Memórias na Pele
Maria Helena Weber
Agradecimentos a Paulo Coimbra Guedes e Sérgio Caparelli
Lembrando Orlando e Zoila, primeiras memórias de amor
1. Memórias na pele
Nestes dias áridos, cheirando a gravetos, contar as antigas histórias parece inevitável. Lembrar, enquanto meço forças com o sol, para ver quem começará o próximo dia. Agora, escrever é questão de sobrevivência; é possuir a certeza de estar viva. Estes anos, inexoráveis, minaram a beleza e o movimento, mas trouxeram, pelo menos, a sabedoria da idades velhas. Sinto-me tentada a ser mais simples, compreensiva e impaciente, como este silêncio herdado desta casa de pedras.
Ao meu redor sinto, novamente, o vício de remendar a realidade com palavras, personagens e fugas onde as palavras são atraentes, gentis, indolores, como as fotografias. Agora, já é a única saída, porque a ideia invade tudo, toma conta devoradora e possessiva. Não há amigos, amantes, viagens, ou dias melhores para mim. Só há tempo para esperas e delírios impiedosos. Nenhuma expectativa para compartilhar, a não ser a criação, sempre tão jovem e enigmática, com os papeis e o gravador. As rugas registraram, fielmente, alegrias e doenças, cabendo aos olhos guardar, caídos, todas as saudades. O sono se esconde de mim e os gatos querem a comida, sapatos de lã, mas me entendem o suficiente.
(arrumar, de parágrafo em parágrafo, a sequência de emoções até o primeiro orgasmo com o primeiro homem)
A morte não consegue mais me assustar e ronda, avalizada por fantasmas amados. Até a empregada, tão antiga, breve, também, desaparecerá pontual como a noite. Construí essa solidão e nem isso tem importância, agora.
Por que justamente este verão azedo e alaranjado demais, caçador de meu suor, arauto dos insetos, vem devolver a antiga e reticente ideia? Este bafo, despudorado e quente na cara, descobre memórias, cartas e cicatrizes, que foram sendo acumuladas sorrateiramente na pele, nas axilas, no sexo, na boca, nos olhos, na barriga, em mim e naqueles que conheci. Reencontro embaixo da papelada rabiscos provocadores de um plano de voo que transformaria em livro reminiscências. Já pressinto a invasão daqueles que me extraem o texto, decididos como as dores. Dizer o que não foi dito com os nomes que forem surgindo, misturados sem respeito.
(descrever, com a mesma sinuosidade, aquele desejo no olho traiçoeiro do primo louro, no seio que amamentava o filho de quem não seria traído)
Memórias, frações impróprias, como aquelas fotos, onde me vejo bonita, em festa, mãe, esposa, de branco, no mar. Hoje, os espelhos, olhares e homenagens me agridem, são cruéis, verdadeiros demais.
Sim, quem sabe faço o roteiro das lembranças malditas, nunc incluídas nos meus livros, tão doces e fartamente consumidos. Não as quero póstumas, embora amanhã possam ser. Quero dizer dos afetos e paixões conhecidos pelo corpo e intenções, e se forem insuficientes, usarei as histórias dos outros. Possuo histórias, são minhas. Misturar amigos e parentes, anjos e demônios, em outros espaços, e relatar suas emoções, especialmente as implícitas, aquelas guardadas. Outras são visíveis a olho nu, mas a maioria enterrada sem féretro.
(o casamento acabado porque o travesti despeitado delatou o caso atual daquele marido sempre acima de qualquer suspeita)
Talvez possa ser entendido como o livro perdido da minha juventude, já que a uma velha não caberia recitar sobre coisas do amor, com detalhes, tão delicados, eróticos, ou cruéis, como pretendo. Mais conveniente seriam aquelas memórias que, mesmo ascéticas, seriam transformadas pelo estilo e a linguagem em belas e lapidares. Deixarei vazar o que resta dos desejos disformes e antigos. Poderei chama-las de Resgate de Emoções. É isto: um sutil e excitante resgate. Sem dúvida contarei segredos. Aqueles que me pertencem e os inesquecíveis. Especialmente, os picantes, envergonhados, que deixam marcas na felicidade.
(o dia teria sido comum, se o pintor não fosse tão provocador e a briga com o marido tão recente)
Transformarei em histórias aquelas vontades que se acumularam como dunas na pele, no coração. Tenho as lembranças inteiras. Aprendi a roubar emoções, especialmente as não vividas, para minhas laudas com a caneta de ponta dourada, ou a outra de cabo de marfim.
Me apropriei de paixões e personagens e os emprestei aos leitores. Provocaram lágrimas e me tornaram conhecida. Aproveitarei quase tudo. Ressuscitarei algumas pessoas, trocarei seus nomes, mentirei sobre o desenlace. Exporei orgasmos, fugas e saudades sem nenhum sentimentalismo, cruamente, como nascem. Os adjetivos serão ignorados quando interferirem no ato de amar. Há muito não acredito que afeto, amor e ódio possuam qualidades ou defeitos. As emoções são todas iguais, dependem apenas da loucura de cada um e suas necessidades. Nem disto necessito mais. Minto para mim mesma e é melhor assim. Talvez tenha de escrever com outro nome. Tudo deverá ser possível, sem censura.
Maria Helena Weber
Agradecimentos a Paulo Coimbra Guedes e Sérgio Caparelli
Lembrando Orlando e Zoila, primeiras memórias de amor
1. Memórias na pele
Nestes dias áridos, cheirando a gravetos, contar as antigas histórias parece inevitável. Lembrar, enquanto meço forças com o sol, para ver quem começará o próximo dia. Agora, escrever é questão de sobrevivência; é possuir a certeza de estar viva. Estes anos, inexoráveis, minaram a beleza e o movimento, mas trouxeram, pelo menos, a sabedoria da idades velhas. Sinto-me tentada a ser mais simples, compreensiva e impaciente, como este silêncio herdado desta casa de pedras.
Ao meu redor sinto, novamente, o vício de remendar a realidade com palavras, personagens e fugas onde as palavras são atraentes, gentis, indolores, como as fotografias. Agora, já é a única saída, porque a ideia invade tudo, toma conta devoradora e possessiva. Não há amigos, amantes, viagens, ou dias melhores para mim. Só há tempo para esperas e delírios impiedosos. Nenhuma expectativa para compartilhar, a não ser a criação, sempre tão jovem e enigmática, com os papeis e o gravador. As rugas registraram, fielmente, alegrias e doenças, cabendo aos olhos guardar, caídos, todas as saudades. O sono se esconde de mim e os gatos querem a comida, sapatos de lã, mas me entendem o suficiente.
(arrumar, de parágrafo em parágrafo, a sequência de emoções até o primeiro orgasmo com o primeiro homem)
A morte não consegue mais me assustar e ronda, avalizada por fantasmas amados. Até a empregada, tão antiga, breve, também, desaparecerá pontual como a noite. Construí essa solidão e nem isso tem importância, agora.
Por que justamente este verão azedo e alaranjado demais, caçador de meu suor, arauto dos insetos, vem devolver a antiga e reticente ideia? Este bafo, despudorado e quente na cara, descobre memórias, cartas e cicatrizes, que foram sendo acumuladas sorrateiramente na pele, nas axilas, no sexo, na boca, nos olhos, na barriga, em mim e naqueles que conheci. Reencontro embaixo da papelada rabiscos provocadores de um plano de voo que transformaria em livro reminiscências. Já pressinto a invasão daqueles que me extraem o texto, decididos como as dores. Dizer o que não foi dito com os nomes que forem surgindo, misturados sem respeito.
(descrever, com a mesma sinuosidade, aquele desejo no olho traiçoeiro do primo louro, no seio que amamentava o filho de quem não seria traído)
Memórias, frações impróprias, como aquelas fotos, onde me vejo bonita, em festa, mãe, esposa, de branco, no mar. Hoje, os espelhos, olhares e homenagens me agridem, são cruéis, verdadeiros demais.
Sim, quem sabe faço o roteiro das lembranças malditas, nunc incluídas nos meus livros, tão doces e fartamente consumidos. Não as quero póstumas, embora amanhã possam ser. Quero dizer dos afetos e paixões conhecidos pelo corpo e intenções, e se forem insuficientes, usarei as histórias dos outros. Possuo histórias, são minhas. Misturar amigos e parentes, anjos e demônios, em outros espaços, e relatar suas emoções, especialmente as implícitas, aquelas guardadas. Outras são visíveis a olho nu, mas a maioria enterrada sem féretro.
(o casamento acabado porque o travesti despeitado delatou o caso atual daquele marido sempre acima de qualquer suspeita)
Talvez possa ser entendido como o livro perdido da minha juventude, já que a uma velha não caberia recitar sobre coisas do amor, com detalhes, tão delicados, eróticos, ou cruéis, como pretendo. Mais conveniente seriam aquelas memórias que, mesmo ascéticas, seriam transformadas pelo estilo e a linguagem em belas e lapidares. Deixarei vazar o que resta dos desejos disformes e antigos. Poderei chama-las de Resgate de Emoções. É isto: um sutil e excitante resgate. Sem dúvida contarei segredos. Aqueles que me pertencem e os inesquecíveis. Especialmente, os picantes, envergonhados, que deixam marcas na felicidade.
(o dia teria sido comum, se o pintor não fosse tão provocador e a briga com o marido tão recente)
Transformarei em histórias aquelas vontades que se acumularam como dunas na pele, no coração. Tenho as lembranças inteiras. Aprendi a roubar emoções, especialmente as não vividas, para minhas laudas com a caneta de ponta dourada, ou a outra de cabo de marfim.
Me apropriei de paixões e personagens e os emprestei aos leitores. Provocaram lágrimas e me tornaram conhecida. Aproveitarei quase tudo. Ressuscitarei algumas pessoas, trocarei seus nomes, mentirei sobre o desenlace. Exporei orgasmos, fugas e saudades sem nenhum sentimentalismo, cruamente, como nascem. Os adjetivos serão ignorados quando interferirem no ato de amar. Há muito não acredito que afeto, amor e ódio possuam qualidades ou defeitos. As emoções são todas iguais, dependem apenas da loucura de cada um e suas necessidades. Nem disto necessito mais. Minto para mim mesma e é melhor assim. Talvez tenha de escrever com outro nome. Tudo deverá ser possível, sem censura.
(o instinto querendo o filho perdendo a briga para as explicações que o tiraram do corpo para sempre dolorido, apesar dos outros)
Escrever sem ser interrompida por cintos gramaticais, por classificações de gênero e estilo, por vírgulas ou pontos casuais. Nada deverá restringir a emoção em curso. Tudo terá seu próprio significado. Nenhuma palavra poderá definir ou explicar a paixão. Contarei, sem prevenir, o que aprendi com os homens e mulheres, porque os fascinei e os possui, porque fui confidente. Mentir sobre o fim do amor, a força do ódio, roubando os disfarces da loucura; sobre os inexplicáveis vínculos tramados pelo destino e as coincidências, sem retoques. Sem dó, pudor, métrica, ou espanto, contarei sobre os afetos.
(aqueles olhos pretos rasgados invadindo a vontade, entrando rosto adentro, por acaso e sem licença, como areia movediça me engolindo, sem nome, cheirando a álcool)
Contar do toque das mãos desenhando mapas pelo corpo, estradas sem retorno, linhas sem papel; dos prazeres desconhecidos procurados avidamente nos sexos, recém-conhecidos.
(cobrar para fazer amor a três por uma aposta sobre feminino e masculino)
Relembrar as traições que interrompem a construção de uma furtiva história, onde até o amor caberia bem. Incluir o medo de se entregar ao amor. A caça a qualquer corpo, que compartilhe uma cama, uma ideia de amor. Contar a dor de nascer própria das descobertas e mudanças, sem conexão; o desentendimento sobre a vida que provoca solitárias viagens pela escuridão; os abraços carinhosos e o sarcasmo da solidão; o gosto amargo do corpo satisfeito numa cama desconhecida; o riso, também amargo, do encontro casual com o desconhecido por momentos de prazer; o espanto e a dor de ser trocado, sem dúvidas; as separações.
(aquele banho no rio, em que os dedos tinham o poder do universo, cortando manhãs, relinchávamos)
A alegria de se saber entendido, amado, sabendo que o encontro virá compreensivo, brincando de felicidade por uma semana, mês, horas. Seriam registradas, descritas, demonstradas as emoções, as marcas e tatuagens inscritas na pele, na alma, na carne, sem definir o bem, o mal, o sexo.
(o prazer e o medo, aos 50, quando conquistada por um jovem aluno)
Este dia amanhecendo me roubará um pouco mais a fantasia e a certeza sobre as emoções e as memórias já nem parecem tão fortes.
Quem poderia me visitar, além destes gatos piedosos?
(aquele abraço e a boca no pescoço, quentes e reais, marcando o reencontro porque a morte fora apenas um pressentimento)
Hoje, amanhecerei antes do sol no mar, amante antigo a tocar meus pés.
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WEBER, Maria Helena
Editora Igel/Instituto Estadual do Livro, 1989. Porto Alegre
Apresentação da autora no livro Memórias na pele, publicado em 1989, em Porto Alegre:
“Natural da cidade de Caxias do Sul, Maria Helena Weber atua, já há alguns anos, na área da literatura, como autora de textos infantis e teatrais. Obteve a premiação, em 1982, pela FUNARTE, com o trabalho denominado Âmbula, que alia as artes gráficas às artes plásticas. Atualmente exerce atividades como professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde coordena o Curso de Comunicação Social.”
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