Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez
(5.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
— Meu filho! — gritou Úrsula no meio da algazarra, e deu uma bofetada no soldado que tentou detê-la.
O cavalo do oficial empinou. Então o Coronel Aureliano Buendía se deteve, trêmulo, afastou os braços de sua mãe e fixou-lhe nos olhos um olhar duro.
— Vá para casa, mamãe — disse. — Peça permissão às autoridades e venha me ver na prisão.
Olhou para Amaranta, que permanecia indecisa dois passos atrás de Úrsula, e sorriu para ela ao perguntar: “O que foi que aconteceu com a sua mão?” Amaranta levantou a mão com a atadura negra. “Uma queimadura”, disse, e afastou Úrsula para que não fosse atropelada pelos cavalos. A tropa disparou. Uma guarda especial rodeou os prisioneiros e os levou rapidamente para o quartel.
Ao entardecer, Úrsula visitou o Coronel Aureliano Buendía na prisão. Tinha tentado conseguir a permissão através do Sr. Apolinar Moscote, mas este perdera toda a autoridade diante da onipotência dos militares. O Padre Nicanor estava prostrado com uma febre hepática. Os pais do Coronel Gerineldo Márquez, que não estava condenado à morte, tinham tentado vêlo e foram expulsos a coronhadas. Diante da impossibilidade de conseguir intermediários, convencida de que o filho seria fuzilado ao amanhecer, Úrsula fez um embrulho com as coisas que queria levar para ele e foi sozinha ao quartel.
— Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía — anunciou-se.
Os sentinelas lhe impediram a passagem. “Vou entrar de qualquer maneira”, Úrsula advertiu. “De modo que, se têm ordens de disparar, comecem logo.” Afastou um deles com um empurrão e entrou na antiga sala de aula, onde um grupo de soldados nus lubrificava as suas armas. Um oficial de uniforme de campanha, queimado de sol, com óculos de lentes muito grossas e gestos cerimoniosos, fez aos sentinelas um sinal para que se retirassem.
— Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía — Úrsula repetiu.
— A senhora estará querendo dizer — corrigiu o oficial com um sorriso amável — que é a senhora mãe do Sr. Aureliano Buendía. Úrsula reconheceu no seu modo de falar rebuscado a cadência lânguida da gente do páramo, os janotas.
— Como queira, senhor — admitiu — desde que me permita vê-lo.
Havia ordens superiores de não permitir visitas aos condenados à morte, mas o oficial assumiu a responsabilidade de lhe conceder uma entrevista de quinze minutos. Úrsula mostrou a ele o que trazia no embrulho: uma muda de roupa limpa, as botinas que o seu filho usara no casamento, e o doce de leite que guardava para ele desde o dia em que pressentiu o seu regresso. Encontrou o Coronel Aureliano Buendía no quarto dos condenados à morte, estendido num catre e com os braços abertos, porque tinha as axilas cheias de furúnculos. Haviam-lhe permitido fazer a barba. O bigode grosso de pontas torcidas acentuava a angulosidade das maçãs do rosto. Pareceu a Úrsula que estava mais pálido que quando fora embora, um pouco mais alto e mais solitário do que nunca. Sabia dos pormenores da casa: o suicídio de Pietro Crespi, as arbitrariedades e o fuzilamento de Arcadio, a impavidez de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro. Sabia que Amaranta tinha consagrado a sua viuvez de virgem à criação de Aureliano José, e que este começava a dar mostras de muito bom juízo e lia e escrevia ao mesmo tempo que aprendia a falar. A partir do momento em que entrou no quarto, Úrsula se sentiu inibida pela maturidade do filho, pela sua aura de domínio, pelo resplendor de autoridade que irradiava a sua pele. Surpreendeu-se de que estivesse tão bem informado. “A senhora já sabe que eu sou adivinho”, ele brincou. E acrescentou seriamente: “Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia passado por tudo isto.” Na verdade, enquanto a multidão rugia à sua passagem, ele estava concentrado nos seus pensamentos, assombrado da forma como as pessoas tinham envelhecido em um ano. As amendoeiras tinham as folhas gastas. As casas pintadas de azul, pintadas em seguida de vermelho e logo pintadas novamente de azul, acabaram por adquirir uma coloração indefinível.
— O que é que você esperava? — Úrsula suspirou. — O tempo passa.
— Ë verdade — admitiu Aureliano — mas não tanto.
Deste modo, a visita tanto tempo esperada, para a qual ambos haviam preparado as perguntas e inclusive previsto as respostas, foi outra vez a conversa cotidiana de sempre. Quando o sentinela anunciou o fim da entrevista, Aureliano tirou de debaixo da esteira do catre um rolo de papéis suados. Eram os seus versos. Os inspirados por Remedios, que tinha levado consigo quando fora embora, e os escritos depois, nas pausas ocasionais da guerra. “Prometa que ninguém vai ler isto”, disse.
“Esta noite mesmo acenda o forno com eles.” Úrsula prometeu e aprumou o corpo para lhe dar um beijo de despedida.
— Trouxe um revólver para você — murmurou.
O Coronel Aureliano Buendía verificou que o sentinela não estava por perto.
“Não me serve de nada”, respondeu em voz baixa. “Mas deixe comigo, para que não a apanhem na saída.” Úrsula tirou o revólver da combinação e ele o pôs debaixo da esteira do catre. “E agora não se despeça”, concluiu com uma firmeza calma. “Não suplique a ninguém nem se rebaixe diante de ninguém. Faça de conta que já me fuzilaram há muito tempo.” Úrsula mordeu os lábios para não chorar.
— Ponha pedras quentes nos furúnculos — disse.
Deu meia-volta e saiu do quarto. O Coronel Aureliano Buendía permaneceu de pé, pensativo, até que a porta se fechou. Então voltou a se deitar com os braços abertos. Desde o princípio da adolescência, quando começou a ser consciente dos seus presságios, pensava que a morte se havia de anunciar com um sinal definido, inequívoco, irrevogável, mas faltavam poucas horas para ele morrer, e o sinal não aparecia. Certa ocasião uma mulher muito bonita entrou no seu acampamento de Tucurinca e pediu aos sentinelas que lhe permitissem vê-lo. Deixaram-na passar, porque conheciam o fanatismo de algumas mães que enviavam as filhas ao quarto dos guerreiros mais notáveis, conforme elas mesmas diziam, para melhorar a raça. O Coronel Aureliano Buendía estava naquela noite terminando o poema do homem que se extraviara na chuva, quando a moça entrou no quarto. Ele lhe deu as costas para colocar a folha na gaveta com chave onde guardava os seus versos. E então sentiu. Agarrou a pistola na gaveta sem voltar o rosto.
— Não dispare, por favor — disse.
Quando se virou com a pistola preparada, a moça tinha abaixado a sua e não sabia o que fazer. Assim tinha conseguido escapar de quatro entre onze emboscadas. Em compensação, alguém que nunca foi capturado entrou certa noite no quartel revolucionário de Manaure e assassinou a punhaladas o seu amigo íntimo, o Coronel Magnífico Visbal, a quem tinha cedido o catre para que suasse uma febre. A poucos metros, dormindo numa rede no mesmo quarto, ele não se deu conta de nada. Eram inúteis os seus esforços para sistematizar os presságios. Apresentavam-se de repente, num clarão de lucidez sobrenatural, como uma convicção absoluta e momentânea, mas inatingível. Algumas vezes eram tão naturais que os identificava como presságios a não ser quando se cumpriam. Outras vezes eram taxativos e não se realizavam. Com frequência não eram mais que toques vulgares de superstição. Mas quando o condenaram à morte e lhe pediram que expressasse o seu último desejo, não teve a menor dificuldade em identificar o presságio que lhe inspirou a resposta:
— Peço que a sentença se cumpra em Macondo — disse.
O presidente do tribunal não gostou.
— Não banque o vivo — disse. — E um estratagema para ganhar tempo.
— Se não cumprirem a sentença, o problema é de vocês — disse o coronel — mas esta é a minha última vontade.
A partir de então os presságios o abandonaram. No dia em que Úrsula o visitou na prisão, depois de muito pensar, chegou à conclusão de que talvez a morte não se anunciasse daquela vez, porque não dependia do acaso e sim da vontade dos verdugos. Passou a noite em claro, atormentado pela dor dos furúnculos. Pouco antes da alvorada ouviu passos no corredor. “Já vem”, disse para si, e pensou sem motivo em José Arcadio Buendía, que naquele momento estava pensando nele, sob a madrugada lúgubre do castanheiro. Não sentiu medo nem saudade, mas uma raiva intestinal diante da ideia de que aquela morte artificiosa não lhe permitiria saber do final de tantas coisas que deixava sem terminar. A porta se abriu e entrou o sentinela com uma caneca de café. No dia seguinte, à mesma hora, ainda estava como então, irritado com a dor nas axilas, e aconteceu exatamente a mesma coisa. Na quinta-feira dividiu o doce de leite com os sentinelas e pôs a roupa limpa, que ficava apertada para ele, e as botinas de verniz. Ainda na sexta-feira não tinha sido fuzilado.
Na realidade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo fez os militares pensarem que o fuzilamento do Coronel Aureliano Buendía traria graves consequências políticas, não só em Macondo, mas em todo o âmbito do pantanal, de modo que consultaram as autoridades da capital da província. Na noite de sábado, enquanto esperavam a resposta, o Capitão Roque Carnicero foi com os outros oficiais à taberna de Catarino. Apenas uma mulher, quase pressionada por ameaças, atreve u-se a levá-lo ao quarto. “Elas não querem se deitar com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como vai ser, mas todo mundo anda dizendo que o oficial que fuzilar o Coronel Aureliano Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, serão assassinados sem escapatória, mais cedo ou mais tarde, mesmo que se escondam no fim do mundo.” O Capitão Roque Carnicero comentou o fato com os outros oficiais, e estes comentaram com os seus superiores. No domingo, ainda que ninguém tivesse revelado com franqueza, ainda que nenhum ato militar tivesse perturbado a calma tensa daqueles dias, todo o povo sabia que os oficiais estavam dispostos a escapar, sob toda espécie de pretextos, à responsabilidade da execução. No correio de segunda-feira chegou a ordem oficial: a execução deveria se realizar ao fim de vinte e quatro horas. Naquela noite os oficiais colocaram num gorro sete papeizinhos com os seus nomes, e o inclemente destino do Capitão Roque Carnicero apontou para ele com o papelzinho premiado. “O meu azar não escolhe a ocasião”, disse ele com profunda amargura. “Nasci filho da puta e morro filho da puta.” As cinco da madrugada escolheu o pelotão por sorteio, formou-o no pátio, e acordou o condenado com uma frase premonitória:
— Vamos, Buendía — disse a ele. — Chegou a nossa hora.
— Então era isto — respondeu o coronel. — Estava sonhando que os furúnculos tinham arrebentado.
Rebeca Buendía se levantava às três da madrugada desde que soube que Aureliano seria fuzilado. Ficava no quarto no escuro, vigiando pela janela entreaberta o muro do cemitério enquanto a cama em que estava sentada estremecia com os roncos de José Arcadio. Esperou a semana inteira com a mesma obstinação secreta com que em outra época esperava as cartas de Pietro Crespi. “Não vão fuzilar aqui”, dizia-lhe José Arcadio. “Vão fuzilá-lo à meia-noite no quartel, para que ninguém saiba quem formou o pelotão, e o enterram lá mesmo.” Rebeca continuou esperando. “São tão burros que vão fuzilar aqui”, dizia. Tão certa estava que tinha previsto a forma como abriria a porta para dar-lhe adeus com a mão. “Não vão trazê-lo pela rua”, insistia José Arcadio, “só com seis soldados assustados, sabendo que o povo está disposto a tudo.”
Indiferente à lógica do marido, Rebeca continuava na janela.
— Você vai ver já que são burros a esse ponto.
Na terça-feira, às cinco da madrugada, José Arcadio tinha tomado café e soltado os cachorros, quando Rebeca fechou a janela e se agarrou na cabeceira da cama para não cair. “Já o trazem”, suspirou. “Como está bonito.” José Arcadio chegou-se à janela, e o viu, trêmulo na claridade da alvorada, com umas calças que tinham sido suas na juventude. Estava de costas para o muro e tinha as mãos apoiadas na cintura porque os quistos ardentes das axilas impediam-no de abaixar os braços. “O sujeito se amola tanto”, murmurava o Coronel Aureliano Buendía. “O sujeito se amola tanto para depois ser morto por seis maricas sem poder fazer nada.” Repetia isso com tanta raiva que quase parecia fervor, e o Capitão Roque Carnicero se comoveu porque pensou que ele estava rezando. Quando o pelotão apontou para ele, a raiva se tinha materializado numa substância viscosa e amarga que lhe adormeceu a língua e o obrigou a fechar os olhos. Então desapareceu o resplendor de alumínio do amanhecer e ele voltou a ver-se a si mesmo, bem garoto, de calças curtas e gravata-borboleta, e viu seu pai numa tarde esplêndida conduzindo-o para o interior da tenda, e viu o gelo. Quando ouviu o grito, pensou que era a ordem final do pelotão. Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando chocar-se com a trajetória incandescente dos projéteis, mas só encontrou o Capitão Roque Carnicero com as mãos para o alto, e José Arcadio atravessando a rua com a sua espingarda pavorosa pronta para disparar.
— Não abra fogo — disse o capitão a José Arcadio. - O senhor vem a mando da Divina Providência.
continua página 83...
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