terça-feira, 25 de abril de 2017

O Brasil nação - v1: § 34 – A crosta que se refaz... - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 4
o definitivo império do brasil







§ 34 – A crosta que se refaz...




Aqui estabelecido, o Estado português veio a degradar-nos completamente, com todos os característicos da sua política. Até as nossas tradições se perverteram, pois que tivemos, mascarando a essência do Brasil, os brasileiros de D. João VI, a serviço do lusitanismo renitente. Sobre a Nação, ingênua e confiante, eles se estenderam numa crosta infectante, vivaz – o bragantismo, e nunca mais nos foi possível descascar dessa miséria. Havia, na massa da Nação, uma alma brasileira, cujas energias alimentaram lutas sérias, porfiadas e longas; mas, era tal a qualidade das gentes dominantes que, todas elas, através de todas as lutas de autonomia nacional, não deram para fazer um herói. Na política nacional, de 1821 até ontem, que figuras nos ficaram – capazes de levar-nos ao entusiasmo reverente de um culto?... Alguns tristes mártires, infamados pelos empreiteiros da história imperial, soterrados nas misérias que se seguem; o único – Feijó, incompleto, amortalhado na sua invulnerável virtude; uns rápidos aspectos de José Bonifácio, que vem para a política quando já está impróprio a redimir-se do bragantismo onde se fizera... No mais, uma nata de larvas e vermes, a afogar os poucos sinceramente brasileiros.

Na campanha de 1825-31, o ânimo de um Brasil livre conseguiu, finalmente, romper a crosta de podridão ativa com que o estado português se despotizara sobre esta pátria: foi quase uma vitória, não a redenção efetiva. O bragantismo, revivendo em novas formas, brotou mais forte, refazendo-se a crosta, mais espessa e mais mortificante, ainda.

Entedia e fatiga – que, para caracterizar a nação brasileira, no Brasil independente, durante o primeiro meio século, haja que insistir, sempre e sempre, em acentuar os sucessos políticos. Infelizmente, não pode ser de outra forma, porque toda a vida pública e social era dominada pela política, única atividade que aparecia e se impunha. Era a nação, não senhora de si, não devidamente constituída, e que insistia em ser o que devia ser. Ao termo, o Brasil foi dominado; mas os que vieram explorá-lo definitivamente, ainda tiveram que concentrar todas as suas energias e os seus processos nessa obra de disfarçado domínio. E isso ainda foi política. Todo esse período, que vem do último esforço brasileiro pela redenção nacional, até o ressurgir do espírito público com a propaganda pela Abolição e a República, é o latejar de um desenvolvido abcesso, cujas saliências também são movimentos políticos. Então, quem era capaz de votar-se a um ideal, ou, mesmo, os simples traficantes, com ambição e força para a atividade social, ou mental, vinham necessariamente para a política, única forma possível para a ação geral, com qualquer intuito de socialização. O primeiro Império foi uma extensão anacrônica do império luso-brasileiro de D. João VI; e toda a sua ação, após José Bonifácio, foi política – para a realização, mais ou menos ostensiva, do sonho de D. João VI. Vimos que o espírito nacional se insurgiu contra a afronta direta às suas tradições, e acabou banindo o anacronismo. Mas, temos visto, também, que o bragantismo, incluído na vida brasileira, reconstituiu-se, e, contra ele, nada puderam as deficientes energias dos homens de 1831. Os últimos esforços estancam-se na ação de Feijó – 1836-37, com os estertores e os espasmos de 1842-48. Enquanto isto, pelos mesmos votos legislativos, anula-se tudo, do pouco deixado pela revolução de 1831-32, e normaliza-se, nos intuitos de sempre, o novo bragantismo.

Circunspecto, solene, não lhe falta, contudo, o pitoresco a dimanar fluente da própria situação apropriada à maioridade. Os verdadeiros orientadores do governo especificam-se no célebre corrilho da Joana, efetivo conselho privado do menino imperador, chefiado desde logo pela astúcia de Aureliano. Daí partirá o golpe que dará por terra com o gabinete Andrada-Limpo de Abreu, e que arrancará àquele a chufa despeitada: “Quem se mete com criança amanhece molhado”. Com que aspecto se apresenta, então, o revivido Império brasileiro? Tomemos, a espaços, o testemunho de alguns brasileiros, dos bem qualificados para caracterizar o que, finalmente, se estabilizou como política do Brasil soberano, no segundo Império. Os julgamentos e testemunhos a que daremos fé pesaram, de fato, na verdadeira opinião pública do Brasil; não serão simples retaliações de deputados, anônimos, quando na oposição, nem encomendados artigos de jornalistas sem fé. Repetem-se aqui, porque são conformes à verdade, conceitos de homens que foram dos primeiros no pensamento brasileiro do momento, e que sentiram a necessidade desoprimir a consciência: um Landulfo Medrado, que fala para 1860, um Tavares Bastos, para 1866, Sousa Carvalho, José de Alencar e Melo Morais (o velho)... impressos em 1870-72. Para comentá-los, e completá-los, há, então, momentos em que os enfileirados da política, de Zacharias a Ferreira Viana, tomados de náusea, ou feridos no justo orgulho, deixam ver a verdade do regime. Todos os citados são irredutíveis monarquistas, sendo que a exceção de Rui Barbosa é a de uma opinião que – considerava a república uma obra de acaso, evitável por conseguinte, desnecessária; se não era republicano, também não era monarquista.141



141 “A república originou-se de um acidente... Certas reformas... tê-la-iam prevenido e evitado. Certas emergências... poderiam ter abortado o movimento. A nação aceitou-o, mas não era seu. Não havia sido elaborado por ela mesma”. (Prefacio à Abolição, de O. Duque-Estrada, em 1918). Não podia ser mais frouxa a convicção republicana de quem tais linhas escreveu.


Comecemos pelo Sr. Melo Morais, que tem a superioridade de conhecer a história nacional, e ser quase um contemporâneo de toda a organização política: “... entre nós, em lugar de se firmar a independência, não se cuidou dela... A falsa política, que a escola de direito de Coimbra havia plantado em Portugal, tendo-se naturalizado no Brasil, em vez de amenizar-se com nosso clima...” Tavares Bastos já encontra feito o mundo político; quer trabalhar pelo engrandecimento da sua pátria, e, de entrada, tem de constatar: “A miséria moral como a pobreza material... herdamo-las... O passado instalou-se no presente, acompanha-o, excede-o, esconde-o, cobre-o, ele, uma sombra!” Dez anos depois, a evidência desses males de origem impõe-se a Sousa Carvalho, e ele constatara:


Fizemos a independência... para vivermos eternamente sob o jugo do governo, para sermos sempre escravos de mandões encarregados de governar-nos... Colhe-se um país na debilidade da infância e já cansado das revoluções inúteis, indiferente às lutas das ideias e persuadido de que novas revoluções não se podem generalizar, e vingar em tão extenso território... concede-se a maior licença nas publicações da imprensa, com certeza de que são respiros que não fazem mossa; o direito de voto a todos os cidadãos, tornando-os ao mesmo tempo... escravizados pelo mais ferrenho regime de recrutamento, da guarda nacional, da polícia e da justiça convertida em arma política; a nação dividida em dois partidos pessoais; associa-se um deles ao governo, para que metade da nação contenha e subjugue a outra metade, sem tirar-lhe a esperança de ter igual ventura e desforra; entretém-se a vida da nação nessa contenda estéril e brutal; o partido dominante é senhor absoluto de uma das câmaras, mas enfraquecido, embaraçado, reduzido a quase nada como poder legislativo pela organização e condições especiais da outra câmara; o partido do governo tem todas as largas faculdades da administração, mas o outro se conserva à mão, como instrumento dócil e infalível, de ameaça e subversão: não pode haver nada de mais perfeito e sublime em matéria de despotismo embuçado nas formas de governo liberal e representativo...


Outro: “Aqui, não é a nação; é o governo, só o governo quem decide de tudo... parece incrível em um país americano tão odiento despotismo na administração, tão profunda degradação nacional”. E o antigo liberal fecha o quadro: “Vergonhoso absolutismo do governo, violência da autoridade, inércia e inépcia da administração.”142  Ele está falando para a mesma época, para aqueles dias de verdadeira crise – 1869-71.


142 Op. cit., pág. 31; T. Bastos, Cartas de um solitário; Sousa Carvalho, O Brasil em 1870 , págs. 50 e 51.

Este é o Brasil politico, de 1870, que, no entanto, vale como situação de grande crise, aquele renovar de esforços, pela liberdade, e de onde sairá a abolição e a república. José de Alencar,143  sem intuições políticas, mas bastante probo para fixar a verdade, ao contemplar o mundo onde se move, teve de repetir o conceito de Tácito para a Roma apodrecida dos últimos Césares – ad servitutem paratum... De fato, aquela horda, tão pronta sob Itaboraí, como sob São Vicente, ou Paranhos, era uma manada conformada no servilismo. Conservador, José de Alencar viu o Brasil político na mesma visão do liberal Sousa Carvalho:


... neste país democrata, não é o elemento móvel, não é a opinião que domina; mas a vitaliciedade... faça-se a alforria do voto, cativo do governo; a alforria da justiça, cativa do arbítrio, a alforria do país, cativo do absolutismo, cativo da preponderância do governo pessoal... Há um luxo, um aparato, uma ostentação de onipotência, que abate o cidadão brasileiro...


143 José de Alencar manifesta-se, em 1870 e 71, em discursos na Câmara e artigos no Jornal do Commercio. O opúsculo de Landulfo – Os Cortesãos... mereceu notas à margem pela mão de Pedro II. O exemplar, assim, está na Biblioteca Nacional.


Havemos de encontrar-nos, com esse poder pessoal, essa ostentação de onipotência... Dez anos antes, tomando o motivo da viagem do imperador ao Norte, Landulfo Medrado tem a impressão de:



... um espetáculo burlesco! Tudo mentira, tudo baixeza!... numerosas congratulações que só dizem submissão; não trazem uma palavra digna, livre, conscienciosa, patriótica!... Coisas estrangeiras, alheias a nosso caráter, à nossa história, às nossas crenças. O povo, lá como aqui (no Sul e no Norte), silencioso ante a grande mascarada, sem se inquietar com a sua significação moral.


Landulfo é liberal; para continuar a alternância na identidade dos conceitos, venham os do Conservador, jornal político, na orientação do Visconde Camaragibe, Pinto de Campos, e outros qualificados do partido: “A nefasta política do governo do imperador foi quem criou este estado desesperado em que nos achamos... política de proscrição, de corrupção, de venalidade e de cinismo...” Pelo mesmo tempo, o Diário do Povo, dos liberais Octaviano, Tavares Bastos, Lafaiete... rugia em lamentos:



No exterior, uma guerra desastrada... No interior, um espetáculo miserando. Fórmulas aparentes de um governo livre, homenagem de hipocrisia à opinião do século; as grandes instituições anuladas, e a sua ação constitucional substituída por um arbítrio disfarçado. (Julho de 1868).


Por todo esse período – 1840-70-88... a história da política oficial do Brasil, quando não é flatulenta pela pulhice, é asquerosa, pelos crimes contra a nação, contra a humanidade. Companheiro de José de Alencar, Ferreira Viana veio gritar no parlamento: “Quarenta anos de reinado, quarenta anos de mentiras, de perfídias, de usurpação!... príncipe conspirador, Cesar caricato!... O imperador estragou todas as forças vitais da nação... A monarquia governa o país há mais de meio século só pela corrupção e pela violência...” Depois, Ferreira Viana foi ministro do Cesar caricato... Era do regime, cuja síntese se fez nestas palavras de Ouro Preto: “No governo do Brasil já nem as aparências se salvam...” Em 1867, o Diário de São Paulo, de Antonio Prado e João Mendes havia afirmado: “Para o monarca brasileiro, só há uma virtude – o servilismo”. Confirmando Ouro Preto, julgou Silveira Martins: “O governo é mau, o sistema é mau; os governos que se têm mostrado covardes, fracos, incapazes, sujeitam-se a tudo e sujeitar-se-ão sempre a esse absolutismo disfarçado, sob cuja pressão vivemos e é preciso acabar, para felicidade do Império, onde só sofrem os fracos e campeiam os poderosos...” Outro liberal, Joaquim Nabuco, vem completar a condenação: “É impossível que o país, depois de ter conhecido a abjeção a que tocou esse sistema, continue por muito tempo sujeito a ele, e não faça desde logo um esforço para salvar a sua dignidade e o seu nome”.144  Coincide com esse discorrer, a campanha do outro liberal, Rui Barbosa, que fulmina inexoravelmente todo o programa, e toda a ação dos dominantes: “A monarquia bragantina...”


144 Destas transcrições, as que não são dos opúsculos de Sousa Carvalho, Melo Morais, Landulfo, T. Otoni (Biog. de Pedro II), discursos e artigos de José de Alencar, são tiradas das – Origens Republicanas, de Felício Buarque, e A política do Rei, de Saldanha Marinho.


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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Leia também:

O Brasil nação - v1: § 33 – Um lance de liberalismo: “Quero já” - Manoel Bomfim

O Brasil nação - v1: § 35 – Os valores na crosta - Manoel Bomfim


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