quarta-feira, 1 de abril de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)

Diante da Dor dos Outros





para David







… aux vaincus!

Baudelaire



A sórdida mentora, a Experiência...

Tennyson







1.


Em junho de 1938, Virginia Woolf publicou Três guinéus, suas corajosas e mal recebidas reflexões sobre as raízes da guerra. Escrito no decorrer dos dois anos precedentes, enquanto ela e a maioria de seus amigos íntimos e de seus colegas escritores tinham as atenções voltadas para o avanço da insurreição fascista na Espanha, o livro foi concebido como uma resposta muito tardia a uma carta de um eminente advogado de Londres que perguntara: “Na sua opinião, como podemos evitar a guerra?”. Woolf começa por observar, com mordacidade, que entre eles dois talvez não seja possível um diálogo autêntico. Pois, embora pertençam à mesma classe, “a classe instruída”, um vasto abismo os separa: o advogado é homem e ela é mulher. Homens fazem a guerra. Homens (em sua maioria) gostam de guerra, pois para eles existe “uma glória, uma necessidade, uma satisfação em lutar” que as mulheres (em sua maioria) não sentem ou não desfrutam. O que uma mulher instruída — leia-se: rica, privilegiada — como ela sabe sobre guerra? Pode sua repulsa ao fascínio da guerra ser como a dele?

Ponhamos à prova essa “dificuldade de comunicação”, sugere Woolf, observando, juntos, imagens de guerra. As imagens são algumas das fotos que o governo sitiado da Espanha divulgava duas vezes por semana; ela anota, ao pé da página: “Escrito no inverno de 1936-37”. Vejamos, escreve Woolf, “se quando olhamos as mesmas fotos sentimos as mesmas coisas”. E continua:



A seleção desta manhã contém a foto do que talvez seja o corpo de um homem, ou de uma mulher; está tão mutilado que, pensando bem, poderia ser o cadáver de um porco. Mas ali adiante estão, seguramente, crianças mortas e também, sem dúvida, o pedaço de uma casa. Uma bomba arrombou a parte lateral; há ainda uma gaiola de passarinho pendurada no que, pode-se presumir, foi a sala de estar...


A maneira mais rápida e mais seca de transmitir a comoção interior provocada por aquelas fotos consiste em fazer notar que nem sempre é possível decifrar o objeto focalizado, tamanha é a devastação da carne e da pedra que elas retratam. E daí Woolf parte ligeiro para a sua conclusão. Temos, de fato, as mesmas reações, “por mais que sejam diferentes a educação e as tradições que nos formaram”, diz ela ao advogado. Sua prova: “nós” — aqui, “nós” são as mulheres — e vocês podemos perfeitamente reagir com as mesmas palavras.


O senhor as chama de “horror e repugnância”. Nós também as chamamos de horror e repugnância [...]. A guerra, diz o senhor, é uma abominação; uma barbaridade; é preciso pôr fim à guerra, a qualquer preço. E nós fazemos eco a suas palavras. A guerra é uma abominação; uma barbaridade; é preciso pôr fim à guerra.


Quem, hoje, acredita que a guerra pode ser abolida? Ninguém, nem os pacifistas. Esperamos apenas (até agora, em vão) deter o genocídio e fazer justiça àqueles que perpetraram graves violações das leis de guerra (pois existem leis de guerra, a que os combatentes deveriam obedecer), e sermos capazes de pôr fim a guerras específicas impondo alternativas negociadas ao conflito armado. Pode ser difícil dar crédito à desesperada firmeza de propósitos gerada pelo choque subseqüente à Primeira Guerra Mundial, quando sobreveio a compreensão da ruína que a Europa trouxera a si mesma. Condenar a guerra como tal não parecia tão fútil ou irrelevante logo após as fantasias contratuais do Pacto Kellogg-Briand de 1928, no qual quinze nações de destaque, entre elas Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e Japão, renunciaram solenemente à guerra como instrumento de política nacional; até Freud e Einstein foram atraídos ao debate por meio de uma troca pública de cartas, em 1932, intitulada “Por que guerra?”. O livro Três guinéus, de Woolf, que veio a público próximo ao desfecho de quase duas décadas de retumbantes denúncias contra a guerra, apresentava a originalidade (que o fez ser o mais mal recebido de todos os livros da escritora) de focalizar aquilo que era visto como demasiado óbvio ou impertinente para ser mencionado, e muito menos para ser objeto de longas ponderações: o fato de que a guerra é um jogo de homens — que a máquina de matar tem um gênero, e ele é masculino. No entanto, a ousadia da versão de “Por que guerra?” criada por Woolf não torna seu repúdio à guerra menos convencional na sua retórica, nos seus sumários de culpa, em que abundam expressões repetidas. E as fotos das vítimas de guerra são, elas mesmas, uma modalidade de retórica. Elas reiteram. Simplificam. Agitam. Criam a ilusão de consenso.

Ao invocar essa hipotética experiência compartilhada (“nós estamos vendo, com o senhor, os mesmos cadáveres, as mesmas casas destruídas”), Woolf professa a crença de que o impacto de imagens como aquelas deve necessariamente unir pessoas de boa vontade. Será? A bem da verdade, Woolf e o destinatário anônimo dessa carta em forma de livro não são duas pessoas quaisquer. Embora separadas pelas imemoriais afinidades de sentimentos e de costumes de seus respectivos sexos, como Woolf o fez lembrar, o advogado está longe de ser um exemplo-padrão do macho belicoso. Suas opiniões contrárias à guerra não são menos convictas do que as dela. Afinal, sua pergunta não foi: Quais são os seus pensamentos sobre as maneiras de evitar a guerra? Mas sim: Na sua opinião, como nós podemos evitar a guerra?

É esse “nós” que Woolf contesta no início do seu livro: ela se recusa a permitir que seu interlocutor tome um “nós” como algo fora de dúvida. Mas, depois das páginas dedicadas ao argumento feminista, ela se precipita no interior desse “nós”. 


Nenhum “nós” deveria ser aceito como algo fora de dúvida, quando se trata de olhar a dor dos outros.

Quem é o “nós” que constitui o alvo dessas fotos de choque? Esse “nós” incluiria não somente os simpatizantes de uma minúscula nação ou de um povo sem Estado e em luta pela vida, mas também — uma clientela bem mais ampla — aquelas pessoas apenas nominalmente preocupadas com alguma guerra torpe travada em outro país. As fotos são meios de tornar “real” (ou “mais real”) assuntos que as pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar.

“Portanto, aqui sobre a mesa, à nossa frente, estão fotos”, escreve Woolf acerca da experiência mental que propõe ao leitor, bem como ao espectral advogado, homem tão eminente, como ela menciona, que emprega as letras K. C. (King’s Counsel ou Advogado do Rei) após o nome — e que pode ser ou não uma pessoa real. Imaginemos, portanto, um conjunto de fotos avulsas retiradas de um envelope que chegou no correio daquela manhã. Elas mostram corpos lacerados de adultos e crianças. Mostram como a guerra despovoa, despedaça, separa, arrasa o mundo construído. “Uma bomba arrombou a parte lateral”, escreve Woolf, a respeito da casa de uma das fotos. Sem dúvida, a paisagem de uma cidade não é feita de carne. Porém prédios destroçados são quase tão eloquentes como cadáveres na rua. (Cabul, Sarajevo, Mostar oriental, Grosni, 6,5 hectares da baixa Manhattan depois do dia 11 de setembro de 2001, o campo de refugiados em Jenin...) Olhem, dizem as fotos, é assim. É isto o que a guerra faz. E mais isso, também isso a guerra faz. A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta.




continua...



________________________


"Imagens do sofrimento são apresentadas diariamente pelos meios de comunicação. Graças à televisão e ao computador, imagens de desgraça se tornaram uma espécie de lugar-comum. Mas como a representação da crueldade nos influencia? O que provocam em nós exatamente? Estamos insensibilizados pelo bombardeio de imagens?

Em “Ensaios sobre a fotografia”, publicado no Brasil no começo dos anos 1980, Susan Sontag abordou o tema em termos que definiram o debate pelas décadas seguintes. Aqui, em “Diante da dor dos outros”, faz uma nova e profunda reflexão sobre as relações entre notícia, arte e compreensão na representação dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe.

Discutindo os argumentos sobre como essas imagens podem inspirar discórdia, fomentar a violência ou criar apatia, a autora evoca a longa história da representação da dor dos outros – desde “As desgraças da guerra”, de Francisco de Goya (1746-1828), até fotos da Guerra Civil Americana, da Primeira Guerra Mundial, da Guerra Civil Espanhola, dos campos nazistas de extermínio durante a Segunda Guerra, além de imagens contemporâneas de Serra Leoa, Ruanda, Israel, Palestina e de Nova York no 11 de setembro de 2001.

Num texto preciso e provocador, Sontag levanta questões cruciais para a compreensão da vida contemporânea. De sua reflexão surge uma formulação surpreendente e desafiadora: a relevância dessas imagens depende, em última instância, da maneira com que nós, espectadores, as encaramos."

_________________________

Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)




"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."

Nenhum comentário:

Postar um comentário