quarta-feira, 13 de abril de 2022

Susan Sontag - O Mundo-Imagem (03)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



O MUNDO-IMAGEM (03)



A fotografia, que tem tantos usos narcisistas, é também um poderoso instrumento para despersonalizar nossa relação com o mundo; e os dois usos são complementares. Como um par de binóculos sem um lado certo e outro errado, a câmera torna próximas, íntimas, coisas exóticas; e coisas familiares, ela torna pequenas, abstratas, estranhas, muito distantes. Numa atividade fácil, formadora de um hábito, ela oferece tanto participação quanto alienação em nossa própria vida e na dos outros — permitindo-nos participar, ao mesmo tempo que confirmamos a alienação. Hoje, guerra e fotografia parecem inseparáveis, e desastres de avião e outros acidentes medonhos sempre atraem pessoas com câmeras. Uma sociedade que torna normativo aspirar a nunca ter experiências de fracasso, privação, desgraça, dor, doenças terríveis, e em que a própria morte é vista não como natural e inevitável mas como uma calamidade cruel e imerecida, cria uma tremenda curiosidade em torno desses fatos — curiosidade que é, em parte, satisfeita por meio da atividade de tirar fotos. A sensação de estar isento de calamidades estimula o interesse em olhar fotos dolorosas, e olhar para elas sugere e reforça o sentimento de estar a salvo. Em parte isso ocorre porque a pessoa está “aqui” e não “lá”, e em parte devido ao caráter de inevitabilidade que todos os fatos adquirem quando transmutados em imagens. No mundo real, algo está acontecendo e ninguém sabe o que vai acontecer. No mundo-imagem, aquilo aconteceu e sempre acontecerá daquela maneira.

Ao saber muito do que se passa no mundo (arte, catástrofe, belezas da natureza) por meio de imagens fotográficas, as pessoas não raro se frustram, se surpreendem, se sentem indiferentes quando veem a coisa real. Pois imagens fotográficas tendem a subtrair o sentimento de algo que experimentamos em primeira mão, e os sentimentos que elas despertam, em larga medida, não são os mesmos que temos na vida real. Muitas vezes algo nos perturba mais em forma de fotografia do que quando o experimentamos de fato. Num hospital em Xangai em 1973, ao ver um operário industrial com ulcerações em estágio avançado ter nove décimos do estômago retirados sob o efeito de anestesia por acupuntura, consegui acompanhar a operação de três horas (a primeira operação que testemunhei em minha vida) sem sentir náuseas nem a necessidade, sequer por uma vez, de desviar os olhos. Num cinema de Paris, um ano depois, a cirurgia menos sanguinolenta mostrada no documentário de Antonioni sobre a China intitulado Chuang Kuo fez que eu me encolhesse toda ao primeiro corte do bisturi e desviasse os olhos várias vezes durante a sequência. Somos vulneráveis a fatos perturbadores em forma de imagens fotográficas de um modo que não ocorre diante da realidade. Essa vulnerabilidade faz parte da passividade distintiva de alguém que é duplamente espectador, espectador de fatos já elaborados, primeiro pelos participantes e depois pelo criador da imagem. Para a operação real, tive de ser limpada e escovada, vestir uma bata de cirurgia e depois ficar ao lado dos atarefados cirurgiões e enfermeiras, com meus papéis para desempenhar: adulto inibido, visitante cortês, testemunha respeitosa. A cirurgia no cinema exclui não só essa participação modesta como tudo o que pode haver de ativo em presenciar. Na sala de operações, sou eu que mudo de foco, faço os closes e os planos médios. No cinema, Antonioni já escolheu de antemão que partes da cirurgia eu posso ver; a câmera olha por mim — e me obriga a olhar, deixando a mim, como única opção, não olhar. Além disso, o filme condensa em minutos algo que leva horas para acontecer, deixando apenas partes interessantes, apresentadas de um modo interessante, ou seja, com o intuito de provocar ou de chocar. O dramático é dramatizado, pela didática da composição e da montagem. Viramos a página numa revista de fotos, uma nova sequência tem início num filme, e cria-se um contraste mais contundente do que o contraste entre fatos sucessivos em tempo real.

Nada poderia ser mais instrutivo sobre o significado da fotografia para nós — como, entre outras coisas, um método de dar realce ao real — do que as críticas contra o filme de Antonioni publicadas na imprensa chinesa no início de 1974. Elas fornecem um catálogo negativo de todos os expedientes da fotografia moderna, em fotos ou no cinema. [1] Enquanto, para nós, a fotografia está intimamente ligada a maneiras descontínuas de ver (a questão é precisamente ver o todo por meio de uma parte — um detalhe impressionante, um tipo surpreendente de corte), na China, está ligada apenas à continuidade. Não só existem temas adequados para a câmera, os temas positivos, inspiradores (atividades exemplares, gente risonha, tempo radioso) e ordeiros, como também há maneiras adequadas de fotografar, derivadas de ideias a respeito da ordem moral do espaço que excluem a própria ideia da visão fotográfica. Assim, Antonioni foi recriminado por fotografar coisas velhas, ou ultrapassadas — “ele procurou e escolheu paredes degradadas e jornais de mural há muito fora de uso”; sem prestar “nenhuma atenção a tratores grandes e pequenos que operavam nos campos, [ele] escolheu apenas um burro que puxava um rolo de pedra” — e por mostrar momentos indecorosos — “de forma repugnante, filmou pessoas que assoam o nariz e vão defecar” — e movimento indisciplinado — “em vez de focalizar alunos em sala de aula em nossas escolas primárias de fábrica, filmou crianças correndo para fora da sala após a aula”. E foi acusado de denegrir os temas corretos em razão de seu modo de fotografá-los: usando “cores sombrias e tristes” e ocultando pessoas em “sombras escuras”; tratando o mesmo tema em uma variedade de tomadas — “há por vezes tomadas longas, por vezes closes, por vezes tomadas frontais, outras vezes tomadas de trás” — ou seja, por não mostrar as coisas do ponto de vista de um observador único e numa posição ideal; por usar ângulos de cima ou de baixo — “a câmera, diante dessa esplêndida ponte moderna, estava propositalmente posicionada em ângulos muito ruins a fim de mostrá-la torta e claudicante”; e por não fazer tomadas suficientemente detalhadas — “ele espremeu os miolos para inventar closes numa tentativa de distorcer a imagem do povo e enfear sua perspectiva espiritual”.


[1] Ver A vicious motive, despicable tricksA criticism of antonioni’s anti-China film “China” [Um motivo pérfido, truques baixos — Crítica ao filme antichinês de Antonioni “China”] (Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras, 1974), um folheto de dezoito páginas (anônimo) que reproduz um artigo publicado no jornal Renminh Ribao no dia 30 de janeiro de 1974; e “Em repúdio ao filme antichinês de Antonioni”, Peking Review, no 8 (22 de fevereiro de 1974), que fornece versões resumidas de três outros artigos publicados naquele mês. O intuito dos três artigos, está claro, não é formular uma opinião sobre a fotografia — seu interesse a esse respeito é involuntário —, mas sim construir um modelo de inimigo ideológico, como ocorreu em outras campanhas educacionais de massa postas em prática nesse período. Em vista desse intuito, para as dezenas de milhões de pessoas mobilizadas em comícios promovidos em escolas, fábricas, unidades militares e comunas em todo o país, era tão desnecessário ter visto de fato Chung Kuo para “Criticar o filme antichinês de Antonioni” como, para os participantes da campanha “Criticar Lin Piao e Confúcio”, em 1976, era desnecessário ter lido qualquer texto de Confúcio.


Além da iconografia fotográfica, produzida em massa, de líderes cultuados, de kitsch revolucionário e de tesouros culturais, veem-se com frequência na China fotos de um tipo privado. Muita gente possui fotos de pessoas queridas, pregadas à parede ou afixadas sob um vidro, colocadas sobre a escrivaninha ou sobre a cômoda. Grande parte dessas fotos é constituída de instantâneos do tipo que se tira aqui em festas de família e em viagens; mas nenhuma é uma foto espontânea, nem mesmo do tipo que o mais simplório fotógrafo de nossa sociedade acha normal — um bebê engatinhando, alguém no correr de um gesto. Fotos de esporte mostram a equipe em um grupo, ou apenas os momentos do jogo mais estilizados e dançados: em geral, o que as pessoas fazem com a câmera é reunir-se diante dela, em seguida dispor-se em uma ou duas fileiras. Não há o menor interesse em captar um tema em movimento. Isso ocorre, é de supor, em parte por causa de certas antigas convenções de decoro no comportamento e na representação pictórica. E é esse o gosto visual característico daqueles que se encontram no primeiro estágio da cultura da câmera, quando a imagem é definida como algo que pode ser roubado de seu proprietário; assim, Antonioni foi recriminado por “fazer tomadas à força, contra a vontade do povo”, como um “ladrão”. A posse de uma câmera não autoriza a intromissão, como acontece em nossa sociedade, quer as pessoas gostem ou não. (As boas maneiras de uma cultura da câmera determinam que a pessoa deve fingir não notar quando está sendo fotografada por um estranho num local público, contanto que o fotógrafo se mantenha a uma distância discreta — ou seja, espera-se que a pessoa não proíba o ato de fotografar nem faça pose.) Ao contrário daqui, onde posamos se possível e nos rendemos quando necessário, na China tirar fotos é sempre um ritual; sempre envolve posar e, necessariamente, consentir. Alguém que “deliberadamente espreitasse pessoas que ignorassem sua intenção de filmá-las” estaria privando pessoas e coisas do seu direito de posar, a fim de se apresentarem da melhor maneira possível.

Em Chuang Kuo, Antonioni dedicou quase toda a sequência sobre a praça Tien An Men, em Pequim, o mais importante local de peregrinação política do país, aos peregrinos que esperam para ser fotografados. O interesse de Antonioni em mostrar os chineses cumprindo esse rito elementar, documentar sua viagem por meio de uma câmera, é evidente: a foto e o ato de ser fotografado são, para a câmera, temas contemporâneos por excelência. Para seus críticos, o desejo que sentem os visitantes da praça Tien An Men de ter um suvenir fotográfico


é um reflexo de seus profundos sentimentos revolucionários. Mas, com más intenções, Antonioni, em vez de mostrar essa realidade, fez tomadas apenas da roupa, do movimento e das expressões das pessoas: aqui, uma pessoa arruma o cabelo; ali, pessoas espiam, com os olhos ofuscados pelo sol; num momento, as mangas, no outro, as calças.

Os chineses resistem ao desmembramento fotográfico da realidade. Closes não são usados. Mesmo os cartões-postais de objetos antigos e de obras de arte vendidos em museus não mostram parte de algo; o objeto é sempre fotografado de frente, centrado, claramente iluminado e no seu todo.

Achamos os chineses ingênuos por não perceberem a beleza da porta rachada e descascada, o caráter pitoresco da desordem, a força do ângulo estranho e do detalhe significativo, a poesia do avesso. Temos uma ideia moderna de embelezamento — a beleza não é inerente a nada; deve ser encontrada por outro modo de ver —, bem como uma noção mais larga de significado, que os muitos usos da fotografia ilustram e reforçam vigorosamente. Quanto mais numerosas as variações de algo, mais ricas as possibilidades de significado: assim, hoje, diz-se mais com fotos no Ocidente do que na China. Deixando de lado o que quer que possa haver em Chuang Kuo de uma peça de campanha ideológica (e os chineses não estão errados ao julgar o filme desdenhoso), as imagens de Antonioni apenas significam mais do que quaisquer imagens que os chineses divulguem de si mesmos. Os chineses não querem que as fotos signifiquem muito ou sejam muito interessantes. Não querem ver o mundo de um ângulo inusual, descobrir novos temas. Fotos devem mostrar aquilo que já foi descrito. A fotografia, para nós, é um instrumento de dois gumes, para produzir clichês (palavra francesa que designa uma expressão trivial e também o negativo fotográfico) e para oferecer percepções “inéditas”. Para as autoridades chinesas, só existem clichês — que elas não consideram clichês, mas percepções “corretas”.

Na China, hoje, só se reconhecem duas realidades. Nós vemos a realidade como inevitável e instigantemente plural. Na China, o que se define como uma questão para debate é aquela em que existem “duas linhas”, a certa e a errada. Nossa sociedade propõe um espectro de escolhas e percepções descontínuas. A deles é construída em torno de um observador único e ideal; e as fotos dão sua contribuição para o Grande Monólogo. Para nós, existem pontos de vista dispersos, intercambiáveis; a fotografia é um polílogo. A ideologia chinesa vigente define a realidade como um processo histórico estruturado por dualismos recorrentes, com significados nitidamente delineados e coloridos moralmente; o passado, em sua maior parte, é simplesmente tido como ruim. Para nós, existem processos históricos com significados espantosamente complexos e por vezes contraditórios; e artes que adquirem muito de seu valor por conta de nossa consciência do tempo como história, como é o caso da fotografia. (É por isso que o passar do tempo incrementa o valor estético das fotos, e as cicatrizes do tempo, na maioria das vezes, tornam os objetos mais instigantes para os fotógrafos.) Com a ideia de história, atestamos nosso interesse em conhecer o maior número de coisas. O único uso que os chineses têm permissão de fazer de sua história é o uso didático: seu interesse por história é estreito, moralista, deformador, sem curiosidade. Portanto, a fotografia, no sentido em que a vemos, não tem lugar na sociedade deles.

Os limites postos para a fotografia na China apenas refletem o caráter dessa sociedade, uma sociedade unificada por uma ideologia de puro e incessante conflito. Nosso uso ilimitado de imagens fotográficas não apenas reflete como dá forma a esta sociedade, unificada pela negação do conflito. Nossa própria ideia do mundo — o “mundo uno” do capitalismo do século XX — é semelhante a um levantamento fotográfico. O mundo é “uno” não por estar unido, mas porque um passeio por seus variados conteúdos não revela um conflito, apenas uma diversidade ainda mais assombrosa. Essa unidade espúria do mundo é obtida mediante a tradução de seus conteúdos em imagens. Imagens são sempre compatíveis, mesmo quando as realidades que retratam não o são.

A fotografia não apenas reproduz o real, recicla-o — um procedimento fundamental numa sociedade moderna. Na forma de imagens fotográficas, coisas e fatos recebem novos usos, destinados a novos significados, que ultrapassam as distinções entre o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o útil e o inútil, bom gosto e mau gosto. A fotografia é um dos principais meios de produzir esse atributo, conferido às coisas e às situações, que apaga aquelas distinções: “o interessante”. O que torna uma coisa interessante é que ela pode ser vista como parecida, ou análoga, a outra coisa. Existe uma arte e existem maneiras de ver coisas a fim de torná-las interessantes; e para suprir essa arte, e essas maneiras, existe uma perseverante reciclagem dos artefatos e dos gostos do passado. Clichês, reciclados, tornam-se metaclichês. A reciclagem fotográfica cria clichês a partir de objetos únicos, distintivos; e cria artefatos vívidos a partir de clichês. Imagens de coisas reais são entremeadas com imagens de imagens. Os chineses circunscrevem o uso da fotografia de modo que não existam camadas ou estratos de imagens, e todas as imagens reforçam e reiteram umas às outras. Fazemos da fotografia um meio de, precisamente, dizer qualquer coisa, servir a qualquer propósito. O que na realidade está separado, as imagens unem. Na forma de uma foto, a explosão de uma bomba atômica pode ser usada na publicidade de um cofre.




Para nós, a diferença entre o fotógrafo como um olho individual e o fotógrafo como um registrador objetivo parece fundamental, uma diferença muitas vezes vista, erradamente, como algo que separa a fotografia artística da fotografia como documento. Mas ambos são extensões lógicas do que a fotografia significa: anotar potencialmente tudo no mundo, de todos os ângulos possíveis. O mesmo Nadar que tirou os retratos de celebridades mais fidedignos de seu tempo e fez as primeiras fotoentrevistas foi também o primeiro fotógrafo a produzir imagens aéreas; e quando realizou “a operação daguerriana” em Paris, do alto de um balão, em 1855, imediatamente se deu conta das vantagens futuras da fotografia para os promotores de guerras.

Duas atitudes estão subjacente a essa presunção de que tudo no mundo é imaterial para a câmera. Uma crê que há beleza ou pelo menos interesse em tudo, visto com um olho aguçado o bastante. (E a estetização da realidade que torna tudo, qualquer coisa, acessível à câmera é também aquilo que permite a cooptação de qualquer foto, mesmo de um tipo absolutamente prático, como arte.) A outra trata tudo como objeto de algum uso presente ou futuro, como matéria de estimativas, decisões e previsões. Segundo uma atitude, nada existe que não deva ser visto; segundo a outra, nada existe que não deva ser registrado. As câmeras implementam uma visão estética da realidade por serem um brinquedo mecânico que estende a todos a possibilidade de fazer julgamentos desinteressados sobre a importância, o interesse e a beleza. (“Isso daria uma boa foto.”) As câmeras implementam a visão instrumental da realidade por reunir informações que nos habilitam a reagir de modo mais acurado e muito mais rápido a tudo o que estiver acontecendo. A reação, é claro, pode ser repressiva ou benevolente: fotos de reconhecimento militar ajudam a aniquilar vidas, radiografias ajudam a salvá-las.

Embora essas duas atitudes, a estética e a instrumental, pareçam produzir sentimentos contraditórios e até incompatíveis sobre pessoas e situações, essa é a típica contradição de atitude que devem compartilhar os membros de uma sociedade que divorcia o público do privado, e com a qual eles devem conviver. Talvez não exista nenhuma atividade que nos prepare tão bem para viver com essas atitudes contraditórias quanto a atividade de tirar fotos, que se presta a ambas de forma tão magnífica. De um lado, câmeras armam a visão a serviço do poder — do Estado, da indústria, da ciência. De outro, câmeras tornam a visão expressiva nesse espaço mítico conhecido como vida privada. Na China, onde nenhum espaço é deixado livre da política e do moralismo para expressões de sensibilidade estética, só se devem fotografar determinadas coisas, e só de determinadas maneiras. Para nós, à medida que nos tornamos mais desprendidos da política, há cada vez mais espaço livre para preencher com exercícios de sensibilidade como aqueles que as câmeras proporcionam. Um dos efeitos da mais recente tecnologia da câmera (vídeo, cinema de revelação instantânea) foi canalizar para usos narcisistas — ou seja, autovigilância — uma quantidade ainda maior daquilo que é produzido com câmeras em caráter privado. Mas tais usos, hoje populares, de imagens exibidas pouco depois de captadas, no quarto de dormir, na sessão de terapia e no simpósio de final de semana, parecem muito menos significativos do que o potencial do vídeo como ferramenta para vigilância em locais públicos. É de supor que os chineses, mais cedo ou mais tarde, venham a fazer da fotografia os mesmos usos instrumentais que nós, exceto este, talvez. Nossa inclinação para tratar o caráter como equivalente ao comportamento torna mais aceitável uma vasta instalação pública do olhar exterior mecanizado propiciado pelas câmeras. Os padrões de ordem muito mais repressivos vigentes na China requerem não só monitoramento do comportamento mas também modificação dos corações; lá, a vigilância é internalizada a um grau sem precedentes, o que sugere um futuro mais limitado para a câmera como meio de vigilância na sociedade deles.

A China oferece o modelo de um tipo de ditadura cuja ideia mestra é “o bem”, em que os limites mais impiedosos são contrapostos a todas as formas de expressão, incluindo as imagens. O futuro pode oferecer outro tipo de ditadura, cuja ideia mestra será “o interessante”, em que imagens de todos os tipos, estereotipadas e excêntricas, vão proliferar. Algo semelhante é sugerido em Invitation to a beheading, de Nabokov. Seu retrato do modelo de um Estado totalitário contém apenas uma arte onipresente: a fotografia — e o fotógrafo amistoso que ronda a cela de morte do herói revela-se, no fim do romance, como o carrasco. E parece não haver um modo (exceto a imposição de uma vasta amnésia histórica, como ocorre na China) de limitar a proliferação de imagens fotográficas. A única pergunta é se a função do mundo-imagem criado por câmeras poderia ser diferente do que é. A função atual é bastante clara, se considerarmos em que contextos as imagens fotográficas são vistas, que dependências elas criam, que antagonismos pacificam — ou seja, que instituições elas respaldam, a que necessidades de fato servem.

Uma sociedade capitalista requer uma cultura com base em imagens. Precisa fornecer grande quantidade de entretenimento a fim de estimular o consumo e anestesiar as feridas de classe, de raça e de sexo. E precisa reunir uma quantidade ilimitada de informações para melhor explorar as reservas naturais, aumentar a produtividade, manter a ordem, fazer a guerra, dar emprego a burocratas. As faculdades geminadas da câmera, subjetivizar a realidade e objetificá-la, servem idealmente a essas necessidades e as reforçam. As câmeras definem a realidade de duas maneiras essenciais para o funcionamento de uma sociedade industrial avançada: como um espetáculo (para as massas) e como um objeto de vigilância (para os governantes). A produção de imagens também supre uma ideologia dominante. A mudança social é substituída por uma mudança em imagens. A liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e de bens é equiparada à liberdade em si. O estreitamento da livre escolha política para libertar o consumo econômico requer a produção e o consumo ilimitados de imagens
.



A razão final para a necessidade de fotografar tudo repousa na própria lógica do consumo em si. Consumir significa queimar, esgotar — e, portanto, ter de se reabastecer. À medida que produzimos imagens e as consumimos, precisamos de ainda mais imagens; e mais ainda. Porém imagens não são um tesouro em cujo benefício o mundo tem de ser saqueado; são exatamente aquilo que está à mão onde quer que o olhar recaia. A posse de uma câmera pode inspirar algo afim à luxúria. E, a exemplo de todas as formas verossímeis de luxúria, algo que não pode ser satisfeito: primeiro, porque as possibilidades da fotografia são infinitas e, segundo, porque o projeto é, no fim, autodevorador. As tentativas feitas por fotógrafos de dar sustentação a um sentido de realidade esvaziado contribuem para o esvaziamento. Nossa opressiva sensação da transitoriedade de tudo é mais aguda, uma vez que as câmeras nos oferecem os meios de “fixar” o momento fugidio. Consumimos imagens num ritmo sempre mais rápido e, assim como Balzac suspeitava que as câmeras exauriam camadas do corpo, as imagens consomem a realidade. As câmeras são o antídoto e a doença, um meio de apropriar-se da realidade e um meio de torná-la obsoleta.

Os poderes da fotografia, de fato, têm desplatonizado nossa compreensão da realidade, tornando cada vez menos plausível refletir nossa experiência à luz da distinção entre imagens e coisas, entre cópias e originais. Condizia com a atitude depreciativa de Platão no tocante às imagens associá-las a sombras — transitórias, minimamente informativas, imateriais, impotentes copresenças das coisas reais que as projetam. Mas a força das imagens fotográficas provém de serem elas realidades materiais por si mesmas, depósitos fartamente informativos deixados no rastro do que quer que as tenha emitido, meios poderosos de tomar o lugar da realidade — ao transformar a realidade numa sombra. As imagens são mais reais do que qualquer um poderia supor. E só por constituírem uma fonte ilimitada, que não pode ser exaurida pelo desgaste consumista, há uma razão tanto maior para aplicar o remédio conservacionista. Se pode haver um modo melhor para o mundo real incluir o mundo das imagens, vai demandar uma ecologia não só de coisas reais mas também de imagens.





continua página 100...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Nota de esclarecimento da LêLivros


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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
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