Eduardo Galeano
28. O Livro dos Abraços
Celebração do silêncio/1
Fazia anos que eu não encontrava Fernando Rodríguez. O vento do exílio, que tanto separa, nos juntou. Encontrei-o como sempre, desmantelado e resmungão:
— Você está igualzinho — eu disse.
Ele me disse que ainda tinha alguns anos, não muitos:
— Não se deve passar dos setenta, porque senão você se vicia e não quer mais morrer.
Naquela tarde nos deixamos caminhar, sem rumo, entre o mar e as vias do trem, lá em Callella da Costa. Íamos lentos, calando juntos, e perto da estação paramos para tomar um café. Então Fernando comentou alguma coisa sobre o poço onde os militares mantinham Raul Sendic, o Tupamaro preso, e juntos nos lembramos de Raul e de sua maneira de ser. Fernando me perguntou:
— Você leu o que os jornais publicaram, quando ele foi preso?
Os jornais tinham informado que ele tinha saído de seu esconderijo com uma pistola na mão, abrindo fogo e gritando: "Sou Rufo e não me entrego!"
— Sim — eu disse —. Li.
—- Ah. E acreditou?
— Não.
— Eu também não — disse Fernando —-. Esse, quando cai liquidado, cai calado.
Celebração do silêncio/2
O cantor Braulio López, que é a metade do duo Los Olimarenos, chegou a Barcelona, chegou ao exílio. Vinha com uma mão quebrada. Braulio tinha estado preso, no cárcere de Villa Devoto, na Argentina, por andar com três livros: uma biografia de José Artigas, uns poemas de Antonio Machado e O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry. Quando estavam a ponto de libertá-lo, um guarda tinha entrado em sua cela e perguntado:
— Você é o violeiro?
E tinha pisado em sua mão esquerda com a bota.
Ofereci a ele: vamos fazer uma entrevista. Essa história podia interessar à revista Triunfo, de Madri. Mas Braulio cocou a cabeça, pensou um pouco e me disse:
— Não.
E me explicou:
— Essa história da mão se resolve, cedo ou tarde ela fica boa. E então vou voltar a tocar e a cantar. Você entende? Eu não quero desconfíar dos aplausos.
Celebração da voz humana/4
Manfred Max-Neef, que morou no Uruguai há mais de vinte anos, comentou comigo o que ele mais lembrava: que os cães latiam sentados e as pessoas tinham a palavra.
Depois, a ditadura militar restabeleceu a ordem, obrigando os uruguaios a mentir ou calar. Eu não sei se os cães latiam em pé; mas ter a palavra era não ter nada.
O sistema/ 2
Tempo dos camaleões: ninguém ensinou tanto à humanidade quanto estes humildes animaizinhos. Considera-se culto quem oculta, rende-se culto à cultura do disfarce. Fala-se a dupla linguagem dos artistas da dissimulação. Dupla linguagem, dupla contabilidade, dupla moral: uma moral para dizer, outra moral
para fazer. A moral para fazer se chama realismo.
A lei da realidade é a lei do poder. Para que a realidade não seja irreal, dizem os que mandam, a moral deve ser imoral.
Celebração das bodas entre a palavra e o ato
Leio um artigo de um escritor de teatro, Arkadi Rajkin, publicado numa revista de Moscou. O poder burocrático, diz o autor, faz com que os atos, as palavras e os pensamentos jamais se encontrem: os atos ficam no local de trabalho, as palavras nas reuniões e os pensamentos no travesseiro.
Boa parte da força de Che Guevara, penso, essa misteriosa energia que vai muito além de sua morte e de seus equívocos, vem de um fato muito simples: ele foi um raro exemplo dos que dizem o que pensam e fazem o que dizem.
O sistema/3
Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido. Tempos de o que me importa, de o que se há se fazer, do é melhor não se meter, do salve-se quem puder. Tempo dos trapaceiros: a produção não rende, a criação não serve, o trabalho não vale.
No rio da Prata, chamamos o coração de bobo. E não porque se apaixona: o chamamos de bobo porque trabalha muito.
_______________________
Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
27.O Livro dos Abraços - A máquina de retroceder - Eduardo Galeano
28. O Livro dos Abraços
Celebração do silêncio/1
Fazia anos que eu não encontrava Fernando Rodríguez. O vento do exílio, que tanto separa, nos juntou. Encontrei-o como sempre, desmantelado e resmungão:
— Você está igualzinho — eu disse.
Ele me disse que ainda tinha alguns anos, não muitos:
— Não se deve passar dos setenta, porque senão você se vicia e não quer mais morrer.
Naquela tarde nos deixamos caminhar, sem rumo, entre o mar e as vias do trem, lá em Callella da Costa. Íamos lentos, calando juntos, e perto da estação paramos para tomar um café. Então Fernando comentou alguma coisa sobre o poço onde os militares mantinham Raul Sendic, o Tupamaro preso, e juntos nos lembramos de Raul e de sua maneira de ser. Fernando me perguntou:
— Você leu o que os jornais publicaram, quando ele foi preso?
Os jornais tinham informado que ele tinha saído de seu esconderijo com uma pistola na mão, abrindo fogo e gritando: "Sou Rufo e não me entrego!"
— Sim — eu disse —. Li.
—- Ah. E acreditou?
— Não.
— Eu também não — disse Fernando —-. Esse, quando cai liquidado, cai calado.
Celebração do silêncio/2
O cantor Braulio López, que é a metade do duo Los Olimarenos, chegou a Barcelona, chegou ao exílio. Vinha com uma mão quebrada. Braulio tinha estado preso, no cárcere de Villa Devoto, na Argentina, por andar com três livros: uma biografia de José Artigas, uns poemas de Antonio Machado e O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry. Quando estavam a ponto de libertá-lo, um guarda tinha entrado em sua cela e perguntado:
— Você é o violeiro?
E tinha pisado em sua mão esquerda com a bota.
Ofereci a ele: vamos fazer uma entrevista. Essa história podia interessar à revista Triunfo, de Madri. Mas Braulio cocou a cabeça, pensou um pouco e me disse:
— Não.
E me explicou:
— Essa história da mão se resolve, cedo ou tarde ela fica boa. E então vou voltar a tocar e a cantar. Você entende? Eu não quero desconfíar dos aplausos.
Celebração da voz humana/4
Manfred Max-Neef, que morou no Uruguai há mais de vinte anos, comentou comigo o que ele mais lembrava: que os cães latiam sentados e as pessoas tinham a palavra.
Depois, a ditadura militar restabeleceu a ordem, obrigando os uruguaios a mentir ou calar. Eu não sei se os cães latiam em pé; mas ter a palavra era não ter nada.
O sistema/ 2
Tempo dos camaleões: ninguém ensinou tanto à humanidade quanto estes humildes animaizinhos. Considera-se culto quem oculta, rende-se culto à cultura do disfarce. Fala-se a dupla linguagem dos artistas da dissimulação. Dupla linguagem, dupla contabilidade, dupla moral: uma moral para dizer, outra moral
para fazer. A moral para fazer se chama realismo.
A lei da realidade é a lei do poder. Para que a realidade não seja irreal, dizem os que mandam, a moral deve ser imoral.
Celebração das bodas entre a palavra e o ato
Leio um artigo de um escritor de teatro, Arkadi Rajkin, publicado numa revista de Moscou. O poder burocrático, diz o autor, faz com que os atos, as palavras e os pensamentos jamais se encontrem: os atos ficam no local de trabalho, as palavras nas reuniões e os pensamentos no travesseiro.
Boa parte da força de Che Guevara, penso, essa misteriosa energia que vai muito além de sua morte e de seus equívocos, vem de um fato muito simples: ele foi um raro exemplo dos que dizem o que pensam e fazem o que dizem.
O sistema/3
Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido. Tempos de o que me importa, de o que se há se fazer, do é melhor não se meter, do salve-se quem puder. Tempo dos trapaceiros: a produção não rende, a criação não serve, o trabalho não vale.
No rio da Prata, chamamos o coração de bobo. E não porque se apaixona: o chamamos de bobo porque trabalha muito.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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27.O Livro dos Abraços - A máquina de retroceder - Eduardo Galeano
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