quarta-feira, 29 de maio de 2019

O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 7
as revoluções brasileiras



§ 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos





A Abolição teve de ser feita revolucionariamente: é uma rápida demonstração a deixar, demonstração fácil, e que servirá, também, para verificar, na política do Império para com a escravidão, todos os lineamentos em regressões aviltantes, da sua política geral. É um aspecto em que se tem a medida de tudo. Veremos, num paralelismo infame, como, à medida que o Brasil glorioso de 1824-31 decai para as apostasias que dão na frouxidão insincera e dissolvente de 1860, degrada-se a moral governamental, para vir, do programa abolicionista dos revolucionários de 6 de março de 1817, dos projetos generosos de José Bonifácio e das realizações nítidas de Feijó, a essa política torpe e inumana, que só extingue o tráfico quando o inglês o impõe com vilipêndio da soberania nacional, e só atende à questão da emancipação para desmentir o paraguaio que, em propaganda de defesa, apresenta o Império brasileiro como o país da escravidão, sendo preciso, ainda, a intervenção dos abolicionistas franceses, perante quem o imperante quer ostentar filantropia. Já infamado o Brasil no negreirismo de 1838-50, mais o aviltam quando armam uma legislação de ilusória libertação (28 de setembro de 1871), para marcar, definitivamente, escravos, centenas de milhares de brasileiros, homens livres, assim como africanos importados, depois de legalmente suspensa a importação de escravos. E tudo isto se fez contra as tradições patentes da nacionalidade brasileira. 

De todos que estudaram o Brasil colonial, e podiam julgar desse caso, nenhum o conheceu melhor do que Southey, que, ao definir as possibilidades desta pátria para prever-lhe os destinos, predisse a pronta escravidão do tráfico, e, a seguir-se-lhe, a abolição do trabalho escravo. Foi a conclusão que se lhe impôs, ao constatar a relativa bondade dos brasileiros senhores de escravos. Isto ele o proclamou, mostrando-nos muito mais humanos do que os seus patrícios. E razão lhe foi dada, seis anos depois, pelos revolucionários de 6 de março de 1817, que, ao sentirem a responsabilidade da organização de um Brasil independente, inscreveram entre as necessidades essenciais da nação a constituir-se, a extinção da escravidão. É um cancro social, disseram eles, logo no seu manifesto de governo. Nem podia ser de outra forma, dadas as qualidades gênitas do ânimo brasileiro. De inteligência pronta no apreender, compassivos e abertos cordialmente aos ideais de justiça, os revolucionários pernambucanos adotaram explicitamente os princípios de humanidade proclamados desde os meados do século XVIII. (1) A escola maçônica, onde eles se inspiravam, era a mesma de Bolívar, que formulava: “O ouro e a escravidão são dois elementos inimigos de todo o regime de justiça e de liberdade”. Noutras palavras, é o conceito de nosso José Bonifácio, quanto à necessidade de fazer a emancipação dos escravos, a fim de chegar à condição de povo livre. Antes, já o brasileiro Maciel da Costa, futuro Queluz, havia escrito uma memória sobre a extinção da escravidão. Passou o caso sem maiores referências, mas o esforço de José Bonifácio, na situação de responsabilidade em que ele estava, tem significação absoluta. É fato a notar: os dois maiores estadistas brasileiros, no período de formação mesma da nação, adversários e antagonistas de sempre, e em tudo, sem nenhum contrato político em toda a vida de ambos; esses dois homens, porque são realmente estadistas e brasileiros, estão de acordo nas ideias de emancipação dos cativos. 


(1) Ab. George Bryanm, vice-presidente da Pensilvânia, há mais de dois séculos, chamava a escravidão opróbrio da América.


Ministro, chefe do gabinete, José Bonifácio tratou de dar realidade ao convênio de 1817, que extinguiu o tráfico ao norte do Equador; ministro, ainda, e deputado, fez públicas as suas ideias a respeito da emancipação, e começou a formular o projeto em que as incorporava. É a esse propósito que ele assinala Portugal como a nação que mais crimes tem cometido contra a humanidade. A dissolução da Constituinte não lhe permitiu apresentar o seu projeto, mas era tal, e tão sincero o seu empenho que, em 1825, lá no exílio onde estava, publicou uma representação – A memória sobre o assunto, e que é o transunto do mesmo trabalho. No projeto de constituição elaborado pela Constituinte, que ele inspirava, está à disposição: “Artigo 254. - A Assembleia (o Parlamento) terá particular cuidado de criar estabelecimentos para a catequese e civilização dos índios, emancipação lenta dos negros e sua educação religiosa e industrial.” A Constituição de 1824, o tal monumento de liberalismo, teve o cuidado de omitir essa disposição. Justificando a sua representação, o velho Andrada é de generosa fraqueza: “Comecemos, pois, desde já, esta grande obra (a emancipação) pela expiação de nossos crimes e pecados velhos...” De fato, deveríamos, hoje, em vista do passado, ajoelhar perante as vítimas, para os fins do necessário perdão, e redimir, a preço de desinteresse e de beleza moral, as torpezas desses que fizeram o Brasil sobre as dores e o cativeiro de duas raças. E há dignidade em reconhecer que, ainda hoje, sofremos as consequências de termos sido a última nação do Ocidente a eliminar a escravidão. Tal não se daria, se a vida do Brasil houvesse prosseguido nos destinos que se lhe anunciavam. Mas houve que o próprio José Bonifácio teve de ser eliminado; contudo, se ele não pôde apresentar o seu projeto de emancipação, chegou a submeter à apreciação da Assembleia Constituinte um regulamento de civilização dos índios, onde mostra que, praticado o regime proposto “... com o andar do tempo, isto tornará inútil os escravos.” 

Note-se: essas ideias abolicionistas não eram exclusivas do velho Andrada. Elas formavam, pode-se dizer, a ambiência política daqueles dias. Já vimos que Maciel da Costa precedeu o próprio José Bonifácio. Voltou atrás... e isto ajuda-nos a compreender como o Brasil emancipador, de 1822-37, pôde chegar à infâmia negreira de 1850. Queluz é um padrão, mas não se extingue com ele o ânimo de justiça, dos brasileiros para com os escravos. Em 1826, um oficial superior do Exército, o brasileiro Eloy Pessoa, fez público um conjunto de medidas para a extinção gradual da escravidão. Nessa mesma data, começa um outro aspecto da política do Império a esse respeito: é a história que deriva da convenção firmada, então, com o governo britânico para a extinção do tráfico. Havia, contratada pelo governo de D. João VI, a convenção de 1816, onde se proibia captar negros ao norte do Equador, criando-se, ao mesmo tempo, comissões mistas para verificar a legitimidade de procedência dos africanos importados no Brasil depois da convenção. Foi um ajuste tratado em ânimo de aparente justiça, mas não passou um ano, que o governo do Rio de Janeiro arranjasse nova convenção, a pretexto de regular o tráfico permitido na de 1816, e, com isto, achou meio de produzir novo tratado: direito de marcarem-se os escravos com carimbo de prata, e de transportarem-se nos navios tantos negros quanto o quisessem os traficantes, em atenção à tonelagem da embarcação. Este passo diz bem o que será a futura política do Império. A convenção de 1826 proibindo todo tráfico de negros africanos nas costas do Brasil, a começar três anos depois, foi arrancada ao governo de Pedro I pelo gabinete de Londres, nos ajustes do reconhecimento. Era ministro de estrangeiros, no tratá-la, o mesmo Maciel da Costa, já avolumado em Marquês de Queluz, e este, ao enviar à Assembleia o referido tratado, em vez de assinalar nele qualquer mérito, diz, com todas as letras – que o imperador resistira em assinar tal convenção, e só o fez porque o governo britânico não lhe deixou possibilidade de recusa. Desapareceu, assim, no marquês, o antigo abolicionista. Em compensação, a Assembleia, cuja grande maioria era de irredutíveis adversários de Pedro I, ao discutir o tratado, manifestou-se desassombradamente contra a escravidão, em ideias e sentimentos só comparáveis aos dos grandes abolicionistas de 1888... Um Cunha Matos, com voto separado contra o tratado, diz, no entanto, que reconhece no tráfico coisa condenável... O futuro conservador e escravocrata Bernardo de Vasconcelos, como estava a explorar a corrente de ideias da época, dando a essas ideias a força do seu talento, produzia admiráveis discursos, fulminando, não só o tráfico, mas a própria instituição da escravidão. Até José Clemente, alteando-se em patriotismo, condenou o tráfico e o trabalho escravo, como nocivos aos legítimos interesses do Brasil. Foi nessa ocasião que Ferreira França, ao ouvir do luso-brasileiro que o escravo era uma propriedade, não se pôde conter, e veio à tribuna protestar: “A proposição mais horrível que ouvi foi de que os escravos eram nossa propriedade: é horrível!...” Meses depois, o mesmo José Clemente apresenta um projeto mandando que se vendessem os escravos pertencentes ao Estado do Brasil; Ferreira França replicou-lhe com uma indicação para que, em vez de vendidos, fossem tais escravos libertados... Era expressão de aspirações normais na época. E é por isso que, apesar da oposição ao governo imperial, a maioria da Assembleia aprovou-lhe o tratado de 1826, extinguindo o tráfico. Outros grandes políticos manifestaram-se francamente emancipadores, como Lino Coutinho, José Custodio, Paulo e Souza, Paula Cavalcanti, Holanda Cavalcanti... 

Estabelecendo o prazo de três anos, para suspensão do tráfico, a convenção de 1826, criava, para realidade da disposição, penalidades pesadas sobre os negreiros recalcitrantes, assim como a obrigação de, a sua custa, fazerem a repatriação dos africanos transportados para aqui depois do citado prazo, que findava a 3 de março de 1830. Ora, o primeiro Império viveu ainda um ano, e nada, absolutamente nada, ele fez, no sentido de impedir que continuasse o hediondo comércio. Pelo contrário então, entrou ele em incremento. Veio a Regência, para aquela vida agitada que teve; no entanto, sob a direção política de Feijó, ministro leader, a Assembleia votou a lei de 7 de novembro de 1831, tão completa nas providências contra o tráfico infame que Tavares Bastos pôde dizer: “A lei de 1831 acabaria com o tráfico, se a houvessem executado com o zelo e a inteligência necessários”. Por isso mesmo, a lei de Euzébio de Queiroz, de 1850, foi quase a reprodução daquela. Antes mesmo da lei de 7 de novembro, o Ministro Souza França, baseado na convenção de 1826, fez processar, em maio de 1831, diversos negreiros. Ao mesmo tempo, acentua-se a ação antiescravocrata de Feijó. Ministro, exigiu imediatamente uma lista de todos os africanos declarados livres pela comissão mista. Logo depois, a 22 de julho de 1831, voltou ao assunto num aviso, para que “se dê regularidade a este negócio que tanto interessa à humanidade, levando-se ao conhecimento do governo a efetividade da responsabilidade dos que tão escandalosamente abusaram da parte que sobre tal objeto lhes fosse confiada”. A 17 de janeiro de 1832, baixou outro aviso, para que os juízes de paz procedessem a corpo de delito e sumário de culpa, sempre que escravos sofressem dos seus senhores castigos imoderados... Em abril do mesmo ano, publicou o decreto regulamentando a lei de 7 de novembro, de modo a torná-la praticamente eficaz. Há, nesse regulamento, disposições assim: “Não serão os donos de barcos admitidos a justificar a morte de pretos senão pela inspeção do cadáver pela autoridade que lhe tomou os sinais... Havendo presunções veementes de ser um preto livre, será ele depositado...” Num longo e bem argumentado relatório à Assembleia Geral, ainda em 1832, ele mostra os repetidos crimes dos negreiros, e lembra diferentes medidas com que se garantissem os direitos dos africanos. Em maio seguinte, tomou sérias providências contra contrabandos no porto do Rio de Janeiro (bergantim Lobo), e em Bertioga, (2) Deputado à assembleia da sua província, Feijó apresenta um projeto de lei tendente a proteger os escravos, suavizando-lhes a vida, facilitando-lhes a libertação. No tempo, compararam o seu projeto ao famoso código colonial francês regulando liberalmente o direito dos pretos. Candidato a regente, o grande paulista fez o seu testamento, onde libertou, a curto prazo, todos os seus escravos e, ao mesmo tempo, determinava que os filhos das suas escravas, nascidos depois da libertação delas, eram imediatamente livres. Regente, ele marcou a sua curta passagem pela suprema magistratura com uma série de providências em que se patenteia o sentimento de um antiescravocrata. Logo a 7 de março de 1836, faz baixar um aviso, criando um cofre onde se recolhessem as quantias provenientes da arrematação dos serviços de africanos livres, isto é, entrados depois de 30 de março de 1830, e, ao mesmo tempo, com todo o desassombro de voz, ele denuncia os repetidos crimes contra esses africanos importados de contrabando; em setembro do mesmo ano, ordena que as autoridades sejam avisadas da morte dos arrematantes, a fim de serem garantidos os direitos dos presos arrematados. Ora, essa arrematação, instituída na convenção, era uma forma aproveitada para converter o pobre africano em escravo, e Feijó, em desenvolvimento das outras providências, fez tão difíceis as condições de arrematação que tornava preferível o reembarque para restituí-los à pátria, de onde tinham sido tirados. E fechou o ano de 1836 com este aviso: “Constando ao governo imperial que em uma casa da Rua do Conde nº 4, fora... atrozmente espancado por seu senhor um escravo... o regente... ordena que V. passando imediatamente à dita casa, proceda a corpo de delito e às competentes informações... a fim de que se possam dar as devidas providências, como requerem a justiça e a humanidade.” Antes, já Feijó, regente, havia incumbido ao Marquês de Barbacena de, em Londres e em Lisboa ajustar, com os respectivos governos, medidas capazes de dar fim ao hediondo tráfico de negros africanos. (3) Em 1837, ainda como regente, pediu à Assembleia, cuja maioria lhe era hostil, uma lei de colonização, para tornar desnecessária a escravidão, cuja extinção muito servirá à moral e à fortuna do cidadão... São as suas próprias palavras. Meses depois, o grande estadista volta ao assunto, perante a Assembleia, insistindo para que lhe deem os meios de colonização, que substituam o trabalho escravo e tiraria os pretextos para a importação dos africanos de contrabando – “tráfico que a política condena e a humanidade detesta...”


(2) Do relatório do Ministro Feijó, em 1832: “O vergonhoso e infame tráfico dos pretos continua por toda parte. Sem efeito têm sido até hoje todas as recomendações. Quando as mesmas autoridades são interessadas no crime, inevitável é o cometê-lo: contudo o governo acaba de dar um regulamento para execução da carta de lei de 7 de novembro do ano passado, talvez que dele resultem os bens que a referida lei pretendeu mover.”


(3) As instruções a Barbacena diziam:.,. “Considerando... que o dito projeto (de 1831) é insuficiente, e que o meio pronto e decisivo para extirpar-se o tráfico de carne humana é estabelecer-se, o mais vigilante cruzeiro de navios de guerra... considerando mais que nem Portugal, nem o Império tem Marinha necessária para conseguir-se tão útil resultado... recomenda que V. Ex. se dirija fazendo-lhe sentir que o governo imperial está convencido de que a única providência capaz contra os contrabandistas de escravos é que o governo inglês venha, com o de Portugal e do Brasil, ser parte contratante de




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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