terça-feira, 28 de abril de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)

Diante da Dor dos Outros





para David







… aux vaincus!
Baudelaire




A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson








1.


continuando...



Não sofrer com essas fotos, não sentir repugnância diante delas, não lutar para abolir o que causa esse morticínio, essa carnificina — para Woolf, essas seriam reações de um monstro moral. E, diz ela, não somos monstros, mas membros da classe instruída. Nosso fracasso é de imaginação, de empatia: não conseguimos reter na mente essa realidade. 

Mas será verdade que essas fotos, documentos antes da chacina de civis do que do confronto de exércitos, só poderiam estimular a repulsa à guerra? Sem dúvida poderiam também incentivar uma militância maior em favor da República. Não foi para isso que foram feitas? O acordo entre Woolf e o advogado parece inteiramente pressuposto e as fotos horrendas vêm confirmar uma opinião já compartilhada de antemão. Se a pergunta tivesse sido: Como podemos contribuir de forma mais eficaz para a defesa da República Espanhola contra as forças do fascismo clerical e militarista?, as fotos poderiam, ao contrário, ter reforçado a crença de ambos na justiça daquela luta.

As imagens que Woolf evocou não mostram, a rigor, o que a guerra, a guerra como tal, faz. Mostram um modo específico de promover a guerra, um modo naquela época rotineiramente classificado de “bárbaro”, no qual os civis são o alvo. O general Franco estava usando as mesmas táticas de bombardeio, massacre, tortura, assassinato e mutilação de prisioneiros que ele havia aprimorado na condição de comandante no Marrocos, na década de 1920. Nessa ocasião, de maneira mais aceitável para as potências dominantes, suas vítimas foram os súditos coloniais da Espanha, de cor mais escura e ainda por cima infiéis; agora suas vítimas eram seus compatriotas. Depreender das fotos, com faz Woolf, apenas aquilo que confirma uma aversão geral à guerra é esquivar-se de um engajamento com a Espanha como um país que tem história. É descartar a política.

Para Woolf, assim como para muitos polemistas antibelicistas, a guerra é genérica, e as imagens que ela descreve são de vítimas anônimas, genéricas. As fotos enviadas pelo governo de Madri parecem, o que é improvável, não ter sido legendadas. (Ou, talvez, Woolf simplesmente presuma que uma fotografia deva falar por si mesma.) Mas a argumentação contra a guerra não depende de informações sobre quem, quando e onde; o caráter arbitrário do morticínio implacável constitui prova suficiente. Para as pessoas seguras de que o certo está de um lado e a opressão e a injustiça estão do outro, e de que a luta precisa prosseguir, o que importa é exatamente quem é morto e por quem. Para um judeu israelense, uma foto de uma criança estraçalhada no atentado contra a pizzaria Sbarro no centro de Jerusalém é, antes de tudo, uma foto de uma criança judia morta por um militante suicida palestino. Para um palestino, uma foto de uma criança estraçalhada pelo tiro de um tanque em Gaza é, antes de tudo, uma foto de uma criança palestina morta pela máquina de guerra israelense. Para o militante, a identidade é tudo. E todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou deturpadas por suas legendas. Durante a luta entre sérvios e croatas no início das recentes guerras nos Bálcãs, as mesmas fotos de crianças mortas no bombardeio de um povoado foram distribuídas pelos serviços de propaganda dos sérvios e também dos croatas. Bastava mudar as legendas para poder utilizar e reutilizar a morte das crianças.

Imagens de civis mortos e de casas destroçadas podem servir para atiçar o ódio contra os inimigos, como fizeram as reprises de hora em hora da Al Jazeera, a rede de televisão via satélite sediada no Qatar, das imagens de destruição no campo de refugiados em Jenin, em abril de 2002. Por mais incendiárias que fossem aquelas tomadas para o numeroso público que assiste a essa estação de tevê em todo o mundo, nada revelavam sobre o exército israelense que esse público já não estivesse predisposto a crer. Em contraste, imagens que apresentam provas que contradizem devoções acalentadas são invariavelmente descartadas como encenações montadas para as câmeras. Ante a ratificação fotográfica das atrocidades cometidas pelo lado a que a pessoa pertence, a reação-padrão consiste em tomar as fotos como algo fabricado, pensar que tal atrocidade jamais ocorreu, que eram cadáveres que pessoas do outro lado trouxeram do necrotério em caminhões e espalharam pela rua, ou que, sim, de fato aconteceu, mas foi o outro lado que o cometeu, contra si mesmo. Assim, o diretor de propaganda em favor da revolta nacionalista de Franco afirmou que foram os bascos que destruíram Guernica, sua própria e antiga cidade, e ex-capital, em 26 de abril de 1937, pondo dinamite nos esgotos (numa versão posterior, lançando bombas fabricadas em território basco), com o intuito de despertar indignação no exterior e revigorar a resistência republicana. E assim, também, a maioria dos sérvios residentes na Sérvia ou no exterior sustentavam, até o fim do cerco sérvio a Sarajevo, e mesmo depois, que os próprios bósnios haviam perpetrado o tenebroso “massacre da fila do pão” em maio de 1992, e o “massacre do mercado” em fevereiro de 1994, despejando bombas de alto calibre no centro da sua capital ou instalando minas a fim de criar cenas especialmente horripilantes para as câmeras dos jornalistas estrangeiros e angariar mais apoio internacional para o lado bósnio.

Fotos de corpos mutilados podem certamente ser usadas, como faz Woolf, para dar ânimo à condenação da guerra e podem, durante algum tempo, transmitir de forma convincente uma parcela da sua realidade para aqueles que não têm nenhuma experiência de guerra. Todavia, quem admite que num mundo dividido, como se verifica hoje, a guerra pode tornar-se inevitável e até justa, pode retrucar que as fotos não oferecem provas, absolutamente nenhuma prova, em favor da renúncia à guerra — exceto para as pessoas em quem as idéias de bravura e de sacrifício foram esvaziadas de significação e de credibilidade. O caráter destrutivo da guerra — sem chegar à destruição total, que não é guerra, mas suicídio — não constitui em si mesmo um argumento contra guerrear, a menos que se pense (como pouca gente pensa, de fato) que a violência é sempre injustificável, que a força está sempre, em todas as circunstâncias, errada — errada porque, como afirma Simone Weil em seu soberbo ensaio sobre a guerra, intitulado “A Ilíada, ou o poema da força” (1940), a violência transforma em coisa toda pessoa sujeita a ela.* Não — retrucam aqueles que, em dada situação, não vêem alternativa à luta armada —, a violência pode elevar uma pessoa a ela submetida à condição de herói ou de mártir.

De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida moderna de ver — à distância, por meio da fotografia — a dor de outras pessoas. Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem. Quem pode esquecer as três fotos em cores de Tyler Hicks que The New York Times estampou na metade superior da primeira página da sua seção diária dedicada à nova guerra dos Estados Unidos, “Uma nação desafiada”, em 13 de novembro de 2001? O tríptico retratava o destino de um soldado talibã ferido, de uniforme, encontrado em uma vala por soldados da Aliança do Norte quando avançavam rumo a Cabul. Primeiro painel: o soldado é arrastado, de costas, por dois de seus captores — um agarra um braço; o outro, uma perna — ao longo de uma estrada pedregosa. Segundo painel (a câmera está muito perto): cercado, ele olha para cima aterrorizado enquanto é puxado para ficar de pé. Terceiro painel: no momento da morte, imóvel, de braços abertos e joelhos dobrados, nu e ensanguentado da cintura para baixo, executado pela turba de militares reunida a fim de trucidá-lo. É necessária uma vasta reserva de estoicismo para percorrer as notícias de um grande jornal a cada manhã, dada a probabilidade de ver fotos capazes de nos fazer chorar. E a compaixão e a repugnância que fotos como as de Hicks inspiram não nos devem desviar da pergunta acerca das fotos, das crueldades e das mortes que não estão sendo mostradas.


continua pag 38...



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"Imagens do sofrimento são apresentadas diariamente pelos meios de comunicação. Graças à televisão e ao computador, imagens de desgraça se tornaram uma espécie de lugar-comum. Mas como a representação da crueldade nos influencia? O que provocam em nós exatamente? Estamos insensibilizados pelo bombardeio de imagens?

Em “Ensaios sobre a fotografia”, publicado no Brasil no começo dos anos 1980, Susan Sontag abordou o tema em termos que definiram o debate pelas décadas seguintes. Aqui, em “Diante da dor dos outros”, faz uma nova e profunda reflexão sobre as relações entre notícia, arte e compreensão na representação dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe.

Discutindo os argumentos sobre como essas imagens podem inspirar discórdia, fomentar a violência ou criar apatia, a autora evoca a longa história da representação da dor dos outros – desde “As desgraças da guerra”, de Francisco de Goya (1746-1828), até fotos da Guerra Civil Americana, da Primeira Guerra Mundial, da Guerra Civil Espanhola, dos campos nazistas de extermínio durante a Segunda Guerra, além de imagens contemporâneas de Serra Leoa, Ruanda, Israel, Palestina e de Nova York no 11 de setembro de 2001.

Num texto preciso e provocador, Sontag levanta questões cruciais para a compreensão da vida contemporânea. De sua reflexão surge uma formulação surpreendente e desafiadora: a relevância dessas imagens depende, em última instância, da maneira com que nós, espectadores, as encaramos."

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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)



"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."





Susan Sontag, escritora e pensadora referência mundial, ganha biografia






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