quinta-feira, 27 de abril de 2017

11.O Estrangeiro: Hoje trabalhei muito - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 3


11. Hoje trabalhei muito




Hoje trabalhei muito, no escritório. O chefe foi amável. Perguntou-me se eu não estava cansado e quis saber a idade da mãe. Para não me enganar, respondi "Uns sessenta e tal", e, não sei porque, ficou com um ar aliviado, um ar de "assunto arrumado". Havia imensas cartas a responder, amontoadas sobre a minha secretária e tive que lhes dar seguimento. Antes de deixar o escritório para ir almoçar, lavei as mãos. Ao meio-dia, gosto sempre de o fazer, à tarde, não tanto, porque a toalha rolante já está muito úmida: serviu durante todo o dia.

Uma vez fiz esta mesma observação ao chefe. Respondeu-me que era aborrecido, mas que se tratava de um pormenor sem importância. Saí um pouco mais tarde, ao meio-dia e meia hora, com o Manuel, que trabalha na expedição. O escritório dá para o mar e perdemos alguns instantes a olhar para os barcos de carga, no porto ardente de sol. Neste momento passou um caminhão, fazendo um enorme barulho de correntes e de explosões. O Manuel perguntou-me "se aproveitávamos" e eu comecei a correr. O caminhão ultrapassou-nos e lançámo-nos a toda a velocidade atrás dele. Sentia-me inundado de poeira e de ruído. Não via nada e sentia apenas este impulso desordenado da corrida, no meio de guindastes e de máquinas, de mastros que dançavam no horizonte e de cascos de navios. Fui o primeiro a agarrar-me e atirei-me num salto. Depois, ajudei o Manuel a sentar-se. Estávamos sem fôlego, o caminhão ia aos saltos no pavimento irregular do cais, por entre a poeira e o sol. O Manuel ria-se a bandeiras despregadas. Chegamos todos suados ao restaurante do Celeste, que lá estava como sempre, com a sua barriga gorda, o seu avental e os seus bigodes brancos. Perguntou-me "se eu me sentia bem".

Disse-lhe que sim e que estava com fome. Comi muito depressa e tomei um café. Depois voltei para casa, dormi um bocado porque bebera vinho demais e, ao acordar, tive vontade de fumar. Fazia-se tarde e corri para apanhar um eléctrico. Trabalhei toda a tarde. Fazia muito calor no escritório e à tarde, à saída, gostei de passear lentamente ao longo do cais. O céu estava verde e eu sentia-me contente. Mas apesar disso fui diretamente para casa, pois queria cozer umas batatas. Ao subir, na escada escura, choquei com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Ia com o cão. Há oito anos que não se largam. O rafeiro tem uma doença de pele que lhe fez cair todo o pelo e que o cobre de manchas e de crostas. À força de viver com ele, os dois sozinhos num pequeno quarto, o velho Salamano acabou por ficar parecido com o cão. Quanto ao cão, tomou do dono uma espécie de ar curvado, focinho para a frente e pescoço estendido. Parecem da mesma raça, e no entanto detestam-se. Duas vezes por dia, às onze e às seis horas, o velho leva o cão a passear. Fazem há oito anos o mesmo itinerário.

Seguem ao longo da rua de Lyon, o cão a puxar pelo homem até o fazer tropeçar. Põe-se então a bater no bicho e a insultá-lo. O cão roja-se cheio de medo e deixa-se arrastar. Nesse momento é o velho quem tem que puxar. Quando o cão se esquece, põe-se outra vez a puxar e é outra vez espancado e insultado. Ficam então os dois no passeio e olham-se, o cão com terror, o homem com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão quer fazer as suas necessidades, o velho não lhe dá tempo e arrasta-o: Se por acaso o cão "faz" no quarto, também lhe bate. Isto dura há oito anos. O Celeste diz que "é uma pena", mas no fundo ninguém pode saber. Quando encontrei o Salamano nas escadas, ia a insultar o cão: "Bandido! Cão nojento!" Eu disse: "Boas noites", mas o velho continuava a insultá-lo: Perguntei-lhe o que é que o cão tinha feito. Não me respondeu. Dizia apenas: "Bandido! Cão nojento!". Percebi que, debruçado sobre o animal, estava a arranjar qualquer coisa na coleira. Falei mais alto. Então, sem se voltar para trás, respondeu-me com uma espécie de raiva reprimida: "Está sempre aqui!". Depois foi-se embora puxando pelo cão, que chorava e se deixava arrastar. Neste instante preciso, entrou o meu segundo vizinho de andar. No bairro, corre o boato que vive à custa das mulheres. Mas quando lhe perguntam qual é o emprego que tem, responde que é "lojista". Em geral, não gostam dele. Mas fala muitas vezes comigo e às vezes entra em minha casa, porque sou dos poucos que o escutam. Acho que diz coisas com muito interesse. Aliás, não tenho nenhum motivo para não lhe falar. Chama-se Raimundo Sintès. É baixo, com uns ombros largos e um nariz de pugilista. Anda sempre vestido muito corretamente. Também ele diz, ao falar do Salamano: "uma pena!" Perguntou-me se aquilo não me incomodava e eu respondi-lhe que não. Subimos e eu ia deixá-lo, quando me disse: "Tenho lá em casa vinho e chouriço. Não quer vir petiscá-lo comigo?" Pensei que isso me evitaria ter que fazer o jantar e aceitei. A casa dele compõe-se apenas de um quarto e de uma cozinha sem janela. Por cima da cama, veem-se um anjo de estuque, branco e cor-de-rosa, retratos de campeões e duas ou três fotografias de mulheres nuas. O quarto estava sujo. e a cama por fazer. Primeiro, acendeu a lâmpada de petróleo, depois colocou na mão direita uma ligadura pouco limpa.

Perguntei-lhe o que é que tinha na mão. Respondeu-me que jogara à pancada na rua com um tipo que se metera com ele. - "Não sei se sabe, senhor Meursault, disse, não é que eu seja mau, o que sou é nervoso. O outro disse-me: "Se és homem, desce do eléctrico". Respondi-lhe: "Vá, sossega, tem calma". Disse-me que eu não era um homem. Então desci e disse-lhe: "É melhor que te cales, ou parto-te a cara". Respondeu-me: "Sempre queria ver". Então dei-lhe um soco. Caiu. Quando eu o ia a ajudar a levantar, começou do chão a dar-me pontapés. Então dei-lhe uma joelhada e dois "bicanços". Tinha a cara cheia de sangue. Perguntei-lhe se queria mais. Disse que não." Entretanto, Sintès ia enrolando a ligadura. Eu estava sentado na cama. Disse-me: "Como vê, não fui eu que comecei. Ele é que quis". Reconheci que era verdade. Declarou-me então que, justamente, queria pedir-me um conselho a propósito deste assunto, que eu sim, era um homem, que conhecia a vida, que podia ajudá-lo e que, em seguida, ficaria meu amigo. Não respondi e ele perguntou-me se eu queria ser amigo dele. - Repliquei que tanto me fazia: ele ficou com um ar contente. Tirou o chouriço de um armário, assou-o no fogão, e pôs em cima da mesa copos, pratos, talheres e duas garrafas de vinho. Tudo isto sem dizer uma palavra. Depois instalamo-nos. Enquanto comia, começou a contar-me a história toda. Ao princípio, hesitava um bocadinho. "Conheci uma senhora... Essa senhora... era minha... amante, por assim dizer..." O homem com quem lutara era irmão dessa mulher. Disse-me que a tivera por sua conta. Não respondi nada, mas ele sentiu-se na necessidade de acrescentar imediatamente que sabia muito bem
os boatos que corriam no bairro, mas que só respondia perante a sua consciência, e que tinha a profissão de lojista. "Voltando ao assunto, disse ele, a certa altura percebi que qualquer coisa não jogava certo". Dava-lhe dinheiro suficiente para viver. Pagava-lhe mesmo o quarto e ainda vinte francos por dia para alimentação. "Trezentos francos para o quarto, seiscentos francos para a comida, um par de meias de vez em quando, eram bem uns mil francos por mês." E Sua Excelência não trabalhava!

Mas dizia-me que era pouco, que o que eu lhe dava não era suficiente. E no entanto, eu dizia-lhe: "Porque é que não arranjas um trabalho, nem que seja por meio dia? Já me aliviavas um bocado. Este mês comprei-te um vestido, dou-te vinte francos por dia, pago-te a renda e tu, passas as tardes a tomar café com as amigas. Dás-lhes o café e o açúcar. Portei-me bem contigo e tu não me pagas na mesma moeda". Mas ela não trabalhava, dizia que não era capaz e foi assim que percebi que me andava a enganar." Contou-me que lhe encontrara dentro da carteira um bilhete de lotaria e que ela não soubera explicar como arranjara dinheiro para o comprar. Mais tarde, encontrara-lhe uma senha de casa de penhores, provando que empenhara duas pulseiras. Até aí, ignorara a existência dessas pulseiras. "Percebi perfeitamente que aqui andava gato. Então abandonei-a. Mas primeiro cheguei-lhe. E disse-lhe meia dúzia de verdades. Disse-lhe que o que ela queria, era divertir-se. E disse-lhe também, sr. Meursault:

"Não vês que todos têm inveja da felicidade que te dou? Ainda acabarás por ter saudades da felicidade que tinhas..." Espancara-a até a deixar cheia de sangue. Antes disso, não lhe batia. "Ou por outra batia-lhe, mas ternamente, por assim dizer. Chorava um bocadinho. Eu fechava as persianas e o caso terminava como sempre. Mas agora, foi a sério. E quanto a mim, ainda não a castiguei bastante".


Explicou-me nesta altura que era por isto que precisava de um conselho. Calou-se para regular a torcida do candeeiro. Eu, -continuava a ouvi-lo. Bebera quase um litro de vinho e sentia muito calor nas fontes. Como os meus se haviam acabado, fumava os cigarros do Raimundo. Passavam na rua os últimos elétricos, levando com eles os ruídos agora longínquos do bairro. Raimundo continuou a falar. O que o aborrecia, "era ainda sentir necessidade física dela". Mas queria castigá-la. Primeiro pensara levá-la para um hotel e chamar a polícia de costumes para provocar um escândalo e ser-lhe passada uma carta de profissional. Depois, dirigira-se a uns amigos que pertenciam a um meio duvidoso. Estes não tinham tido nenhuma ideia. E, como me sublinhava Raimundo, valia realmente a pena serem desse meio, para nem ideias terem! Dissera-lhes isso mesmo e eles tinham-lhe então proposto "marcá-la". Mas não era ainda o que ele queria. Precisava de pensar muito. Mas antes, queria perguntar-me uma coisa.
 





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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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10.O Estrangeiro: O céu estava puro - Albert Camus


12.O Estrangeiro: De resto, antes de me perguntar - Albert Camus

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