quarta-feira, 12 de abril de 2017

Gente Pobre - 11. 1 de junho II - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


11.




1 de junho






II




Em certos dias mostrava tal desenvoltura que quase se tornava atrevido; levantava-se da cadeira, ia direito à estante dos livros, pegava num à sorte e punha-se a ler. E fazia tudo isto com todo o desembaraço e sangue-frio, como se estivesse sempre autorizado a mexer nos livros, conforme lhe apetecesse, e as suas relações com o filho nada tivessem de especial. Mas um dia tive ocasião de ver o pobre velho assustar-se por o filho lhe pedir que não tocasse nos livros, Perdeu por completo a estribeira, apressou-se a reparar o seu erro, quis colocar no respetivo sítio o exemplar em que pegara, mas ele escorregou-lhe e caiu ao chão; apanhou-o com toda a rapidez, tentou encaixá-lo novamente entre os outros, mas não o conseguiu, deixando-o cair outra vez, agora de lado; sorriu sem vontade, pôs-se muito vermelho e acabou por não atinar com a forma de corrigir o mal feito.

Pouco a pouco, com admoestações e afetuosas censuras, o filho foi conseguindo que o pai perdesse os seus maus hábitos; e quando o velhote lhe aparecia três vezes seguidas sem estar embriagado, à quarta dava-lhe vinte e cinco ou cinquenta kopeks, e até mais. Comprava-lhe calçado, um casaco ou uma gravata. O pobre homem, quando aparecia com estas coisas novas, impava de orgulho como um galo. Às vezes também vinha passar uns momentos conosco, e levava-nos, a mim e a Sacha, tortas e maçãs. Conversava conosco acerca do seu Petinka, com toda a naturalidade. Pedia-nos que estivéssemos muito atentos às lições e guardássemos respeito ao nosso professor, pois Petinka era um bom filho, o melhor dos filhos e, além disso, um filho muito ilustrado. Quando dizia isto, piscava-nos comicamente o olho esquerdo e dava-se tal importância, que nós, quase sempre, não nos podíamos conter e desatávamos a rir. A mamã tinha grande simpatia pelo velhinho; este, por sua vez, detestava Ana Fedorovna, embora na sua presença se mostrasse mais humilde que a erva e mais calmo do que a água.

Bem depressa deixei de assistir às lições. Pokrovski continuava a ter-me na conta de uma criança malcriada, uma garota como Sacha. Tal facto desgostava-me em extremo, pois eu fizera tudo para modificar a minha conduta anterior. Mas de nada valia; ele não reparava, o que me feria o amor-próprio e me irritava cada vez mais. Fora das horas das lições quase não lhe dirigia a palavra, porque não podia falar. Punha-me muito vermelha e depois ia chorar, às escondidas, para um canto… revoltada contra mim mesma. É difícil de prever a que estado teriam chegado estas coisas, se não fosse um acidente puramente casual nos ter facilitado a aproximação. Foi o seguinte:


Uma tarde, estando a mamã sentada junto de Ana Fedorovna, às escondidas, entrei no quarto de Pokrovski. Sabia perfeitamente que ele não estava; contudo, não poderia explicar bem como me lembrei de me introduzir daquele modo no quarto de um homem. Apesar de vivermos há mais de um ano com uma simples parede de permeio, era a primeira vez que o fazia. O coração pulsava-me com tal violência, que me dava a impressão de saltar fora do peito. Circunvaguei pelo quarto um olhar de curiosidade. O aposento era de uma simplicidade extrema, e encontrava-se pobremente mobilado, e em completa desordem. Viam-se papéis sobre as cadeiras e em cima da mesa. Livros e papéis por toda a parte! De súbito, veio-me à imaginação uma estranha ideia: que a minha amizade e até mesmo o meu amor nada podiam significar para Pokrovski. Ele era um homem culto, enquanto eu não passava de uma ignorante, que não sabia nada, não lia nada, não possuía um único livro... Com que avidez contemplei aquela comprida estante, tão carregada de livros que dava a impressão de estar prestes a cair por não aguentar o peso! Senti inveja, pena, nostalgia e cólera!... Apoderou-se, então, de mim, um desejo enorme de ler aqueles livros, os seus livros, de lê-los todos, do primeiro ao último, e o mais depressa possível. Não sei, mas talvez pensasse que, depois de haver lido tudo aquilo e saber tanto como ele, poderia conseguir a sua amizade muito mais facilmente do que antes, quando nada conhecia. O certo é que fui direita à referida estante e, sem qualquer hesitação, nem sequer refletir no que fazia, peguei no primeiro livro que me veio à mão — um calhamaço muito velho e coberto de pó — e, a tremer de susto e de nervoso, levei-o para o meu quarto, a fim de o ler à noite, à luz da lamparina, depois de a mamã adormecer.

Qual não foi, porém, o meu desapontamento quando, já no meu quarto, abri o livro furtado e verifiquei tratar-se de uma obra em latim muito velha, amarelecida pelo tempo e roída da traça! Corri, sem perda de tempo, a repor o exemplar no respetivo sítio. Mas, no preciso momento em que tratava de o colocar lá, dei fé de abrirem e fecharem a porta do corredor e, em seguida, senti o rumor de passos. Alguém entrava! Procurei desfazer-me do calhamaço rapidamente; mas quando o retirara, os seus camaradas do lado foram ocupar o seu lugar e, agora, só comprimindo-os se conseguiria encaixá-lo. Foram baldados os meus esforços. Os passos já se ouviam muito perto; eu continuava a tentar desesperadamente atingir o meu objetivo, quando o prego que segurava uma das extremidades da estante, como se estivesse à espera daquele momento, se quebrou. O móvel caiu estrondosamente e bateu com um extremo no chão, ficando os volumes todos em desordem sobre o soalho. Então a porta abriu-se e Pokrovski entrou.

Antes de mais nada, devo observar que o estudante não admitia que se atrevessem a mexer-lhe nas suas coisas. Ai daquele que lhe tocasse, especialmente, nos livros! Imaginem, pois, a sua indignação ao ver rodarem pelo solo todos os seus livros — grandes e pequenos, encadernados e em brochura! Misturados uns com os outros, foram parar debaixo da mesa e das cadeiras e bater contra a parede, onde formaram pilha Eu quis deitar a correr, mas já era tarde de mais. «Acabou-se — pensei —; já não tem remédio! Estou perdida! Sou desastrada como uma criança de dez anos, uma estúpida moça! Que grande tola!»

Pokrovski ardia em cólera.

— Só faltava esta! — exclamou, irado. — Não tem vergonha, menina? Nunca mais ganhará juízo e não esquecerá de uma vez para sempre as criancices do colégio?

Dito isto, apressou-se a apanhar os livros e eu abaixei-me para o ajudar.

— Não é preciso, não é preciso — prosseguiu ele em tom irritado. — Faria melhor não metendo o nariz onde não é chamada!

Contudo, a minha silenciosa intenção de o auxiliar, que bem mostrava a consciência da minha culpa, pareceu suavizá-lo um pouco. E prosseguiu, em tom mais brando, a admoestar-me, tal como pouco tempo antes me falava na qualidade de professor.

— Quando se resolverá a deixar de fazer coisas no ar e a ganhar juízo? Lembre-se de que já não é nenhuma criança... é uma mocinha de quinze anos!

E, de súbito, como que para se certificar de que eu de facto não era nenhuma criança, fitou os olhos em mim e corou intensamente. Não compreendi o motivo do seu rubor; de pé na frente dele, contemplava-o, atónita, com os olhos muito abertos. Então, com um ar embaraçado, deu dois passos na minha direção e, cada vez mais enleado, balbuciou qualquer coisa em voz baixa, pretendendo talvez pedir desculpa de não haver reparado há mais tempo que eu era já uma mulherzinha. Por fim, compreendi. Não me lembro agora do que então senti; preguei logo os olhos no chão, envergonhada; pus-me mais corada do que Pokrovski, tapei o rosto com as mãos e deixei o aposento, a correr.

Não sabia o que tinha, nem onde esconder a minha vergonha. Ter sido surpreendida no seu quarto! Durante três dias não me atrevi a olhar para ele. Corava de tal modo, que as lágrimas me brotavam dos olhos. Agitava-me no cérebro os mais horríveis e ridículos pensamentos. O mais extravagante de todos era de ir ter com ele, explicar-lhe, confessar-lhe e contar-lhe tudo tal como se passara, garantindo-lhe depois que o meu procedimento não fora uma leviandade de garota, mas antes uma ação animada do melhor propósito. Quando já estava quase resolvida a levar por diante o meu intento, felizmente faltou-me a coragem e não me atrevi a fazê-lo. Arranjava-a bonita! Ainda hoje, só de o pensar me envergonho.

Alguns dias depois, a mamã adoeceu gravemente, com febre. Esta foi aumentando, aponto de na terceira noite de doença cair em delírio intenso. Eu passara uma noite em claro, à cabeceira, para lhe ministrar às devidas horas os remédios que o médico receitara. Na noite seguinte, faltaram-me as forças e senti-me esgotada de todo. De vez em quando os olhos fechavam-se-me, via dançar na minha frente uns pontinhos verdes, a cabeça andava-me à roda e parecia-me estar prestes a perder os sentidos. Então, era despertada por um ligeiro gemido da doente; soerguia-me e ficava alerta por mais um bocadito, para voltar a amodorrar-me, vencida pela fadiga. Durante esses breves momentos de sono, assaltavam-me pesadelos. Não me lembro bem, mas recordo-me de que eram terríveis e, durante a luta que travava com o cansaço, cada vez maior, horrorosas visões me atormentavam. Acordava sobressaltada. A lamparina apagava-se e o aposento mergulhava na escuridão. Depois a luz despontava outra vez e um claro esplendor iluminava o quarto, para, a seguir,
aquela se transformar numa chama azulada que projetava nas paredes sombras oscilantes e, por fim, mergulhar tudo em impenetráveis trevas. De uma das vezes assustei-me sobremodo e fui tomada de um temor extraordinário; os meus sentidos e a minha fantasia achavam-se sob a impressão do horrível pesadelo que tivera e o medo oprimia-me o coração. Levantei-me da cadeira a tremer e, movida por aquele medo torturante, deixei escapar dos lábios um grito aflitivo. No mesmo instante a porta abriu-se e Pokrovski entrou no aposento.


Lembro-me apenas de ter sido nos seus braços que despertei daquele horrível pesadelo. Instalou-me cautelosamente numa cadeira, deu-me um copo de água e, com ar preocupado, fez-me várias perguntas, às quais não sei o que respondi.

— A menina está doente, muito doente — dizia, com as minhas mãos nas suas. — Tem febre. Não cuida de si, dá cabo da saúde. Sossegue, deite-se e durma. Daqui a duas horas, acordo-a, esteja tranquila. Deite-se e durma descansada — ordenou-me sem me dar tempo a protestar.

Com efeito, a fadiga dera-me conta das energias e os meus olhos fechavam de fraqueza. Deitei-me então, resolvida a passar pelo sono meia hora apenas, mas dormi até ser dia. Pokrovski acordou-me precisamente à hora de dar o remédio à minha mãe.

No dia seguinte, quando pelas onze horas, após um breve descanso, me dispunha a velar a mamã, desta vez firmemente decidida a não adormecer, bateram à porta. Abri... e dei de cara com o estudante.

— Pensei que era muito aborrecido estar aí sozinha — disse-me —; por isso trago-lhe este livro para a distrair um pouco.

Peguei no livro — já não me lembro do título — mas pouco li, apesar de ter passado quase toda a noite em claro. Uma extraordinária excitação não me permitia conservar-me quieta um instante; não conseguia dormir, nem tão pouco ficar por muito tempo sentada, levantando-me por isso a cada passo, para passear pelo aposento. Uma estranha agitação interior agitava todo o meu ser. Causava-me enorme contentamento a atenção de Pokrovski e sentia-me orgulhosa daquela gentileza e dos cuidados que por mim demonstrava. Passei toda a noite a pensar nisso e a sonhar acordada. Ele não apareceu mais e eu sabia muito bem que não voltaria durante aquela noite, mas esforçava-me por fantasiar o nosso próximo encontro.

Na noite seguinte, quando já todos se encontravam deitados, o estudante abriu a porta do seu quarto e pôs-se dali a falar comigo. Já não me recordo de nada do que dissemos um ao outro; apenas me lembro de que estava perturbada e confusa, e revoltada contra mim própria, e que esperava com impaciência o fim da conversa, apesar de tão ardentemente a ter desejado, e durante todo o dia não haver pensado noutra coisa, chegando mesmo a ensaiar, em imaginação, as minhas perguntas e respostas.

Começaram ali as nossas relações de amizade, e enquanto durou a doença da mamã, passávamos assim algumas horas da noite. Fui, pouco a pouco, vencendo a minha timidez, embora após cada colóquio tivesse mais motivos para estar descontente comigo própria. Ao mesmo tempo, porém, sentia grande alegria e secreto orgulho por ver que ele abandonava, por minha causa, os seus horríveis calhamaços.





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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