quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Stanislaw PP - FeBeAPá: O antológico Lalau

O Festival de Besteira

O Maior Festival de Besteira que já Assolou e voltou Assolar o País


II Parte



O antológico Lalau




Lá vinha eu ladeira abaixo, comendo minhas goiabinhas, quando cruzei com a figurinha entusiástica de Bonifácio Ponte Preta (o Patriota). Mesmo subindo a ladeira ele conseguia marchar, enquanto assoviava baixinho o Hino dos Dragões da Independência. 

— Olá! — exclamei eu, com as goiabinhas na mão. 

Ele parou, reconheceu-me e, após uma reverência, um tanto ou quanto germânica, lascou: 

— Como vai o caro patrício? 

Respondi que ia mais ou menos, enganando pela meia cancha, me defendendo como podia e atacando quando oportuno. Enfim, nem lá nem cá. Vivendo sem maiores sucessos. 

— O caro patrício engana-se — interrompeu-me ele. — Saiba que está de parabéns. É um orgulho para a nossa família ter escritor antológico em seu seio — abraçou-me em postura militar e, vendo as goiabinhas na minha mão, regozijou-se: — Oh… goiabas! Fruta brasileira. Adoro-as — apanhou um punhado delas e seguiu ladeira acima, comendo tudo, o miserável. 

Voltei para casa intrigado. Que história era essa de antológico? Será que o Bonifácio estava me gozando? A resposta obtive logo depois, quando a fogosa mucama veio trazer a correspondência do dia. Entre os avisos de banco e outras cobranças envelopadas, um volume se destacava. Rasguei o papel e dei com um livro: Rio de toda gente: Antologia para o ensino médio de português — Helena Godói Britto, M. Cavalcanti Proença, Maria da Glória Sousa Pinto. Abro o volume e lá está a dedicatória do ilustre polígrafo: “Ao Stanislaw, que honra esta coletânea nas págs. 23 e 100, muito cordialmente o seu admirador — Cavalcanti Proença”. 

Puxa! Então era isto? Aqui o filho de d. Dulce tinha se tornado antológico num livro pedagógico? O que é a natureza, hem? Sinceramente, eu não merecia tantas lantejoulas. 

Começo a folhear a obra e dou com escritos meus: uma “História do Rio de Janeiro” que escrevi há algum tempo. Lá está o primeiro parágrafo: “A coisa começou no século XVI, pouco depois que Pedro Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou a confusão, isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia Rio de Janeiro”. 

Abaixo, o questionário para os estudantes: “CCOISA apresenta significado ‘preciso’, ‘pejorativo’ ou ‘irônico’?”. 

E segue o texto:

Depois de 1512, rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da barra, descobriram uma baía muito bonita e, distraídos que estavam, não perceberam que era baía. Pensaram que era um rio e, como fosse janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro. Eis portanto, que o Rio já começou errado.

Procuro o questionário: “‘Esquiando fora da barra’ é um anacronismo. Por quê? Que quer dizer anacronismo? E sincronismo?”. 

Nessa altura começou a minha aflição. Que qui é mesmo anacronismo? Se eu cometi um anacronismo, tinha obrigação de saber na ponta da língua que diabo é anacronismo. Será o ponto de semelhança entre coisas diferentes? Não, não… isto é analogia. Ah… deixa pra lá. Sobre o parágrafo transcrito há outra pergunta: “‘Como fosse janeiro’ é uma construção sintática de uso clássico. Qual seria a forma mais corrente na atualidade?”. 

E assim segue o texto, acompanhado do questionário. Num certo trecho eu explico que os portugueses, de saída, não deram muita bola para o Rio de Janeiro e logo o questionário cobra a multa, querendo saber: “‘Não deram muita bola’. A expressão metafórica provém do jogo de futebol e significa não dar atenção. Explique como se compreende a translação do sentido”. 

Coitados dos menininhos que estiverem estudando meu texto. Eu, que escrevi, estou aqui meio sobre o embasbacado com essa tal de translação do sentido, imaginem as crianças do ensino médio! 

De repente, a minha aflição aumenta assustadoramente. Lembro-me que, no tempo de estudante, eu e toda a minha turma odiávamos Camões por causa das análises dos Lusíadas a que nos obrigava o professor de português. Puxa vida… com a minha promoção a antológico, breve vai ter garoto aí me achando o maior chato do ano letivo. 

Preciso abrir os olhos. Camões não o fez porque só tinha um olho, mas eu estou com os dois em dia. É necessário abri-los.



_______________________

Leia também:

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (1)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (2)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (3)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (4)

Stanislaw PP - FeBeAPá: O puxa-saquismo desvairado

Stanislaw PP - FeBeAPá: Meio a meio

Stanislaw PP - FeBeAPá: O informe secreto

Stanislaw PP - FeBeAPá: Nas tuberosidades isquiáticas

Stanislaw PP - FeBeAPá: A conspiração

Stanislaw PP - FeBeAPá: Desrespeito à região glútea

Stanislaw PP - FeBeAPá: Garotinho corrupto

Stanislaw PP - FeBeAPá: Por trás do biombo

Stanislaw PP - FeBeAPá: Depósito bancário

Stanislaw PP - FeBeAPá: “O general taí”

Stanislaw PP - FeBeAPá: O paquera

_______________________


* Roberto Campos (1917-2001), ministro do Planejamento do governo Castello Branco. 
** Guilherme Borghoff, secretário de Economia do governo Carlos Lacerda.

______________________


SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.


Nenhum comentário:

Postar um comentário