quarta-feira, 19 de abril de 2017

Gente Pobre - 12. 1 de junho II - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


12.




1 de junho






II




Um dia, por acaso, a conversa recaiu sobre o incidente da queda da estante, e referimo-nos a ele em tom de brincadeira. Que momento extraordinário aquele! Creio que me exprimi com absoluta franqueza e ingenuidade. Senti-me arrebatada por uma singular inspiração e confessei-lhe tudo: que queria estudar para aprender, para saber, e quanto me magoava que me considerassem uma criança... Como digo, encontrava-me naquele momento com uma disposição de espírito especial; o meu coração trasbordava de ternura e as lágrimas afloravam-me aos olhos. Contei-lhe tudo, sem lhe omitir a mínima particularidade: o carinho que ele me inspirava, o meu desejo de o amar, de o ter sempre junto do meu coração, de o consolar, de o ajudar pela vida fora...

Ele contemplava-me de modo estranho, parecia ao mesmo tempo perturbado e surpreendido e não proferia palavra. A sua atitude fez-me pena e, de súbito, invadiu-me a tristeza. Pensei que ele não me compreendia e talvez intimamente se risse à minha custa. As lágrimas brotaram-me dos olhos e desatei a chorar como uma criança; era impotente para me conter, estava como que dominada pela vertigem. Então, pegou-me nas mãos, beijou-as, e apertou-as de encontro ao seu peito; e, carinhosamente, começou a dizer-me coisas para me consolar. As minhas palavras tinham decerto calado fundo na sua alma, pois dava mostras de grande emoção. O que então me disse, não sei; eu chorava e ria ao mesmo tempo, corava, voltava a chorar de alegria e não conseguia articular palavra. Apesar, porém, da minha agitação, notei que Pokrovski se conservava embaraçado e como que coagido. Surpreendera-o, sem dúvida, o meu arrebatamento sentimental, aquela súbita e apaixonada ternura. A princípio, talvez lhe tivesse despertado apenas curiosidade, mas depois acabou por perder toda a reserva; correspondia ao meu afeto, à minha dedicação, com sentimentos não menos sinceros e verdadeiros, e manifestava-me delicadeza e ternura de amigo leal, como se fora meu irmão. Que alegria experimentava o meu coração e que bem me fazia o seu afeto! Eu não lhe ocultava coisa alguma, não usava com ele de dissimulação; mostrava-me aos seus olhos tal como era, e de dia para dia mais se ia aproximando de mim e o nosso amor aumentava...

Na verdade, não me seria fácil dizer as palavras que trocávamos naquelas horas torturantes e ao mesmo tempo tão agradáveis dos nossos colóquios noturnos à luz trémula da lamparina, que ardia diante do oratório, e quase chegados ao leito da minha pobre mãe... Falávamos de tudo o que nos vinha à ideia, de tudo o que nos enchia os corações, e éramos quase felizes... Que período triste e ao mesmo tempo alegre! Ainda hoje o recordo com tristeza e alegria. As recordações são sempre pungentes, quer sejam alegres ou melancólicas. É, pelo menos, o que sucede com as minhas; mas essa tortura vem sempre acompanhada de certa dose de prazer. E quando nos ataca a melancolia e a tristeza se apossa do nosso coração, quando aos sentimos lacerados e tristes, as recordações servem-nos de lenitivo e vivificam-nos, tal como o fresco orvalho que, após um dia de canícula, refrigera, na tarde húmida, as pobres flores murchas pelo ardor do sol, e lhes dá nova vida,

A mamã já se encontrava muito melhor, mas, apesar disso, continuei a passar as noites à sua cabeceira. Pokrovski emprestava-me livros. Ao princípio, lia apenas para não adormecer; mas depois começaram a interessar-me, e acabei por devorá-los com verdadeira sofreguidão. Um novo mundo de coisas desconhecidas e não imaginadas se abria diante de mim. Na minha alma agitavam-se novos pensamentos e novas impressões, e quanto maior fosse a excitação, quanto maiores o trabalho e a luta para conseguir assimilar dentro de mim essas novas impressões, tanto mais queridas se me tornavam e tanto mais alegremente sacudiam todo o meu ser. Penetravam-me de., súbito no coração afugentando dele a tranquilidade e transformando-o num horrível caos. Porém, aquele domínio exercido sobre o meu espírito não era bastante forte para me aniquilar. Eu era demasiado idealista e sonhadora, e esse facto salvou-me.

Logo que minha mãe se restabeleceu por completo, cessaram as nossas entrevistas e os longos colóquios noturnos. Depois só de vez em quando se nos deparava ocasião de trocar meia dúzia de palavras insignificantes e indiferentes; mas consolava-me a ideia de que a cada uma daquelas palavras sem importância eu atribuía um significado particular, dando-lhe a entender um sentido secreto. Sentia que a minha vida tinha um objetivo, por isso era feliz, tranquilamente feliz. E assim passaram várias semanas...

Um dia, o velho Pokrovski veio visitar-nos. Falou muito conosco, acerca das coisas mais diversas, dando mostras de grande contentamento, e até se excedeu um pouco em gracejos e ditos espirituosos — espirituosos a seu modo, bem entendido. Por fim, saiu-se com a grande novidade que era a causa daquela alegria e boa disposição, dizendo-nos que na semana próxima se verificava o aniversário de Petinka e que todos os anos, nesse dia, costumava visitar o filho. Para o efeito, envergaria o fato novo, e sua mulher prometera comprar-lhe umas botas novas. Em suma: o velho estava radiante e falava pelos cotovelos.

Era então o aniversário do nascimento de Pokrovski! Essa ideia não me deixou em sossego nem de dia, nem de noite. Para lhe testemunhar a minha amizade, resolvi oferecer a Petinka uma prenda. Mas qual? Finalmente, tive a boa ideia de lhe oferecer livros. Sabia que ele andava mortinho por conseguir a última edição das Obras Completas de Pouchkine e decidi comprar-lhe. A minha fortuna pessoal eram uns trinta rublos que ganhara na costura Tinha destinado esta quantia à aquisição de um vestido novo. Contudo, mandei logo a nossa cozinheira, a velha Matriona, à livraria mais próxima saber o preço daquelas obras. Que horror! Os onze volumes, encadernados, custavam sessenta rublos. Onde havia de ir buscar tão elevada importância? Examinei o problema com todo o cuidado e sob todos os aspetos, mas não encontrei solução. Não queria pedir dinheiro à mamã. Estou certa de que se apressaria a dar-me; mas ter-me-ia perguntado para que precisava dele, e assim todos ficariam a saber que eu queria presentear Petinka. Além disso, não seria considerado um presente, mas simplesmente a paga dos serviços que o jovem me havia prestado durante o ano. Por isso o meu desejo era oferecer-lhe os livros, eu só, sem que ninguém soubesse. Pelos ensinamentos que o estudante me ministrava, ficar-lhe-ia grata para sempre, mas queria que esta gratidão se traduzisse apenas em amizade. Por fim, consegui uma solução.

Sabia que nos estabelecimentos de velharias do Gostinii Dvor se podem adquirir livros quase novos por metade do seu preço, desde que se regateie um pouco. Às vezes apareciam lá exemplares muito pouco usados, ou mesmo completamente novos. Optei por este caminho e resolvi ir ao mercado na primeira vez que saísse. A ocasião me apareceu no dia seguinte. Tanto a mamã como Ana Fedorovna precisavam comprar umas coisas; esta, porém, felizmente para mim, não estava com vontade de sair e, assim, encarregaram-me de ir fazer as compras em companhia de Matriona.

Encontrei logo a obra que desejava, primorosamente encadernada e em muito bom estado. Ao princípio pediram-me por ela mais do que ela custava nova; mas, depois de grande trabalho da minha parte e de haver simulado, por várias vezes, desinteressar-me e dirigir-me a outra parte, o homenzinho fixou o preço em trinta e cinco rublos. Que bom fora ter regateado tanto! A pobre Matriona não podia compreender o que se passava nem a razão do meu empenho em adquirir tantos livros de uma vez só. Mas, ó desgraça das desgraças! Eu só dispunha de trinta rublos, e o comerciante não me queria dar os volumes mais baratos do que o preço referido. Pedi e implorei, e tanto fiz por o convencer, que ele, por fim, já me dava por menos dois rublos e meio, mas jurando e tornando a jurar que não abaixaria mais o preço; e que era por ser para mim, por se tratar de uma menina tão simpática, pois qualquer outro cliente teria de pagar muito mais. Ainda me faltavam dois rublos e meio! Estava capaz de chorar de desgosto. Mas, de súbito, uma circunstância inesperada veio em meu auxílio.

Não longe de mim, junto de outro tabuleiro, encontrava-se o velho Pokrovski, no meio de quatro ou cinco negociantes de livros. Todos, à porfia, lhe recomendavam a sua mercadoria — livros de todos os gostos imagináveis —, de modo que o pobre homem parecia perplexo, não sabendo os que comprar. Não podia comprá-los todos! Por quais optar? Aproximei-me e perguntei-lhe o que procurava. O velho ficou radiante ao ver-me, pois queria-me muito, embora não tanto como ao seu Petinka.

— Olhe, Bárbara Alexeievna: estou a ver se compro uns livritos — respondeu-me — para o Petinka, sabe? Aproxima-se o seu aniversário, e como o que ele aprecia mais neste mundo são os livros, disse de mim para comigo: «Vou comprar-lhe uns livritos...»

O pobre homem costumava exprimir-se de um modo vago, e naquele momento encontrava-se absolutamente perdido da cabeça. Qualquer dos livros expostos não custaria menos de um rublo, e alguns até dois ou três. Os volumes grandes não os podia comprar; apenas os olhava de soslaio, com um sorriso guloso, ou então folheava-os devagarinho, com muito cuidado e respeito, mirava-os e remirava-os, virava-os de um lado e do outro e acabava por os repor no respetivo lugar.

— Não, não; isto é muito caro — dizia a meia voz. — Vejamos estes... — E começava a mexer no monte de folhetos e opúsculos, nos livros de poesias e nos almanaques velhos, que, naturalmente, eram baratos.

— Mas, que vai comprar? — perguntei-lhe. — Esses folhetos não prestam.

— Ora essa! — tornou-me. — Olhe que bonitos livros aqui há...

Proferiu estas palavras num tom repassado de tal tristeza, que receei que irrompesse em choro... com pena de os livros bons serem tão caros. E, na verdade, uma lagrimazita deslizou-lhe até ao seu rubicundo nariz.

Apressei-me a perguntar-lhe quanto dinheiro trazia.

— Este todo — respondeu-me o pobre homem tirando do bolso o seu capital, que trazia embrulhado num bocado de jornal todo sujo: algumas moedas de prata e vinte kopeks em cobre.

Eu levei-o para junto do meu livreiro.

— Olhe: estão aqui dozes volumes que custam, todos, trinta e dois rublos e meio. Eu tenho trinta; dê-me os dois e meio que possui; compramos os livros e somos os dois a oferecer-lhe.

O velho ficou louco de alegria; com as suas trémulas mãos, tirou do bolso todo o dinheiro e dispôs-se a carregar com a nossa improvisada biblioteca. Meteu volumes em todos os bolsos e colocou os restantes debaixo dos braços, encaminhando-se para sua casa, tendo-me antes jurado que no dia seguinte os levaria ao meu quarto, sem que ninguém desse fé.






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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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