segunda-feira, 20 de maio de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XX

AS CARTAS ANÔNIMAS




Do not give dalliance 
Too much the rein: the strongest oaths are straw 
To the fire i’ the blood. 

TEMPEST






AO DEIXAR O salão por volta da meia-noite, Julien teve tempo de dizer à sua amiga: 

– Não nos vejamos esta noite, teu marido tem suspeitas; posso jurar que a carta que ele lia, aos suspiros, é uma carta anônima. 

Por sorte, Julien fechava-se à chave em seu quarto. A sra. de Rênal teve a ideia insana de que essa advertência era apenas um pretexto para não vê-la. Perdeu completamente a cabeça e, na hora de costume, veio até sua porta. Julien, que ouviu um ruído no corredor, apagou sua lâmpada no mesmo instante. Faziam esforços para abrir a porta: seria a sra. de Rênal? seria o marido ciumento? 

No dia seguinte bem cedo, a cozinheira, que protegia Julien, trouxe-lhe um livro em cuja capa ele leu estas palavras em italiano: Guardate alla pagina 130. 

Julien buscou com impaciência a página cento e trinta e lá encontrou, pregada com um alfinete, a seguinte carta escrita às pressas, úmida de lágrimas e sem o menor cuidado ortográfico. Ordinariamente a sra. de Rênal redi​gia muito bem: esse detalhe o impressionou, e ele esqueceu um pouco a terrível imprudência. 

“Não quiseste receber-me esta noite? Há momentos em que creio jamais ter lido até o fundo de tua alma. Teus olhares me assustam. Tenho medo de ti. Ó Deus! Será que nunca me amaste? Nesse caso, que meu marido descubra nossos amores, e que me encerre numa eterna prisão, no campo, longe de meus filhos. Talvez Deus o queira assim. Morrerei logo. Mas serás um monstro. “Não me amas? Estás cansado de minhas loucuras, de meus remorsos, ímpio? Queres que me perca? Ofereço-te um meio fácil para isso. Vai, mostra esta carta a Verrières inteira, ou melhor, mostra-a apenas ao sr. Vale​nod. Diz-lhe que te amo; não, não pronuncies tal blasfêmia: diz-lhe que te adoro, que a vida só começou para mim no dia em que te vi; que nos momentos mais loucos da minha juventude jamais havia sequer sonhado com a felicidade que te devo; que por ti sacrifiquei minha vida e te sacrifico minha alma. Sabes que te sacrifico muito mais. 

“Mas sabe esse homem o que é um sacrifício? Diz-lhe, diz-lhe para irritá-lo, que enfrento toda a maldade dos homens, e que no mundo não há senão uma infelicidade para mim, a de ver mudar o único homem que me prende à vida. Que felicidade para mim perdê-la, oferecê-la em sacrifício, e não mais temer por meus filhos! 

“Não duvides, querido amigo, se há uma carta anônima, ela vem desse indivíduo odioso que, durante seis anos, me perseguiu com sua voz grossa, com o relato de seus saltos a cavalo, com sua fatuidade, e com a enumeração eterna de todas as suas vantagens. 

“Há uma carta anônima? Malvado, eis o que eu queria discutir contigo. Mas não, fizeste bem. Apertando-te em meus braços, talvez pela última vez, jamais teria podido pensar friamente, como faço estando só. A partir de agora nossa felicidade já não será tão fácil. Será isso uma contrariedade para ti? Sim, nos dias em que não tiveres recebido do sr. Fouqué algum livro interessante. O sacrifício está feito; amanhã, haja ou não carta anônima, também direi a meu marido que recebi uma carta anônima, e que devemos imediatamente providenciar teu afastamento, achar um pretexto honesto e sem demora devolver-te a teus pais. 

“Ai! querido amigo, vamos separar-nos por quinze dias, quem sabe um mês! Vai, concedo, sofrerás tanto quanto eu. Mas é o único meio de barrar o efeito dessa carta anônima; não é a primeira vez que meu marido as recebe, e a meu respeito. Ah! como eu ria delas! 

“O objetivo de minha conduta é fazer meu marido pensar que a carta vem do sr. Valenod; não duvido que ele seja o autor. Se deixares nossa casa, não deixes de te estabelecer em Verrières. Darei um jeito para que meu marido tenha a ideia de lá passar quinze dias, para provar aos tolos que está tudo bem entre mim e ele. Estando em Verrières, faz amizade com todos, mesmo com os liberais. Sei que todas aquelas damas vão te procurar. 

“Não vás brigar com o sr. Valenod, nem arrancar-lhe as orelhas, como disseste um dia; ao contrário, sê gentil com ele. O essencial é que pensem em Verrières que vais te ocupar, na casa do Valenod ou de outro qualquer, com a educação das crianças. 

“Eis o que meu marido jamais suportará. Ele foi obrigado a tomar essa decisão? Pois bem, ao menos estarás em Verrières e te verei de vez em quando. Meus filhos, que te amam tanto, irão te ver. Santo Deus! Sinto que amo mais meus filhos porque eles te amam. Que remorso! Como irá acabar tudo isso?... Enlouqueço... Enfim, compreendes tua conduta; sê gentil, educado, sem desprezar essas criaturas grosseiras, é o que te peço de joelhos: elas serão os árbitros de nosso destino. Não duvides por um instante que meu marido se conformará, em relação a ti, com o que lhe prescrever a opinião pública. 

“É tu que me fornecerás a carta anônima; arma-te de paciência e de uma tesoura. Recorta num livro as palavras que vais ler; cola-as a seguir na folha de papel azulado que te envio e que vem da casa do sr. Valenod. Faz uma pesquisa em teu quarto; queima as páginas do livro que tiveres mutilado. Se não encontrares as palavras prontas, forma-as letra por letra, com paciência. Para poupar teu trabalho, faço a carta anônima muito curta. Ai! Se não me amas mais, como receio, quão longa te há de parecer a minha!” 


CARTA ANÔNIMA 

“SENHORA, 

“Todas as suas pequenas manobras são conhecidas; mas as pessoas que têm interesse em reprimi-las estão atentas. Por um resto de amizade pela senhora, exorto-a a afastar-se totalmente do camponesinho. Se for bastante sensata para isso, seu marido acreditará que a advertência que recebeu o engana, e deixaremos que permaneça nesse erro. Pense que conheço seu segredo; trema, infeliz; agora é preciso marchar direito diante de mim.” “Assim que tiveres terminado de colar as palavras que compõem essa carta (reconheceste nela a maneira de falar do diretor?), sai de casa, irei te encontrar.” 

“Irei à aldeia e voltarei com o rosto perturbado, como de fato estarei, e muito. Santo Deus! o que estou arriscando, e tudo porque julgaste adivinhar uma carta anônima! Enfim, com um rosto perturbado, darei a meu marido essa carta que um desconhecido terá me entregue. Quanto a ti, sai a passear pelo caminho dos grandes bosques com as crianças e só retorna na hora do jantar. 

“Do alto dos rochedos poderás ver a torre do pombal. Se tudo correr bem, colocarei lá um lenço branco; caso contrário, não haverá nada. 

“Teu coração, ingrato, não achará um meio de dizer que me amas antes de partires para esse passeio? Não importa o que aconteça, fica certo de uma coisa: não sobreviverei nem um dia à nossa separação definitiva. Ah! mãe desnaturada! São duas palavras inúteis que acabo de escrever, caro Julien. Não as sinto, só consigo pensar em ti neste momento, as escrevi apenas para não ser censurada por ti. Agora que me vejo na iminência de perder-te, para quê dissimular? Sim, que minha alma te pareça atroz, mas que eu não minta diante do homem que adoro! Já enganei demais em minha vida. Vai, perdoo-te se não me amas mais. Não tenho tempo de reler minha carta. Para mim é pouco ter de pagar com a vida os dias felizes que passei em teus braços. Sabes que eles me custarão ainda mais.”



_____________________




ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


_______________________




Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



_______________________

Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)


Nenhum comentário:

Postar um comentário