Fiódor Dostoiévski
10.
1 de junho
II
Os remorsos não me deixaram durante todo o dia. Era para mim um verdadeiro tormento a ideia de que, com as nossas crueldades de moças, o fizéramos exasperar a ponto de lhe saltarem as lágrimas dos olhos. Quer dizer que foram só as suas lágrimas que nos fizeram arrepender! E a sua irritabilidade, sem dúvida doentia, que nós nos comprazíamos em excitar? E o esgotamento da sua paciência? E o facto de havermos obrigado o pobre rapaz a sentir mais a infelicidade da sua triste condição?
Não consegui pregar olho em toda a noite, de tal modo os remorsos me torturavam. Costuma dizer-se que o pesar e os remorsos aliviam o espírito. Pois é o contrário! Como, não sei; mas o certo é que aliado ao meu pesar andava uma pontinha de orgulho. Não me conformava com a ideia de que ele me julgasse uma criança. Contava eu nessa altura quinze anos.
A partir de então, o meu único pensamento foi procurar conseguir que Pokrovski mudasse de opinião a meu respeito. Formei mil projetos para atingir o meu objetivo, mas a timidez obstou a que os pusesse em prática; nunca me decidia por nenhum, de modo que tudo ficou em planos e sonhos. E que sonhos os meus, Santo Deus! Daí em diante, porém, jamais me associei às brincadeiras de mau gosto de Sacha, e esta mesmo, pouco a pouco, foi-se corrigindo também. Assim, o estudante não teve mais motivos para se zangar conosco. Contudo isso não era compensação bastante para o meu orgulho.
Quero traçar aqui meia dúzia de palavras acerca do homem mais invulgar e mais digno de compaixão que conheci. E é neste lugar que o desejo fazer, porque a partir do dia a que vou referir-me, ele, com quem nunca até então me preocupara nem muito nem pouco, começou a ganhar vulto nos meus pensamentos.
Aparecia às vezes em nossa casa um velhote baixinho, mal vestido e sujo, de cabelo branco, meio trôpego, em suma de características verdadeiramente invulgares. À primeira vista, dir-se-ia que sentia vergonha dele próprio e que pedia perdão de haver nascido. Pelo menos, encolhia-se muito ou esforçava-se por se tornar mais pequeno ainda, por se reduzir à ínfima espécie. Quem observasse as suas maneiras e os seus gestos estranhos convencer-se-ia de que se tratava de uma criatura sem o juízo todo. Quando vinha a nossa casa, ficava sempre muito direito por trás da porta envidraçada, não se atrevendo a entrar. Se, por acaso, Sacha ou eu íamos ao corredor e o víamos ali parado, ele começava a fazer-nos sinais para nos chamar a atenção; e se nós, também por gestos, lhe dávamos a entender que não se encontrava lá qualquer pessoa estranha, ou o chamávamos em voz alta, o pobre ganhava coragem, abria, devagarinho, a porta e entrava, com um sorriso nos lábios. Em seguida esfregava as mãos e, em bicos de pés, dirigia-se para o quarto de Pokrovski. Era o seu pai.
Mais tarde, soube pormenorizadamente a história desse pobre homem. Fora, em tempos, empregado não sei onde; mas, por falta de habilitações, ocupara sempre um lugar insignificante e modesto. Após a morte de sua primeira mulher — mãe de Pokrovski —, voltara a casar com uma burguesa. Jamais reinara a paz naquela família; a nova consorte apoderara-se do mando e levara aquele lar à ruína, de modo que o pobre homem vira-se em piores circunstâncias do que anteriormente. Pokrovski, então com dez anos, fartara-se de sofrer as consequências do ódio da madrasta, até que a sorte o protegera e as coisas para ele tomaram novo rumo. Buikov, um proprietário que conhecera em tempos o pai e lhe dispensara certa proteção, tomara a seu cargo o órfão e metera-o num colégio. Interessava-se pelo rapaz pela simples razão de que conhecera a sua falecida mãe quando esta, protegida por Ana Fedorovna, gozava dos seus benefícios e por seu intermédio casara com o empregado Pokrovski. Quando do casamento, o Sr. Buikov , como bom amigo de Ana Fedorovna, dera à noiva o dote de cinco mil rublos. O que foi feito desse dinheiro, não sei. Tudo isto me foi contado pela própria Ana Fedorovna, pois o estudante nunca me falou da sua família e não gostava que lhe fizessem perguntas acerca dos seus pais. Consta que sua mãe fora muito bonita, pelo que são deveras incompreensíveis as razões que a levaram a contrair uma união tão desvantajosa com aquele homem insignificante. Ela morreu muito nova ainda, ao cabo de quatro anos de casada.
Da escola, o jovem Pokrovski passou para o liceu e daqui para a Universidade, onde o Sr. Buikov, que ia frequentemente a S. Petersburgo, continuou a protegê-lo. Devido à sua débil saúde, porém, o jovem não pôde prosseguir os seus estudos; e foi então que o seu protetor o apresentou a Ana Fedorovna e lhe ecomendou, comprometendo-se ela a fornecer-lhe cama e mesa, com a condição de o estudante ensinar a Sacha todas as ciências.
Para se consolar dos maus bocados que a sua segunda mulher lhe fazia passar, o velho Pokrovski entregou-se ao pior dos vícios — a bebida —, de forma que andava quase permanentemente embriagado. A mulher dava-lhe pancada, fazia-o dormir na cozinha e levou a tal ponto os maus tratos que, com o andar do tempo, o infeliz sofria tudo sem replicar, acabando por nem soltar a mínima queixa. Não era ainda muito idoso, mas, em resultado da vida desregrada que levava, parecia, como disse não ter o juízo todo.
O único vestígio de sentimentos nobres que o pobre homem ainda mostrava, era o imenso amor pelo filho, que se parecia com a sua falecida mulher como duas gotas de água. Seria a recordação dela — que tão boa fora para ele — que alimentava no coração desse velho degenerado essa grande adoração pelo filho? Não falava noutra coisa; visitava-o duas vezes por semana, e não o fazia com mais frequência porque o jovem não gostava das visitas paternas. O desprezo que tinha pelo pai constituía, sem dúvida, o maior defeito do estudante. Na verdade, aquele, por vezes, tornava-se extremamente antipático, era demasiado curioso, tagarelava tanto que não deixava o filho trabalhar, fazia lhe perguntas absolutamente descabeladas e, além disso, nem sempre se apresentava em estado normal. Com o tempo, o rapaz conseguiu fazê-lo perder os maus costumes, e o pai acabou por obedecer-lhe como a um deus, não se atrevendo sequer a abrir a boca sem sua ordem.
O pobre velho não encontrava palavras bastantes para elogiar o seu Petinka —como ele lhe chamava. Quando ia visitá-lo, levava sempre um aspecto preocupado, uma expressão tímida, certamente por ignorar o acolhimento que o filho lhe dispensaria. Geralmente, hesitava por muito tempo antes de entrar, e quando me lobrigava da porta, corria logo para junto de mim e assediava-me durante uma boa meia hora com perguntas acerca do seu Petinka: que estava a fazer, se se encontrava de boa saúde, que tal a sua disposição e se naquele momento trabalhava em qualquer coisa importante. Estaria a escrever, ou a estudar alguma obra filosófica? Finalmente, logo que eu lhe dava respostas suficientemente tranquilizadoras, resolvia-se a abrir devagarinho e com muito cuidado a porta do quarto do filho, metendo a cabeça pela abertura. Se visse que ele estava de bom cariz ou correspondia com um gesto à sua saudação, entrava deliberadamente no aposento, tirava a capa e o chapéu, sempre todo esburacado e às vezes sem abas, e pendurava-os num prego. Fazia tudo isto com o maior cuidado e sem causar o menor ruído. Em seguida, também com extrema cautela, sentava-se numa cadeira e para ali ficava, com os olhos fitos no filho, seguindo-lhe todos os movimentos e olhares, a ver se adivinhava o seu estado de espírito. Se, por acaso, compreendia que naquele dia o jovem se encontrava mal-humorado, levantava-se logo e dizia que tinha ido «só para passar um momento contigo, Petinka. Precisei de fazer um recado para muito longe e, como tinha de passar por aqui, disse: Vou entrar um bocadinho só para o ver e descansar um pouco. Agora vou-me embora, Petinka». E sem acrescentar mais palavra, pegava lentamente na sua velha e fina capa e no amolgado chapéu, fechava, com todo o cuidado, a porta atrás de si e saía, esforçando-se por sorrir e conter a mágoa que sentia no peito a fim de que o filho a não notasse.
Se, pelo contrário, o estudante lhe dispensava um acolhimento afetuoso, então o velho não cabia em si de contente. O seu rosto, os seus gestos, as suas mãos deixavam transparecer a alegria que lhe ia na alma. E se o filho entabulava conversa com ele, o pobre homem levantava-se na cadeira e respondia, num tom humilde e sossegado, quase respeitoso, esforçando-se sempre por adotar expressões estudadas, que como é natural, naquele caso se tornavam cómicas. Além disso, não tinha o dom da palavra, atrapalhava-se, intimidava-se e não sabia onde pôr as mãos nem o que fazer à sua pessoa; acabava por gaguejar as respostas, repetindo-as em voz baixa, como que para as retificar. Mas se, por acaso, conseguia responder em condições ficava todo vaidoso, alisava o casaco, compunha a gravata, sacudia o pó das lapelas e o seu semblante ganhava um certo ar de importância.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 09. 1 de junho II - Dostoiévski
Gente Pobre - 11. 1 de junho II - Dostoiévski
10.
1 de junho
II
Os remorsos não me deixaram durante todo o dia. Era para mim um verdadeiro tormento a ideia de que, com as nossas crueldades de moças, o fizéramos exasperar a ponto de lhe saltarem as lágrimas dos olhos. Quer dizer que foram só as suas lágrimas que nos fizeram arrepender! E a sua irritabilidade, sem dúvida doentia, que nós nos comprazíamos em excitar? E o esgotamento da sua paciência? E o facto de havermos obrigado o pobre rapaz a sentir mais a infelicidade da sua triste condição?
Não consegui pregar olho em toda a noite, de tal modo os remorsos me torturavam. Costuma dizer-se que o pesar e os remorsos aliviam o espírito. Pois é o contrário! Como, não sei; mas o certo é que aliado ao meu pesar andava uma pontinha de orgulho. Não me conformava com a ideia de que ele me julgasse uma criança. Contava eu nessa altura quinze anos.
A partir de então, o meu único pensamento foi procurar conseguir que Pokrovski mudasse de opinião a meu respeito. Formei mil projetos para atingir o meu objetivo, mas a timidez obstou a que os pusesse em prática; nunca me decidia por nenhum, de modo que tudo ficou em planos e sonhos. E que sonhos os meus, Santo Deus! Daí em diante, porém, jamais me associei às brincadeiras de mau gosto de Sacha, e esta mesmo, pouco a pouco, foi-se corrigindo também. Assim, o estudante não teve mais motivos para se zangar conosco. Contudo isso não era compensação bastante para o meu orgulho.
Quero traçar aqui meia dúzia de palavras acerca do homem mais invulgar e mais digno de compaixão que conheci. E é neste lugar que o desejo fazer, porque a partir do dia a que vou referir-me, ele, com quem nunca até então me preocupara nem muito nem pouco, começou a ganhar vulto nos meus pensamentos.
Aparecia às vezes em nossa casa um velhote baixinho, mal vestido e sujo, de cabelo branco, meio trôpego, em suma de características verdadeiramente invulgares. À primeira vista, dir-se-ia que sentia vergonha dele próprio e que pedia perdão de haver nascido. Pelo menos, encolhia-se muito ou esforçava-se por se tornar mais pequeno ainda, por se reduzir à ínfima espécie. Quem observasse as suas maneiras e os seus gestos estranhos convencer-se-ia de que se tratava de uma criatura sem o juízo todo. Quando vinha a nossa casa, ficava sempre muito direito por trás da porta envidraçada, não se atrevendo a entrar. Se, por acaso, Sacha ou eu íamos ao corredor e o víamos ali parado, ele começava a fazer-nos sinais para nos chamar a atenção; e se nós, também por gestos, lhe dávamos a entender que não se encontrava lá qualquer pessoa estranha, ou o chamávamos em voz alta, o pobre ganhava coragem, abria, devagarinho, a porta e entrava, com um sorriso nos lábios. Em seguida esfregava as mãos e, em bicos de pés, dirigia-se para o quarto de Pokrovski. Era o seu pai.
Mais tarde, soube pormenorizadamente a história desse pobre homem. Fora, em tempos, empregado não sei onde; mas, por falta de habilitações, ocupara sempre um lugar insignificante e modesto. Após a morte de sua primeira mulher — mãe de Pokrovski —, voltara a casar com uma burguesa. Jamais reinara a paz naquela família; a nova consorte apoderara-se do mando e levara aquele lar à ruína, de modo que o pobre homem vira-se em piores circunstâncias do que anteriormente. Pokrovski, então com dez anos, fartara-se de sofrer as consequências do ódio da madrasta, até que a sorte o protegera e as coisas para ele tomaram novo rumo. Buikov, um proprietário que conhecera em tempos o pai e lhe dispensara certa proteção, tomara a seu cargo o órfão e metera-o num colégio. Interessava-se pelo rapaz pela simples razão de que conhecera a sua falecida mãe quando esta, protegida por Ana Fedorovna, gozava dos seus benefícios e por seu intermédio casara com o empregado Pokrovski. Quando do casamento, o Sr. Buikov , como bom amigo de Ana Fedorovna, dera à noiva o dote de cinco mil rublos. O que foi feito desse dinheiro, não sei. Tudo isto me foi contado pela própria Ana Fedorovna, pois o estudante nunca me falou da sua família e não gostava que lhe fizessem perguntas acerca dos seus pais. Consta que sua mãe fora muito bonita, pelo que são deveras incompreensíveis as razões que a levaram a contrair uma união tão desvantajosa com aquele homem insignificante. Ela morreu muito nova ainda, ao cabo de quatro anos de casada.
Da escola, o jovem Pokrovski passou para o liceu e daqui para a Universidade, onde o Sr. Buikov, que ia frequentemente a S. Petersburgo, continuou a protegê-lo. Devido à sua débil saúde, porém, o jovem não pôde prosseguir os seus estudos; e foi então que o seu protetor o apresentou a Ana Fedorovna e lhe ecomendou, comprometendo-se ela a fornecer-lhe cama e mesa, com a condição de o estudante ensinar a Sacha todas as ciências.
Para se consolar dos maus bocados que a sua segunda mulher lhe fazia passar, o velho Pokrovski entregou-se ao pior dos vícios — a bebida —, de forma que andava quase permanentemente embriagado. A mulher dava-lhe pancada, fazia-o dormir na cozinha e levou a tal ponto os maus tratos que, com o andar do tempo, o infeliz sofria tudo sem replicar, acabando por nem soltar a mínima queixa. Não era ainda muito idoso, mas, em resultado da vida desregrada que levava, parecia, como disse não ter o juízo todo.
O único vestígio de sentimentos nobres que o pobre homem ainda mostrava, era o imenso amor pelo filho, que se parecia com a sua falecida mulher como duas gotas de água. Seria a recordação dela — que tão boa fora para ele — que alimentava no coração desse velho degenerado essa grande adoração pelo filho? Não falava noutra coisa; visitava-o duas vezes por semana, e não o fazia com mais frequência porque o jovem não gostava das visitas paternas. O desprezo que tinha pelo pai constituía, sem dúvida, o maior defeito do estudante. Na verdade, aquele, por vezes, tornava-se extremamente antipático, era demasiado curioso, tagarelava tanto que não deixava o filho trabalhar, fazia lhe perguntas absolutamente descabeladas e, além disso, nem sempre se apresentava em estado normal. Com o tempo, o rapaz conseguiu fazê-lo perder os maus costumes, e o pai acabou por obedecer-lhe como a um deus, não se atrevendo sequer a abrir a boca sem sua ordem.
O pobre velho não encontrava palavras bastantes para elogiar o seu Petinka —como ele lhe chamava. Quando ia visitá-lo, levava sempre um aspecto preocupado, uma expressão tímida, certamente por ignorar o acolhimento que o filho lhe dispensaria. Geralmente, hesitava por muito tempo antes de entrar, e quando me lobrigava da porta, corria logo para junto de mim e assediava-me durante uma boa meia hora com perguntas acerca do seu Petinka: que estava a fazer, se se encontrava de boa saúde, que tal a sua disposição e se naquele momento trabalhava em qualquer coisa importante. Estaria a escrever, ou a estudar alguma obra filosófica? Finalmente, logo que eu lhe dava respostas suficientemente tranquilizadoras, resolvia-se a abrir devagarinho e com muito cuidado a porta do quarto do filho, metendo a cabeça pela abertura. Se visse que ele estava de bom cariz ou correspondia com um gesto à sua saudação, entrava deliberadamente no aposento, tirava a capa e o chapéu, sempre todo esburacado e às vezes sem abas, e pendurava-os num prego. Fazia tudo isto com o maior cuidado e sem causar o menor ruído. Em seguida, também com extrema cautela, sentava-se numa cadeira e para ali ficava, com os olhos fitos no filho, seguindo-lhe todos os movimentos e olhares, a ver se adivinhava o seu estado de espírito. Se, por acaso, compreendia que naquele dia o jovem se encontrava mal-humorado, levantava-se logo e dizia que tinha ido «só para passar um momento contigo, Petinka. Precisei de fazer um recado para muito longe e, como tinha de passar por aqui, disse: Vou entrar um bocadinho só para o ver e descansar um pouco. Agora vou-me embora, Petinka». E sem acrescentar mais palavra, pegava lentamente na sua velha e fina capa e no amolgado chapéu, fechava, com todo o cuidado, a porta atrás de si e saía, esforçando-se por sorrir e conter a mágoa que sentia no peito a fim de que o filho a não notasse.
Se, pelo contrário, o estudante lhe dispensava um acolhimento afetuoso, então o velho não cabia em si de contente. O seu rosto, os seus gestos, as suas mãos deixavam transparecer a alegria que lhe ia na alma. E se o filho entabulava conversa com ele, o pobre homem levantava-se na cadeira e respondia, num tom humilde e sossegado, quase respeitoso, esforçando-se sempre por adotar expressões estudadas, que como é natural, naquele caso se tornavam cómicas. Além disso, não tinha o dom da palavra, atrapalhava-se, intimidava-se e não sabia onde pôr as mãos nem o que fazer à sua pessoa; acabava por gaguejar as respostas, repetindo-as em voz baixa, como que para as retificar. Mas se, por acaso, conseguia responder em condições ficava todo vaidoso, alisava o casaco, compunha a gravata, sacudia o pó das lapelas e o seu semblante ganhava um certo ar de importância.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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