Livro II
Ela não é galante,
não usa ruge algum.
não usa ruge algum.
Sainte-Beuve
Capítulo XIV
PENSAMENTOS DE UMA MOÇA
Quantas perplexidades! Quantas noites passadas sem dormir! Santo Deus!
vou tornar-me desprezível? Ele mesmo me desprezará. Mas ele parte,afasta-se.
ALFRED DE MUSSET
NÃO FORA SEM combates que Mathilde escrevera. Qualquer que tenha sido o começo de seu interesse por Julien, ele logo dominou o orgulho que, desde que ela se conhecia, reinava sozinho em seu coração. Pela primeira vez, um sentimento apaixonado apoderava-se dessa alma altiva e fria. Mas, embora dominasse o orgulho, ele ainda era fiel aos hábitos do orgulho. Dois meses de combates e de sensações novas renovaram, por assim dizer, todo o seu ser moral.
Mathilde acreditava ver a felicidade. Essa visão todo-poderosa nas almas corajosas, ligadas a um espírito superior, precisou lutar longamente contra a dignidade e todos os sentimentos de deveres vulgares. Um dia, ela entrou nos aposentos da mãe, às sete da manhã, rogando-lhe a permissão de refugiar-se em Villequier. A marquesa nem sequer dignou-se responder, aconselhando-a a voltar para a cama. Foi o último esforço do bom senso vulgar e da deferência às ideias recebidas.
O temor de agir mal e de ferir as ideias consideradas como sagradas pelos Caylus, os de Luz, os Croisenois, tinha pouca influência sobre sua alma; indivíduos como eles não lhe pareciam feitos para compreendê-la; ela os teria consultado se fosse o caso de comprar uma carruagem ou terras. Seu verdadeiro terror era que Julien ficasse descontente com ela.
– Será que ele também só tem as aparências de um homem superior?
Ela abominava a falta de caráter, era sua única objeção contra os belos jovens que a cercavam. Quanto mais eles zombavam com elegância de tudo que se afasta da moda, ou que a segue mal, acreditando segui-la, mais perdiam-se aos olhos dela.
Eram valentes, nada mais. E, ainda assim, valentes como? ela pensava. Em duelo; mas o duelo não passa de uma cerimônia. Tudo se sabe de antemão, mesmo o que se deve dizer ao tombar. Estendido na relva, com a mão sobre o coração, é preciso uma palavra de perdão generoso ao adversário e a uma bela geralmente imaginária, ou que vai ao baile no dia mesmo dessa morte, para não levantar suspeitas.
Enfrentam o perigo à frente de um esquadrão reluzente de aço; mas o perigo solitário, singular, imprevisto, verdadeiramente feio?
Ah!, lamentava-se Mathilde, na corte de Henrique III é que havia homens grandes tanto pelo caráter como pelo nascimento! Ah! Se Julien tivesse servido em Jarnac ou em Moncontour, eu não mais duvidaria. Naqueles tempos de vigor e de força, os franceses não eram bonecos. O dia da batalha era quase o das menores perplexidades.
A vida deles não estava aprisionada como uma múmia do Egito, sob um invólucro comum a todos, sempre o mesmo. Sim, ela acrescentava, havia mais verdadeira coragem em retirar-se sozinho às onze da noite, saindo da mansão de Soissons, habitada por Catarina de Médicis, do que hoje em partir para Argel. A vida de um homem era uma série de acasos. Agora, a civilização expulsou o acaso, não há mais imprevisto. Se ele aparece nas ideias, atacam-no com epigramas; se aparece nos acontecimentos, nosso medo não recua ante nenhuma covardia. Seja qual for a estupidez que o medo nos mande fazer, ela é escusada. Século degenerado e enfadonho! Que teria dito Boniface de La Mole se, erguendo do túmulo sua cabeça cortada, visse, em 1793, dezessete de seus descendentes deixarem-se prender como ovelhas, para serem guilhotinados dois dias depois? A morte era certa, mas não teria sido de bom-tom defender-se e matar ao menos um jacobino ou dois. Ah! Naqueles tempos heroicos da França, no século de Boniface de La Mole, Julien teria sido chefe de esquadrão, e meu irmão, o jovem padre de hábitos decentes, com a sensatez nos olhos e a razão na boca.
Alguns meses antes, Mathilde desesperava de encontrar alguém um pouco diferente do padrão comum. Encontrara alguma felicidade em permitir-se escrever a alguns jovens da sociedade. Essa ousadia tão inconveniente, tão imprudente numa jovem, podia desonrá-la aos olhos do sr. de Croisenois, do duque de Chaulnes, seu pai, e de toda a família de Chaulnes, que, vendo romper-se o casamento projetado, ia querer saber por quê. Naquele tempo, nos dias em que escrevia uma de suas cartas, Mathilde não conseguia dormir. Mas aquelas cartas eram apenas respostas.
Agora ela ousava dizer que amava. Ela tomava a iniciativa (que expressão terrível!) de escrever a um homem situado nas últimas posições da sociedade.
Essa circunstância assegurava, em caso de descoberta, uma desonra eterna. Qual das mulheres que vinha à casa de sua mãe ousaria tomar seu partido? Que frase feita lhes ocorreria, para amortecer o golpe do terrível desprezo dos salões?
E, se falar já era era terrível, imagine-se escrever! Há coisas que não se escrevem, exclamava Napoleão ao ficar sabendo da capitulação de Baylen. E fora Julien que lhe relatara essa frase! como lhe dando antecipadamente uma lição.
Mas tudo isso ainda não era nada, a angústia de Mathilde tinha outras causas. Esquecendo o efeito horrível sobre a sociedade, a mancha inapagável e cheia de desprezo, pois ela ultrajava sua casta, Mathilde ia escrever a uma criatura de natureza completamente diferente da dos Croisenois, dos de Luz, dos Caylus.
A profundidade, o desconhecido do caráter de Julien teriam assustado, mesmo mantendo com ele uma relação comum. E ela ia fazer dele seu amante, talvez seu senhor!
Quais não serão as pretensões dele, se tiver todo o poder sobre mim? Pois bem! Direi a mim mesma, como Medeia: Em meio a tantos perigos, resta-me eu.
Julien não tinha a menor veneração pela nobreza de sangue, ela acreditava. Pior ainda, talvez não tivesse o menor amor por ela.
Nesses momentos de dúvidas terríveis, apresentavam-se as ideias de orgulho feminino. Tudo deve ser singular no destino de uma mulher como eu, exclamava Mathilde, impa ciente. E então o orgulho que lhe infundiram desde o berço batia-se contra a virtude. Foi nesse instante que a partida de Julien veio precipitar tudo.
(Caracteres assim, felizmente, são muito raros.)
À noite, muito tarde, Julien teve a ideia maldosa de mandar descer uma mala muito pesada até o porteiro; chamou para transportá-la o lacaio que cortejava a camareira da srta. de La Mole. Essa manobra pode não ter nenhum resultado, pensou, mas, se tiver êxito, ela pensará que parti. Foi deitar-se muito satisfeito com essa brincadeira. Mathilde não conseguiu dormir.
Bem cedo, na manhã seguinte, Julien saiu da mansão sem ser visto, mas retornou antes das oito horas.
Assim que se instalou na biblioteca, a srta. de La Mole apareceu à porta. Ele entregou-lhe sua resposta. Achou que era seu dever falar-lhe; nada mais cômodo, aliás, mas a srta. de La Mole não quis escutá-lo e desapareceu. Julien ficou satisfeito, ele não sabia o que dizer a ela.
Se isso não for um jogo combinado com o conde Norbert, é claro que foram meus olhares cheios de frieza que acenderam o amor barroco que essa moça de alto nascimento ousa ter por mim. Eu seria um pouco mais tolo do que convém se algum dia deixasse-me levar e passasse a gostar dessa boneca loira. Esse pensamento deixou-o mais frio e mais calculista do que nunca.
Na batalha que se prepara, acrescentou, o orgulho do nascimento será como uma colina elevada, formando posição militar entre ela e mim. É lá que terei de manobrar. Fiz muito mal em ficar em Paris; esse adiamento de minha partida me enfraquece e me expõe, se tudo não passar de um jogo. Que perigo havia em partir? Eu caçoa ria deles, se estão caçoando de mim. Se o interesse dela por mim tem algum fundamento, eu multiplicaria por cem esse interesse.
A carta da srta. de La Mole fizera Julien sentir uma vaidade tão intensa que, rindo do que lhe acontecia, ele esquecera de pensar seriamente na conveniência da partida.
Era uma fatalidade de seu caráter ser extremamente sensível a suas faltas. Estava muito contrariado com esta última, e quase não pensava mais na inacreditável vitória que precedera essa pequena falha, quando, por volta das nove horas, a srta. de La Mole apareceu à soleira da porta da biblioteca, lançou-lhe uma carta e desapareceu.
Parece que vamos ter um romance por cartas, disse ele, juntando-a do chão. O inimigo simula um movimento; quanto a mim, devo mostrar frieza e virtude.
Na carta ela lhe pedia uma resposta decisiva, com uma altivez que aumentou a satisfação interior de Julien. Ele deu-se o prazer de mistificar, em duas páginas, as pessoas que queriam zombar dele, e foi ainda por gracejo que anunciou, no final de sua resposta, sua partida decidida para o dia seguinte de manhã.
Terminada a carta, pensou: o jardim me servirá para entregá-la, e foi até lá. Ele olhava a janela do quarto da srta. de La Mole. Este ficava no primeiro andar, ao lado do apartamento da mãe, mas havia um piso intermediário. O primeiro andar ficava tão alto que, passeando debaixo das tílias, com a carta na mão, Julien não podia ser visto da janela da srta. de La Mole. A copa formada pelas tílias, muito bem aparadas, interceptava a visão. Ora essa! pensou Julien, irritado, mais uma imprudência! Se resolveram zombar de mim, fazer-me ver com uma carta na mão é servir meus inimigos.
O quarto de Norbert ficava precisamente acima do da irmã e, se Julien saísse da abóbada formada pelos ramos cortados das tílias, o conde e seus amigos podiam acompanhar todos os seus movimentos.
A srta. de La Mole apareceu por trás da vidraça; ele entremostrou a carta, ela baixou a cabeça. Julien tornou a subir a seus aposentos, correndo, e encontrou por acaso, na escada principal, a bela Mathilde, que pegou sua carta com um perfeito desembaraço e olhos risonhos.
Quanta paixão havia nos olhos da pobre sra. de Rênal, pensou Julien, quando, mesmo depois de seis meses de relações íntimas, ousava receber uma carta minha! Acho que em nenhum momento ela me olhou com olhos risonhos.
Ele não se exprimiu muito claramente o resto desse pensamento; tinha vergonha da futilidade dos motivos? Mas também, acrescentou, quanta diferença na elegância da roupa matinal, na elegância do porte! Ao avistar a srta. de La Mole a trinta passos de distância, um homem de gosto adivinharia a posição que ela ocupa na sociedade. Eis o que se pode chamar um mérito explícito.
Mesmo brincando, Julien não se confessava ainda todo o seu pensamento; a sra. de Rênal não tinha um marquês de Croisenois a sacrificar-lhe. Seu único rival era aquele ignóbil subprefeito, sr. Charcot, que se fazia chamar Maugiron porque não há mais Maugirons.
Às cinco da tarde, Julien recebeu uma terceira carta; foi lançada da porta da biblioteca. A srta. de La Mole fugiu mais uma vez. Que mania de escrever, disse a si mesmo, rindo, quando se pode falar tão comodamente! O inimigo quer ter minhas cartas, não há dúvida, e várias! Ele não tinha pressa de abrir esta última. Mais frases elegantes, pensava; mas, ao ler, empalideceu. Havia apenas oito linhas.
“Preciso lhe falar, devo lhe falar esta noite; quando soar uma hora depois da meia-noite, vá ao jardim. Pegue a escada do jardineiro junto ao poço; coloque-a contra minha janela e suba até meu quarto. Haverá luar: não importa.”
Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
O temor de agir mal e de ferir as ideias consideradas como sagradas pelos Caylus, os de Luz, os Croisenois, tinha pouca influência sobre sua alma; indivíduos como eles não lhe pareciam feitos para compreendê-la; ela os teria consultado se fosse o caso de comprar uma carruagem ou terras. Seu verdadeiro terror era que Julien ficasse descontente com ela.
– Será que ele também só tem as aparências de um homem superior?
Ela abominava a falta de caráter, era sua única objeção contra os belos jovens que a cercavam. Quanto mais eles zombavam com elegância de tudo que se afasta da moda, ou que a segue mal, acreditando segui-la, mais perdiam-se aos olhos dela.
Eram valentes, nada mais. E, ainda assim, valentes como? ela pensava. Em duelo; mas o duelo não passa de uma cerimônia. Tudo se sabe de antemão, mesmo o que se deve dizer ao tombar. Estendido na relva, com a mão sobre o coração, é preciso uma palavra de perdão generoso ao adversário e a uma bela geralmente imaginária, ou que vai ao baile no dia mesmo dessa morte, para não levantar suspeitas.
Enfrentam o perigo à frente de um esquadrão reluzente de aço; mas o perigo solitário, singular, imprevisto, verdadeiramente feio?
Ah!, lamentava-se Mathilde, na corte de Henrique III é que havia homens grandes tanto pelo caráter como pelo nascimento! Ah! Se Julien tivesse servido em Jarnac ou em Moncontour, eu não mais duvidaria. Naqueles tempos de vigor e de força, os franceses não eram bonecos. O dia da batalha era quase o das menores perplexidades.
A vida deles não estava aprisionada como uma múmia do Egito, sob um invólucro comum a todos, sempre o mesmo. Sim, ela acrescentava, havia mais verdadeira coragem em retirar-se sozinho às onze da noite, saindo da mansão de Soissons, habitada por Catarina de Médicis, do que hoje em partir para Argel. A vida de um homem era uma série de acasos. Agora, a civilização expulsou o acaso, não há mais imprevisto. Se ele aparece nas ideias, atacam-no com epigramas; se aparece nos acontecimentos, nosso medo não recua ante nenhuma covardia. Seja qual for a estupidez que o medo nos mande fazer, ela é escusada. Século degenerado e enfadonho! Que teria dito Boniface de La Mole se, erguendo do túmulo sua cabeça cortada, visse, em 1793, dezessete de seus descendentes deixarem-se prender como ovelhas, para serem guilhotinados dois dias depois? A morte era certa, mas não teria sido de bom-tom defender-se e matar ao menos um jacobino ou dois. Ah! Naqueles tempos heroicos da França, no século de Boniface de La Mole, Julien teria sido chefe de esquadrão, e meu irmão, o jovem padre de hábitos decentes, com a sensatez nos olhos e a razão na boca.
Alguns meses antes, Mathilde desesperava de encontrar alguém um pouco diferente do padrão comum. Encontrara alguma felicidade em permitir-se escrever a alguns jovens da sociedade. Essa ousadia tão inconveniente, tão imprudente numa jovem, podia desonrá-la aos olhos do sr. de Croisenois, do duque de Chaulnes, seu pai, e de toda a família de Chaulnes, que, vendo romper-se o casamento projetado, ia querer saber por quê. Naquele tempo, nos dias em que escrevia uma de suas cartas, Mathilde não conseguia dormir. Mas aquelas cartas eram apenas respostas.
Agora ela ousava dizer que amava. Ela tomava a iniciativa (que expressão terrível!) de escrever a um homem situado nas últimas posições da sociedade.
Essa circunstância assegurava, em caso de descoberta, uma desonra eterna. Qual das mulheres que vinha à casa de sua mãe ousaria tomar seu partido? Que frase feita lhes ocorreria, para amortecer o golpe do terrível desprezo dos salões?
E, se falar já era era terrível, imagine-se escrever! Há coisas que não se escrevem, exclamava Napoleão ao ficar sabendo da capitulação de Baylen. E fora Julien que lhe relatara essa frase! como lhe dando antecipadamente uma lição.
Mas tudo isso ainda não era nada, a angústia de Mathilde tinha outras causas. Esquecendo o efeito horrível sobre a sociedade, a mancha inapagável e cheia de desprezo, pois ela ultrajava sua casta, Mathilde ia escrever a uma criatura de natureza completamente diferente da dos Croisenois, dos de Luz, dos Caylus.
A profundidade, o desconhecido do caráter de Julien teriam assustado, mesmo mantendo com ele uma relação comum. E ela ia fazer dele seu amante, talvez seu senhor!
Quais não serão as pretensões dele, se tiver todo o poder sobre mim? Pois bem! Direi a mim mesma, como Medeia: Em meio a tantos perigos, resta-me eu.
Julien não tinha a menor veneração pela nobreza de sangue, ela acreditava. Pior ainda, talvez não tivesse o menor amor por ela.
Nesses momentos de dúvidas terríveis, apresentavam-se as ideias de orgulho feminino. Tudo deve ser singular no destino de uma mulher como eu, exclamava Mathilde, impa ciente. E então o orgulho que lhe infundiram desde o berço batia-se contra a virtude. Foi nesse instante que a partida de Julien veio precipitar tudo.
(Caracteres assim, felizmente, são muito raros.)
À noite, muito tarde, Julien teve a ideia maldosa de mandar descer uma mala muito pesada até o porteiro; chamou para transportá-la o lacaio que cortejava a camareira da srta. de La Mole. Essa manobra pode não ter nenhum resultado, pensou, mas, se tiver êxito, ela pensará que parti. Foi deitar-se muito satisfeito com essa brincadeira. Mathilde não conseguiu dormir.
Bem cedo, na manhã seguinte, Julien saiu da mansão sem ser visto, mas retornou antes das oito horas.
Assim que se instalou na biblioteca, a srta. de La Mole apareceu à porta. Ele entregou-lhe sua resposta. Achou que era seu dever falar-lhe; nada mais cômodo, aliás, mas a srta. de La Mole não quis escutá-lo e desapareceu. Julien ficou satisfeito, ele não sabia o que dizer a ela.
Se isso não for um jogo combinado com o conde Norbert, é claro que foram meus olhares cheios de frieza que acenderam o amor barroco que essa moça de alto nascimento ousa ter por mim. Eu seria um pouco mais tolo do que convém se algum dia deixasse-me levar e passasse a gostar dessa boneca loira. Esse pensamento deixou-o mais frio e mais calculista do que nunca.
Na batalha que se prepara, acrescentou, o orgulho do nascimento será como uma colina elevada, formando posição militar entre ela e mim. É lá que terei de manobrar. Fiz muito mal em ficar em Paris; esse adiamento de minha partida me enfraquece e me expõe, se tudo não passar de um jogo. Que perigo havia em partir? Eu caçoa ria deles, se estão caçoando de mim. Se o interesse dela por mim tem algum fundamento, eu multiplicaria por cem esse interesse.
A carta da srta. de La Mole fizera Julien sentir uma vaidade tão intensa que, rindo do que lhe acontecia, ele esquecera de pensar seriamente na conveniência da partida.
Era uma fatalidade de seu caráter ser extremamente sensível a suas faltas. Estava muito contrariado com esta última, e quase não pensava mais na inacreditável vitória que precedera essa pequena falha, quando, por volta das nove horas, a srta. de La Mole apareceu à soleira da porta da biblioteca, lançou-lhe uma carta e desapareceu.
Parece que vamos ter um romance por cartas, disse ele, juntando-a do chão. O inimigo simula um movimento; quanto a mim, devo mostrar frieza e virtude.
Na carta ela lhe pedia uma resposta decisiva, com uma altivez que aumentou a satisfação interior de Julien. Ele deu-se o prazer de mistificar, em duas páginas, as pessoas que queriam zombar dele, e foi ainda por gracejo que anunciou, no final de sua resposta, sua partida decidida para o dia seguinte de manhã.
Terminada a carta, pensou: o jardim me servirá para entregá-la, e foi até lá. Ele olhava a janela do quarto da srta. de La Mole. Este ficava no primeiro andar, ao lado do apartamento da mãe, mas havia um piso intermediário. O primeiro andar ficava tão alto que, passeando debaixo das tílias, com a carta na mão, Julien não podia ser visto da janela da srta. de La Mole. A copa formada pelas tílias, muito bem aparadas, interceptava a visão. Ora essa! pensou Julien, irritado, mais uma imprudência! Se resolveram zombar de mim, fazer-me ver com uma carta na mão é servir meus inimigos.
O quarto de Norbert ficava precisamente acima do da irmã e, se Julien saísse da abóbada formada pelos ramos cortados das tílias, o conde e seus amigos podiam acompanhar todos os seus movimentos.
A srta. de La Mole apareceu por trás da vidraça; ele entremostrou a carta, ela baixou a cabeça. Julien tornou a subir a seus aposentos, correndo, e encontrou por acaso, na escada principal, a bela Mathilde, que pegou sua carta com um perfeito desembaraço e olhos risonhos.
Quanta paixão havia nos olhos da pobre sra. de Rênal, pensou Julien, quando, mesmo depois de seis meses de relações íntimas, ousava receber uma carta minha! Acho que em nenhum momento ela me olhou com olhos risonhos.
Ele não se exprimiu muito claramente o resto desse pensamento; tinha vergonha da futilidade dos motivos? Mas também, acrescentou, quanta diferença na elegância da roupa matinal, na elegância do porte! Ao avistar a srta. de La Mole a trinta passos de distância, um homem de gosto adivinharia a posição que ela ocupa na sociedade. Eis o que se pode chamar um mérito explícito.
Mesmo brincando, Julien não se confessava ainda todo o seu pensamento; a sra. de Rênal não tinha um marquês de Croisenois a sacrificar-lhe. Seu único rival era aquele ignóbil subprefeito, sr. Charcot, que se fazia chamar Maugiron porque não há mais Maugirons.
Às cinco da tarde, Julien recebeu uma terceira carta; foi lançada da porta da biblioteca. A srta. de La Mole fugiu mais uma vez. Que mania de escrever, disse a si mesmo, rindo, quando se pode falar tão comodamente! O inimigo quer ter minhas cartas, não há dúvida, e várias! Ele não tinha pressa de abrir esta última. Mais frases elegantes, pensava; mas, ao ler, empalideceu. Havia apenas oito linhas.
“Preciso lhe falar, devo lhe falar esta noite; quando soar uma hora depois da meia-noite, vá ao jardim. Pegue a escada do jardineiro junto ao poço; coloque-a contra minha janela e suba até meu quarto. Haverá luar: não importa.”
continua página 231...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
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Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensamentos de uma moça (XIV)
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