Maria Firmina dos Reis
Úrsula
E aí havia uma mulher escrava, e negra como ele; mas boa, e compassiva, que lhe serviu de mãe enquanto lhe sorriu essa idade lisonjeira e feliz, única na vida do homem que se grava no coração com caracteres de amor – única, cuja recordação nos apraz, e em que (1)...
(1) Falta uma linha no original fac-similar.
Susana, chama-se ela, trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras, e descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encarnado e amarelo, que mal lhe ocultava as alvíssimas cãs.
Túlio estava ante ela com os braços cruzados sobre o peito. Em seu semblante transparecia um quê de dor mal reprimida, que denunciava o seu profundo pesar.
A velha deixou o fuso em que fiava, ergueu-se sem olhá-lo, tomou o cachimbo, encheu-o de tabaco, acendeu-o, tirou dele algumas baforadas de fumo, e de novo sentou-se: mas dessa vez não pegou no fuso.
Fitou então os olhos em Túlio, e disse-lhe:
— Onde vais, Túlio?
— Acompanhar o senhor Tancredo de *** – respondeu o interpelado.
— Acompanhar o senhor Tancredo! – continuou a velha com acento repreensivo – Sabes tu o que fazes? Túlio, Túlio!...
Depois de pausa, ajuntou:
— Não sentes saudades desta casa, ingrato?!
— Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato. Quantas saudades levo eu de vós! Oh só Deus sabe quanto me pesam elas!
— Tu!? – exclamou ela procurando ler-lhe no fundo do coração os sentimentos, que o animavam.
– Tu não levas saudades algumas. Túlio, se as levasses, quem te obrigaria a deixar-nos?
— A gratidão – respondeu ele com presteza.
— A gratidão!? E não a deves à senhora, que para ti tem sido quase que uma mãe? Não a deves à menina? E porque as deixas? É que não sentes saudades delas.
— Oh! Sinto-as, sinto-as, e muitas, mãe Susana!
— Então não procures ir com esse homem, que apenas conheces! Olha, ainda há pouco vi uma lágrima pender dos olhos dessa boa menina, essa lágrima, creio que lhe arrancou do coração a notícia da sua partida... e tu vais-te! Quando voltarás aqui?
— A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo, será por pouco tempo. Volto para junto de vós, mãe Susana, e a senhora não reclamará em vão os meus serviços.
— A senhora! – replicou a velha com mágoa – Essa, meu filho, jamais reclamará os teus serviços; ou eu me engano, ou tu vais dizer-lhe o último adeus!
— Túlio, – continuou – não sabes quanto sofro quando recordo-me de que a nossa querida menina vai tão breve ficar só no mundo! Só, Túlio! Quem a acompanhará? Quem poderá consolá-la! Eu? Não. Pouco poderei demorar-me neste mundo. Meu filho, acho bom que não te vás. Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o encontrarás melhor? Olha, chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te.
— Oh! Quanto a isso não, mãe Susana – tornou Túlio. – A senhora Luísa B. foi para mim boa e carinhosa, o céu lhe pague o bem que me fez, que eu nunca me esquecerei de que poupou-me os mais acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao jovem cavaleiro, é bem diverso o meu sentir; sim, bem diverso. Não troco cativeiro por cativeiro, oh não! Troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe Susana, se deve ter limites a minha gratidão: veja se devo, ou não, acompanhá-lo, se devo, ou não provar- -lhe até a morte o meu reconhecimento!...
— Tu! Tu livre? Ah, não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos.
— Meu filho, tu és já livre?...
— Iludi-la! – respondeu ele, rindo-se de felicidade – E para quê? Mãe Susana, graças à generosa alma deste mancebo, sou hoje livre, livre como o pássaro, como as águas; livre como o éreis na vossa pátria.
Estas últimas palavras despertaram no coração da velha escrava uma recordação dolorosa; soltou um gemido magoado, curvou a fronte para a terra, e com ambas as mãos cobriu os olhos.
Túlio olhou-a com interesse; começava a compreender-lhe os pensamentos.
— Não se aflija – disse.
— Para que essas lágrimas? Ah! Perdoe-me, eu despertei-lhe uma ideia bem triste!
A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou:
— Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... ah! Eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria as descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! Meu filho! Mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: uma filha, que era minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar a nossa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!
Estava extenuada de aflição, a dor era-lhe viva, e assoberbava-lhe o coração.
— Ah! Pelo céu! – exclamou o jovem negro enternecido. – Sim, pelo céu, para que essas recordações!?
— Não matam, meu filho. Se matassem, há muito que morrera, pois vivem comigo todas as horas.
Vou contar-te o meu cativeiro.
Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o amendoim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! Nunca mais devia eu vê-la...
Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo da minha alma, só vós o pudestes avaliar!...
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
Muitos não deixavam chegar esse último extremo – davam-se à morte.
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que nos escaldou e veio dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti – é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.
O comendador P. foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos por que passaram doeram-me até o fundo do coração! O comendador P. derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se dava a meus irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.
Pouco depois casou-se a senhora Luísa B., e ainda a mesma sorte: seu marido era um homem mau, e eu suportei em silêncio o peso do seu rigor.
E ela chorava, porque doía-lhe na alma a dureza de seu esposo para com os míseros escravos, mas ele via-os expirar debaixo dos açoites os mais cruéis, das torturas do anjinho, do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os sepultavam vivos, onde, carregados de ferros, como malévolos assassinos, acabavam a existência, amaldiçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmos céus!...
O senhor Paulo B. morreu, e sua esposa e sua filha procuraram em sua extrema bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio, meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço, mas a dor que tenho no coração, só a morte poderá apagar! – Meu marido, minha filha, minha terra... Minha liberdade...
E depois ela calou-se, e as lágrimas, que lhe banhavam o rosto rugoso, gotejaram na terra.
Túlio ajoelhou-se respeitoso ante tão profundo sentir: tomou as mãos secas, e enrugadas da africana, e nelas depositou um beijo.
A velha sentiu-o, e duas lágrimas de sincero enternecimento desceram- -lhe pela face: ergueu então seus olhos vermelhos de pranto, e arrancou a mão com brandura e elevando-a sobre a cabeça do jovem negro, disse-lhe tocada de gratidão:
— Vai, meu filho! Que o Senhor guie os teus passos, e te abençoe, como eu te abençoo.
continua pág 81...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
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Úrsula - Apresentação
Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito
Úrsula - Prólogo
Úrsula - I Duas almas generosas (1)
Úrsula - I Duas almas generosas (2)
Úrsula - II O delírio (1)
Úrsula - II O delírio (2)
Úrsula - III A declaração de amor (1)
Úrsula - III A declaração de amor (2)
Úrsula - IV A primeira impressão
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