Eduardo Galeano
29. O Livro dos Abraços
Elogio à iniciativa privada
Jesus te vê. Onde quer que vá, seus olhos o seguem. A tecnologia moderna ajuda o filho de Deus a cumprir suas funções de vigilância universal. Três capas de plástico polarizado, que bloqueiam sucessivamente a passagem da luz, facilitam essa tarefa.
Lá por 1961 ou 1962, uma destas imagens de olhos escorregadios chamou a atenção de um jornalista. Júlio Tacovilla ia caminhando por uma rua qualquer de Buenos Aires, quando se sentiu observado. De uma vitrine, Jesus tinha cravado os olhos nele. Retrocedeu e o olhar de Jesus retrocedeu com ele. Deteve-se, e o olhar também se deteve. Avançou, e o olhar avançou.
Este sinal divino mudou a sua vida e arrancou-o da situação de pobre.
Pouco depois, Tacovilla voou para Porto Príncipe, e através da embaixada de seu país no Haiti conseguiu uma audiência com o presidente vitalício Papa Doc Duvalier.
Levava um quadro grande, debaixo do braço:
— Tenho algo para lhe mostrar, Excelência — disse. Era um retrato do ditador. Os olhos se mexiam.
— Papa Doc te vê — explicou Tacovilla. Papa Doc concordou, com a cabeça.
— Não é ruim — disse, indo e vindo perante sua própria imagem —. Quantos você pode fazer?
— Quanto o senhor pode pagar?
— Pago o que custar.
E assim o Haiti encheu-se de olhares vigilantes e o inquieto jornalista se encheu de
dinheiro.
O crime perfeito
Em Londres, é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer funcionar a calefação de seu quarto.
Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.
O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.
Imediatamente, puseram mãos à obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.
As moedas de gelo não deixavam pistas, porque o calor as evaporava.
E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar Caribe.
O exílio
A ditadura militar me negava passaporte, como a muitos milhares de uruguaios, e eu estava condenado a fazer filas perpétuas no Departamento de Estrangeiros da polícia de Barcelona.
Profissão? Escritor, escrevi, de formulários. Certo dia eu não agüentava mais. Estava farto de filas de horas na rua, e farto dos burocratas cujas caras não conseguia nem mesmo ver:
— Estes formulários estão errados.
— Mas me deram aqui...
— Quando?
— Semana passada.
— E que agora temos formulários novos.
— Pode me dar esses formulários novos?
— Não tenho.
— E onde é que tem?
— Não sei. O próximo.
E depois faltavam as estampilhas, e nenhuma papelaria vendia essas estampilhas que faltavam, e eu tinha levado duas fotos e eram três, e as máquinas de fotografia instantâneas não funcionavam sem moedas de vinte e cinco e naquele dia não, se conseguia nenhuma moeda de vinte e cinco pesetas em toda Barcelona.
Anoitecia quando finalmente subi no trem, para voltar à minha casa em Calella da Costa. Eu estava arrebentado. Mal me sentei, e dormi.
Fui acordado por uma batidinha no ombro. Abri os olhos e vi um tipo esfarrapado, vestido com um pijama rasgado:
— Passaporte...
O louco tinha cortado em pedaços uma folha imunda de jornal, e ia distribuindo os pedacinhos, de vagão em vagão, entre os passageiros do trem:
— Passaporte! Passaporte!'...
A civilização do consumo
Às vezes, no final da temporada de verão, quando os turistas iam embora de Calella, ouviam-se uivos vindos do morro. Eram os clamores dos cachorros amarrados nas árvores.
Os turistas usavam os cachorros, para alívio da solidão, enquanto as férias duravam, e depois, na hora de partir, os cachorros eram amarrados morro acima, para que não seguissem os turistas que partiam.
_______________________
Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
30. O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Buenos Aires - Eduardo Galeano
29. O Livro dos Abraços
Elogio à iniciativa privada
Jesus te vê. Onde quer que vá, seus olhos o seguem. A tecnologia moderna ajuda o filho de Deus a cumprir suas funções de vigilância universal. Três capas de plástico polarizado, que bloqueiam sucessivamente a passagem da luz, facilitam essa tarefa.
Lá por 1961 ou 1962, uma destas imagens de olhos escorregadios chamou a atenção de um jornalista. Júlio Tacovilla ia caminhando por uma rua qualquer de Buenos Aires, quando se sentiu observado. De uma vitrine, Jesus tinha cravado os olhos nele. Retrocedeu e o olhar de Jesus retrocedeu com ele. Deteve-se, e o olhar também se deteve. Avançou, e o olhar avançou.
Este sinal divino mudou a sua vida e arrancou-o da situação de pobre.
Pouco depois, Tacovilla voou para Porto Príncipe, e através da embaixada de seu país no Haiti conseguiu uma audiência com o presidente vitalício Papa Doc Duvalier.
Levava um quadro grande, debaixo do braço:
— Tenho algo para lhe mostrar, Excelência — disse. Era um retrato do ditador. Os olhos se mexiam.
— Papa Doc te vê — explicou Tacovilla. Papa Doc concordou, com a cabeça.
— Não é ruim — disse, indo e vindo perante sua própria imagem —. Quantos você pode fazer?
— Quanto o senhor pode pagar?
— Pago o que custar.
E assim o Haiti encheu-se de olhares vigilantes e o inquieto jornalista se encheu de
dinheiro.
O crime perfeito
Em Londres, é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer funcionar a calefação de seu quarto.
Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.
O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.
Imediatamente, puseram mãos à obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.
As moedas de gelo não deixavam pistas, porque o calor as evaporava.
E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar Caribe.
O exílio
A ditadura militar me negava passaporte, como a muitos milhares de uruguaios, e eu estava condenado a fazer filas perpétuas no Departamento de Estrangeiros da polícia de Barcelona.
Profissão? Escritor, escrevi, de formulários. Certo dia eu não agüentava mais. Estava farto de filas de horas na rua, e farto dos burocratas cujas caras não conseguia nem mesmo ver:
— Estes formulários estão errados.
— Mas me deram aqui...
— Quando?
— Semana passada.
— E que agora temos formulários novos.
— Pode me dar esses formulários novos?
— Não tenho.
— E onde é que tem?
— Não sei. O próximo.
E depois faltavam as estampilhas, e nenhuma papelaria vendia essas estampilhas que faltavam, e eu tinha levado duas fotos e eram três, e as máquinas de fotografia instantâneas não funcionavam sem moedas de vinte e cinco e naquele dia não, se conseguia nenhuma moeda de vinte e cinco pesetas em toda Barcelona.
Anoitecia quando finalmente subi no trem, para voltar à minha casa em Calella da Costa. Eu estava arrebentado. Mal me sentei, e dormi.
Fui acordado por uma batidinha no ombro. Abri os olhos e vi um tipo esfarrapado, vestido com um pijama rasgado:
— Passaporte...
O louco tinha cortado em pedaços uma folha imunda de jornal, e ia distribuindo os pedacinhos, de vagão em vagão, entre os passageiros do trem:
— Passaporte! Passaporte!'...
A civilização do consumo
Às vezes, no final da temporada de verão, quando os turistas iam embora de Calella, ouviam-se uivos vindos do morro. Eram os clamores dos cachorros amarrados nas árvores.
Os turistas usavam os cachorros, para alívio da solidão, enquanto as férias duravam, e depois, na hora de partir, os cachorros eram amarrados morro acima, para que não seguissem os turistas que partiam.
_______________________
Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
________________________
30. O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Buenos Aires - Eduardo Galeano
Nenhum comentário:
Postar um comentário