a magia da possibilidade e a angústia da expectativa na tua frase predileta: “temos que esperar um pouco mais”. E escreves no teu romance “nada aconteceu”. Nada, Paulo? Nós, as fêmeas, crescíamos e vocês, além de exercitarem o machismo, explicavam intelectualmente o amor e, assim, não conseguiam nos enquadrar nem na categoria puta, e nem na de futura esposa. E, em teu benefício, eu era – antes de mulher – uma artista assexuada. Meu jeito te assustava.
Para que tudo isso, agora?
Minha proximidade te assusta? Ainda gostas da minha voz quente?
Claro que tomei muito vinho e, para rimar, fumei unzinho necessário a esta catarse, não achas?
Não, não pretendo te machucar.
Também nunca fiz terapia ou análise e tu? Duvido! Sempre foste supercompetente para viver. Nunca expliquei, num divã, que existia um cara que eu desejava muito, nem descrevi o desejo de me enroscar em ti, viver junto, nos experimentar. Falar do cara que curtia uma artista plástica, ótima para o seu particular currículo. Sempre tive a sensação de te tocar sozinha. Adaptava roupas para te agradar, pensando num olhar diferente. Todas se maquiavam menos eu porque disseras algo sobre o natural, a luz na pele (num poema) e assim eu seguia, acreditando em ti. Talvez a minha “segurança” te atropelasse...
Viraste a fita, bem?
Naquela época, eu acreditava que entenderias qualquer linguagem e a vontade de ti escapando por todos os meus poros, olhos e pelos. Mas era o eterno te-levo-em-casa e “tu és tão bacana”, arrematados com o pior “Vivi, mereces sempre o melhor”. Porra, cara, doía. E eu pintava e pintava e não tinha coragem de falar em nós, de me ouvir, de te ver contra a parede e, assim, ia suportando as desculpas e a dor. Quanto masoquismo em vão!
Então, viva a arte e o vinho que me sustentam!
Num belo dia viajei para sempre (com lágrimas e rancores), fiz sucesso e, pelo menos, saí de perto do teu jugo. Continuei te querendo, ao ponto de não conseguir responder tuas cartas. Agora, centenas de séculos depois, simplesmente, me apresentas a tua vida e a da tua turma, devidamente encadernadas e acompanhadas de um bilhete gelado, como teu jeito de beijar. Um beijo, uma única vez, lembras?
Me delicia estares me ouvindo.
Pensas em mim? Mais ou menos bonita? Mais gorda ou magra? Com rugas? Cabelos longos curtos, claros, escuros? Nem interessa, gosto mais de mim hoje, e a tua opinião nada mudaria. Quanto a ti de vez em quando, faço linhas onde penso te ver. É verdade, àqueles a quem se ama, há sempre uma janela aberta e... vieste por carta escancarando todas.
Vem me abraçar!
Já estou no final da garrafa e o fogo da lareira está diminuindo, como eu. Mas há mais vinho e lenha para continuar.
Não, não tenho marido, namorados, ou amantes fixos. Sabe, as mulheres sempre me trataram melhor ou foi esta desculpa que arranjei para não ter grandes amores, para não te esquecer ou para te agredir... não sei. Me apaixonei por algumas mulheres, pelo prazer da linguagem bonita e suave dos corpos iguais. Afinal eu sou artista, não? Lembro da tua frase mais cruel e simplificadora sobre “como as mulheres conseguiam amar os homens, tão rudes, tão insensíveis, etc”. Foi tão difícil contigo, com todos os outros, iguais, com a tua cara e... foi mais simples com as minhas iguais. Mas não houve uma história de amor. Continuo em busca do prazer, fugindo do amor ou daquilo que, imagino, seja o amor. Imaturo? Por que não? Despertei algumas paixões mas fiquei sempre na minha: o prazer sem encucações, de qualquer jeito. Confesso, no entanto, ter imaginado, muitas vezes, como seria fazer amor contigo e sempre gostei da visão.
Um golinho, um baseadinho?
Para teu conhecimento, esta doce criança que “vos fala” juntou às descobertas sexuais todas as loucuras apresentadas e à supersolidão e liberdade algumas drogas, viagens e experiências interessantes, daquelas que mudam o jeito de enxergar o mundo. Não deves ter passado nem perto disso tudo! De brinde, grandes ressacas, grandes tombos, desilusões, mas consegui apagar a luz quando foi preciso e nem pirei. Já transaste em grupo? Duvido! Devias experimentar. É também uma forma interessante de se esconder, embora a exposição chegue ao máximo. Gosto de sexo, de qualquer jeito. Não fica vermelho! Transo com homens, também. Prefiro garotos desencucados. Há uma aprendizagem mútua, sem cobranças. Podes até achar que não sei amar, que não me entrego, que estou fingindo. Pode ser. Aliás tudo pode ser real. Depende da intenção.
Estou me guardando para viver um grande amor. Topas?
Talvez em janeiro eu faça uma exposição aí.
Desculpa o riso.
Gosto, também, daqueles homens que transam todas e tudo. Minha vida sexual não é tão enlouquecida quanto parece (para a tua cabeça), mas faço questão de te dizer: ela não é igual aos meus riscos, simples e solitários. Atualmente, atravesso uma fase muito produtiva e, então, vejo pouquíssimas pessoas – nem fazem falta – e estou tranquila no meu mundo. Até pode ser uma fuga e daí?
E se eu voltasse? Desmancharia a minha imagem na tua cabeça?
Vem até aqui, para cá, para perto de mim! Afita está acabando e eu estou com muito sono. O dia pretende amanhecer.
P., sempre casarás com Veras Lúcias, tuas personagens, terás sempre muitos filhos e tentarás pensar que tudo isso é amor. Embora eu sempre tenha tido a certeza sobre a tua possibilidade de explodir, de enlouquecer um pouco.
Vem explodir comigo, Paulo! Recuperar alguma coisa... te ver um pouquinho... me apresentar... te expulsar de mim...
Achas, realmente, que um livro vai resolver a tua vida? Isto é, no mínimo, cinismo. De minha parte, a arte deve me expor à vida e não resolvê-la. De qualquer jeito, em qualquer espaço. Teria tanto para te contar sobre a vida!
Comprarei teu livro, é claro!
Vou dormir. Recuperar um sonho antigo cheio de janelas antigas, cheiros de Porto Alegre e nós.
Lembras desta música? Ouve bem. O monólogo está terminando.
Um beijo com vinho, professor.
Um clique, por enquanto.
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Leia também:
1. Memórias na Pele
Maria Helena Weber
2. Viviane, respondendo a carta de P.
Olá escritor! Desculpas iniciais por desapontá-lo com uma não-carta. Isto é uma gravação. Como devo te chamar: Pedro ou Paulo? Não te darei uma carta assinada como tua ex-namorada, porque não quero te ajudar no livro que escreves para resolver a tua vida. Tão simples e tão românticas as soluções que encontras! Continuas igual: cartas para colocares a vida em ordem. Deverias abrir uma clínica e todos poderíamos ser felizes com as tuas técnicas, ou então, talvez, tenhas que decorar o poema “peço perdão à alma por todas vezes que o poema substitui o gesto, altera o encontro, abranda o choque”. O nome é “Dor(?)”.
Mas, quando vi aquele pacotão no saguão do edifício e o nome do remetente, quase desmaiei. Não dormi. Li todo o teu romance, tão rapidamente quanto a curiosidade e saudade permitiriam. Li novamente, num final de semana em Maceió, numa praia verde, antiga e sem nome. Adorarias! Teu pacote de folhas te trouxe para perto e me fez viajar. Primeiro fiquei imaginando como me descobriras, como seguraste a caneta para escrever o bilhete.
Sabe, meus quadros deixam pedaços de mim em Nova Iorque, Milão, Rio, mas aí em Porto Alegre está o maior pedaço da minha vida, de coisas não resolvidas, não realizadas. Assim, gostei de te sentir, de tocar em ti nos teus textos. De te imaginar. Adoro, ainda, esse teu jeito comportado de ser e a forma descarada de escrever.
Estou confusa, Paulo. Como sempre, Pedro. Não sei escrever e sabes disto e, no entanto, me pedes uma carta. Não soube tirar-te de mim e, mesmo assim, me pedes para lembrar parte da minha vida e justamente aquela em que perdi a batalha, ou melhor, te perdi. Por quê? Para quê? Minha forma de expressão são os rabiscos, as linhas, as convergências, as sombras... Desculpas, então, professor, pelos erros e ideias em desalinho.
Vem me abraçar!
Eu poderia ter respondido com um belo desenho onde o teu lado cagão apareceria junto a uma mulher – não tão grande como insistes em me descrever – e grades ou, como imaginei inúmeras vezes: de costas, misturado às areias. Metafóricos dirias. Tua literatura, o conto com o meu nome “Viviane” cutuca e classifica todo o meu trabalho de criação, daquela época, como mera “reprodução de grades e antiguidades”. Lembrei de como te odiava porque sequer tentavas entender como eu vivia em meio àquela loucura que denominas “Tratado Geral da Reunião Dançante” e chamas de teu livro. Afinal, éramos universitários infantis, não? Eu querendo o novo, a vanguarda, e tu, dependente de crenças, de uma revolução, e sem coragem para entrar nela. E o meu trabalho era a arte “burguesa e tão inconsequente”. Ouvia sempre “há tempo para que as coisas aconteçam juntas e a seu tempo”. Lembras destas frases lapidares? Continuam gravadas na mágoa que, descubro mais uma vez, ainda carrego.
Sempre tão organizado, tão Virgem e... tão amado. Te amava, sabias? De um jeito confuso, te misturando às minhas linhas e riscos, mas te amava. De um jeito único e talvez o único homem, também.
Queres um pouco de vinho francês? Estou abrindo a segunda garrafa.
O intocável é sempre o desejado, professor? Continuas querendo o que não podes ter e te agarrando ao que te é dado?
Não quero te ajudar a escreveres um livro sobre amores adolescentes e as frustrações político-ideológicas da década de sessenta, da nossa complicada e desbravadora geração. Quero me ajudar a te entender em mim. O que falo me é mais necessário do que a ti, certamente, já que não poderás usar o que eu não escrevi nem assinei. Talvez esta seja a hora de pensar e escrever a minha história...
Que este som fique entre nós.
Eu, pelo menos, tenho a possibilidade de culpar este magnífico vinho ou a saudade que provocaste. Afinal as minhas palavras sempre te “atropelaram”, não? Nunca compreendeste que não eras atropelado pela minha fala e sim pelo fato de eu ser mulher, da cabeça aos pés e por estarmos atravessando o histórico impasse masculino/feminino. Eu já sabia o que me fazia bem. Era mais livre do que tu. Sabia ir além das minhas grades, da minha criação. Enquanto eu as pintava tu as tinha gravadas na pele e na alma. O que te atropelava era o fato de eu demonstrar como te queria e não suportavas ser amado e desejado de corpo e alma. Só a tua cabeça estava liberada para ser querida. Sonhavas com todas as mudanças, mas querias toda segurança. Até família e virgindade!
Desculpas pelas gargalhadas.
Continuas sem saber nada de mim. Não sou do PT, caríssimo. Apenas noticiaram a participação, com algumas obras minhas, para a campanha daquele nosso eterno amigo a candidato. Não sou professora, embora tenha alguns alunos, artistas, interessados na minha técnica. Desculpa-me pelo desapontamento, mas ainda faço as coisas sem vínculos e não acredito em política.
Nunca pensei que pudesse usar a palavra “torturar” junto a minha lembrança, mesmo sendo naquele capítulo medroso da tua ficção, caro não-namorado. Sempre domaste tão bem as tuas relações, reagindo adequadamente e controlando emoções. Enfim, sempre me tocas no fundo. Não estou envergonhada em abrir todas as comportas, provocada por este momento, mesmo não conseguindo ser gentil, como a tua personagem Viviane. A carta desencadeou em mim tua masculina lembrança. Lembro a sensação de implodir, quando te olhava, ou ao te encontrar; sensações de morte e cegueira, coração saindo pela boca e a impressão que todos percebiam quando dançávamos e sempre dançaste mal. Mas inesquecível e doloroso era o prazer molhado entre as pernas, que nunca tocaste, mesmo brincando de namoradinhos. Odeio lembrar o passeio das minhas mãos substituindo teu corpo. Me ensinaste, professor, a solidão do amor, os tamanhos da mágoa, a magia da possibilidade e a angústia da expectativa na tua frase predileta: “temos que esperar um pouco mais”. E escreves no teu romance “nada aconteceu”. Nada, Paulo? Nós, as fêmeas, crescíamos e vocês, além de exercitarem o machismo, explicavam intelectualmente o amor e, assim, não conseguiam nos enquadrar nem na categoria puta, e nem na de futura esposa. E, em teu benefício, eu era – antes de mulher – uma artista assexuada. Meu jeito te assustava.
Para que tudo isso, agora?
Minha proximidade te assusta? Ainda gostas da minha voz quente?
Claro que tomei muito vinho e, para rimar, fumei unzinho necessário a esta catarse, não achas?
Não, não pretendo te machucar.
Também nunca fiz terapia ou análise e tu? Duvido! Sempre foste supercompetente para viver. Nunca expliquei, num divã, que existia um cara que eu desejava muito, nem descrevi o desejo de me enroscar em ti, viver junto, nos experimentar. Falar do cara que curtia uma artista plástica, ótima para o seu particular currículo. Sempre tive a sensação de te tocar sozinha. Adaptava roupas para te agradar, pensando num olhar diferente. Todas se maquiavam menos eu porque disseras algo sobre o natural, a luz na pele (num poema) e assim eu seguia, acreditando em ti. Talvez a minha “segurança” te atropelasse...
Viraste a fita, bem?
Naquela época, eu acreditava que entenderias qualquer linguagem e a vontade de ti escapando por todos os meus poros, olhos e pelos. Mas era o eterno te-levo-em-casa e “tu és tão bacana”, arrematados com o pior “Vivi, mereces sempre o melhor”. Porra, cara, doía. E eu pintava e pintava e não tinha coragem de falar em nós, de me ouvir, de te ver contra a parede e, assim, ia suportando as desculpas e a dor. Quanto masoquismo em vão!
Então, viva a arte e o vinho que me sustentam!
Num belo dia viajei para sempre (com lágrimas e rancores), fiz sucesso e, pelo menos, saí de perto do teu jugo. Continuei te querendo, ao ponto de não conseguir responder tuas cartas. Agora, centenas de séculos depois, simplesmente, me apresentas a tua vida e a da tua turma, devidamente encadernadas e acompanhadas de um bilhete gelado, como teu jeito de beijar. Um beijo, uma única vez, lembras?
Me delicia estares me ouvindo.
Pensas em mim? Mais ou menos bonita? Mais gorda ou magra? Com rugas? Cabelos longos curtos, claros, escuros? Nem interessa, gosto mais de mim hoje, e a tua opinião nada mudaria. Quanto a ti de vez em quando, faço linhas onde penso te ver. É verdade, àqueles a quem se ama, há sempre uma janela aberta e... vieste por carta escancarando todas.
Vem me abraçar!
Já estou no final da garrafa e o fogo da lareira está diminuindo, como eu. Mas há mais vinho e lenha para continuar.
Não, não tenho marido, namorados, ou amantes fixos. Sabe, as mulheres sempre me trataram melhor ou foi esta desculpa que arranjei para não ter grandes amores, para não te esquecer ou para te agredir... não sei. Me apaixonei por algumas mulheres, pelo prazer da linguagem bonita e suave dos corpos iguais. Afinal eu sou artista, não? Lembro da tua frase mais cruel e simplificadora sobre “como as mulheres conseguiam amar os homens, tão rudes, tão insensíveis, etc”. Foi tão difícil contigo, com todos os outros, iguais, com a tua cara e... foi mais simples com as minhas iguais. Mas não houve uma história de amor. Continuo em busca do prazer, fugindo do amor ou daquilo que, imagino, seja o amor. Imaturo? Por que não? Despertei algumas paixões mas fiquei sempre na minha: o prazer sem encucações, de qualquer jeito. Confesso, no entanto, ter imaginado, muitas vezes, como seria fazer amor contigo e sempre gostei da visão.
Um golinho, um baseadinho?
Para teu conhecimento, esta doce criança que “vos fala” juntou às descobertas sexuais todas as loucuras apresentadas e à supersolidão e liberdade algumas drogas, viagens e experiências interessantes, daquelas que mudam o jeito de enxergar o mundo. Não deves ter passado nem perto disso tudo! De brinde, grandes ressacas, grandes tombos, desilusões, mas consegui apagar a luz quando foi preciso e nem pirei. Já transaste em grupo? Duvido! Devias experimentar. É também uma forma interessante de se esconder, embora a exposição chegue ao máximo. Gosto de sexo, de qualquer jeito. Não fica vermelho! Transo com homens, também. Prefiro garotos desencucados. Há uma aprendizagem mútua, sem cobranças. Podes até achar que não sei amar, que não me entrego, que estou fingindo. Pode ser. Aliás tudo pode ser real. Depende da intenção.
Estou me guardando para viver um grande amor. Topas?
Talvez em janeiro eu faça uma exposição aí.
Desculpa o riso.
Gosto, também, daqueles homens que transam todas e tudo. Minha vida sexual não é tão enlouquecida quanto parece (para a tua cabeça), mas faço questão de te dizer: ela não é igual aos meus riscos, simples e solitários. Atualmente, atravesso uma fase muito produtiva e, então, vejo pouquíssimas pessoas – nem fazem falta – e estou tranquila no meu mundo. Até pode ser uma fuga e daí?
E se eu voltasse? Desmancharia a minha imagem na tua cabeça?
Vem até aqui, para cá, para perto de mim! Afita está acabando e eu estou com muito sono. O dia pretende amanhecer.
P., sempre casarás com Veras Lúcias, tuas personagens, terás sempre muitos filhos e tentarás pensar que tudo isso é amor. Embora eu sempre tenha tido a certeza sobre a tua possibilidade de explodir, de enlouquecer um pouco.
Vem explodir comigo, Paulo! Recuperar alguma coisa... te ver um pouquinho... me apresentar... te expulsar de mim...
Achas, realmente, que um livro vai resolver a tua vida? Isto é, no mínimo, cinismo. De minha parte, a arte deve me expor à vida e não resolvê-la. De qualquer jeito, em qualquer espaço. Teria tanto para te contar sobre a vida!
Comprarei teu livro, é claro!
Vou dormir. Recuperar um sonho antigo cheio de janelas antigas, cheiros de Porto Alegre e nós.
Lembras desta música? Ouve bem. O monólogo está terminando.
Um beijo com vinho, professor.
Um clique, por enquanto.
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WEBER, Maria Helena
Editora Igel/Instituto Estadual do Livro, 1989. Porto Alegre
Apresentação da autora no livro Memórias na pele, publicado em 1989, em Porto Alegre:
“Natural da cidade de Caxias do Sul, Maria Helena Weber atua, já há alguns anos, na área da literatura, como autora de textos infantis e teatrais. Obteve a premiação, em 1982, pela FUNARTE, com o trabalho denominado Âmbula, que alia as artes gráficas às artes plásticas. Atualmente exerce atividades como professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde coordena o Curso de Comunicação Social.”
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1. Memórias na Pele
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