terça-feira, 11 de abril de 2017

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XIX

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XIX





No dia seguinte, terça-feira, 30 de junho, recomeçamos a descer. Continuávamos a seguir a galeria de lava, verdadeira rampa natural, suave como os planos inclinados que ainda substituem as escadas nas velhas casas. Isso até meio-dia e dezessete, instante preciso em que nos reunimos a Hans, que acabara de parar. 

- Ah! - exclamou meu tio. - Chegamos à extremidade da chaminé.

Olhei ao meu redor. Estávamos no centro de uma encruzilhada, onde terminavam dois caminhos, ambos escuros e estreitos. Por qual deveríamos seguir? Era difícil resolver. Meu tio, entretanto, não quis parecer hesitante diante de mim ou do guia; designou o túnel do leste, e logo estávamos os três dentro dele.

Além disso, qualquer hesitação diante dos dois caminhos teria se prolongado indefinidamente, pois nenhum indício poderia determinar a opção por um ou por outro. Tínhamos de colocar-nos nas mãos do acaso.

A inclinação da nova galeria era pouco sensível, e seu perfil bastante desigual. Por vezes, uma sucessão de arcos de abóbada desenvolvia-se diante de nós como nas naves de uma catedral gótica. Os artistas da Idade Média teriam podido estudar ali todas as formas daquela arquitetura religiosa cujo gerador é a ogiva.

Um pouco além, tivemos de nos inclinar para atravessar os arcos rebaixados de estilo romano, e grandes pilares encastrados no maciço dobravam-se sobre o assento das abóbadas. Em certos trechos, essa disposição era substituída por substrucções baixas, que pareciam obras de castores, e rastejávamos por passagens estreitas. O calor era suportável. Involuntariamente pensava em sua intensidade quando as lavas vomitadas pelo Sneffels precipitavam-se por aquele caminho hoje tão tranqüilo. Imaginava as torrentes de fogo quebradas pelos ângulos da galeria e o acúmulo de vapores superaquecidos naquele ambiente tão estreito!

"Contanto que o velho vulcão não resolva se recuperar", pensava.

Não comuniquei minhas reflexões ao tio Lidenbrock, que não as compreenderia. Seu único pensamento era seguir em frente. Caminhava, escorregava e até descambava, com a convicção de que, afinal de contas, era melhor admirar.

Às seis da tarde, após um passeio um tanto extenuante, havíamos percorrido mais duas milhas para o sul, mas só descêramos um quarto de légua em profundidade. Meu tio deu o sinal de descanso, comemos sem conversar muito, e dormimos sem pensar demais.

Nossas disposições para a noite eram bem simples; um cobertor de viagem, no qual nos enrolávamos, era toda a nossa roupa de cama. Não tínhamos por que temer o frio ou visitas inoportunas. Os viajantes que se embrenham pelos desertos da África, ou pelas florestas do Novo Mundo, são obrigados a montar guarda durante as horas de sono. Aqui, solidão absoluta e segurança completa. Não precisávamos ter medo de nenhuma raça malfeitora, selvagem ou de animais ferozes.

No dia seguinte, acordamos restabelecidos e dispostos. Continuamos a andar. Seguíamos por um caminho de lava como na véspera. Impossível reconhecer a natureza dos terrenos que atravessava. Em vez de penetrar nas entranhas do globo, o túnel tendia a ficar completamente horizontal. Achei que estávamos voltando para a superfície da terra. Essa disposição tornou-se tão manifesta por volta das dez da manhã, e, consequentemente tão cansativa, que fui obrigado a moderar nossa marcha.

- O que houve, Axel? - perguntou o professor, impaciente.

- Acontece que não aguento mais - respondi.

- O quê! Depois de três horas de passeio num caminho tão fácil!

- Não estou dizendo que não é fácil, mas é extenuante.

- Como! Estamos descendo!

- Se o senhor me permite, estamos subindo!

- Subindo! - resmungou meu tio dando de ombros.

- É claro! Faz uma meia hora que as inclinações se modificaram, e se continuarem assim, com certeza voltaremos à terra da Islândia.

O professor abanou a cabeça como alguém que não quer ser convencido. Tentei reencetar a conversa. Ele não me respondeu e deu o sinal de partida. Reparei que seu silêncio não passava de mau humor concentrado.

Peguei meu fardo com coragem e segui com rapidez atrás de Hans, que precedia meu tio. Fazia questão de não me afastar.

Minha grande preocupação era não perder meus companheiros de vista. Tremia ao pensamento de extraviar-me nas profundezas daquele labirinto. Além disso, embora o caminho ascendente se tornasse mais penoso, consolava-me pensar que me aproximava da superfície da terra. Era uma esperança. Cada passada confirmava-o, e gozava antecipadamente a ideia de rever minha pequena Grauben.

Ao meio-dia, as paredes da galeria mudaram de aspecto, o que percebi pelo enfraquecimento da luz elétrica refletida nas muralhas. A rocha viva substituía o revestimento de lava. O maciço era composto de camadas inclinadas, geralmente dispostas na vertical. Estávamos em plena época de transição, em pleno período siluriano.

- É evidente - exclamei - que os sedimentos das águas formaram, na segunda era da Terra, esses xistos, esses calcários e esses grés!

Estamos deixando o maciço granítico! Parecemos com as pessoas de Hamburgo que pegam a estrada de Hanôver para ir a Liebeck! Devia ter guardado essas observações para mim. Mas meu temperamento de geólogo foi maior que a prudência, e o tio Lidenbrock ouviu minhas exclamações.

- O que há com você? - perguntou.

- Veja! - respondi, mostrando-lhe a sucessão variada de grés, calcários e os primeiros vestígios dos terrenos cobertos de ardósia.

- E daí?

- Acabamos de chegar ao período em que apareceram as primeiras plantas e os primeiros animais!

- Ah, você acha?

- Mas olhe, examine, observe!

Obriguei o professor a passear sua lanterna pelas paredes da galeria. Esperava que exclamasse algo. Mas ele nada disse e continuou a andar. Será que me entendera? Será que não queria concordar por amor-próprio de tio e cientista que errara ao optar pelo túnel do leste, ou insistia em reconhecer aquela passagem até o fim? Era evidente que abandonáramos a rota das lavas e que aquele caminho não nos levaria ao centro do Sneffels.

No entanto, perguntava-me se não estava dando importância demais à modificação dos terrenos. Não estava enganando a mim mesmo? Será que estávamos realmente atravessando as camadas de rocha sobrepostas ao maciço granítico?

"Se eu tiver razão", pensava, "tenho de encontrar algum vestígio de planta primitiva; e então ele terá de dar o braço a torcer. Vou procurar".

Não andara nem cem passos quando encontrei provas incontestáveis. Era isso mesmo, pois, na época siluriana, os mares abrigavam mais de mil e quinhentas espécies vegetais ou animais.

Acostumados com o solo duro das lavas, meus pés pisaram de repente numa poeira composta de restos de plantas e conchas. Nas paredes, distinguiam-se claramente marcas de algas e licopódios. Não enganariam o professor Lidenbrock. Mas acho que ele não queria ver e prosseguia num passo invariável.

Era teimosia demais. Não consegui mais me conter. Peguei uma concha em perfeito estado, que provavelmente pertencera a um animal semelhante ao bicho-de-conta atual, fui até meu tio e disse:

- Veja!

- O que é que tem? - respondeu tranquilamente. - É a concha de um crustáceo da ordem desaparecida dos trilobites.

Nada além disso.

- Mas o senhor não conclui que...

- O mesmo que você? Claro. Sem dúvida. Abandonamos a camada de granito e o caminho das lavas. É possível que eu tenha me enganado. Mas só terei certeza do meu erro quando chegarmos ao final desta galeria.

- O senhor tem razão em agir dessa forma, meu tio, e eu não hesitaria em aprová-lo se não tivéssemos de temer um perigo cada vez mais ameaçador.

- Qual?

- A falta de água.

- Muito bem. Racionaremos, Axel.





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