sexta-feira, 11 de março de 2022

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (33)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas




PRIMEIRA PARTE



XXXIII – RENATA DE L’ESTORADE À SRA. DE MACUMER 


Olha, minha filha, se algum dia fores mãe, verás se é possível escrever durante os dois primeiros meses da amamentação. Mary, minha criada inglesa, e eu estamos esfalfadas. É verdade que não te disse que eu própria me empenho em fazer tudo. Antes do acontecimento, eu cosi com minhas próprias mãos e bordei o enxoval do bebê, e enfeitei eu mesma as touquinhas. Sou escrava, querida, escrava de dia e de noite. Para começar, Armando mama quando quer, e quer sempre; depois é preciso trocá-lo tão frequentemente, lavá-lo, vesti-lo; a mãe gosta tanto de o ver adormecido, de lhe cantar canções, de levá-lo a passear quando faz bom tempo, carregando-o no braços, que não sobra tempo para cuidar de si mesma. Enfim, tu tinhas a sociedade, eu tinha meu filho, nosso filho! Que vida rica e cheia! Ó, minha querida, eu te espero, verás! Mas tenho medo de que comece o trabalho da dentição e que tu o encontres manhoso e chorão. Ele, por enquanto, não gritou muito ainda, porque eu sempre estou presente. As crianças gritam somente porque têm necessidades que não sabemos adivinhar, e eu vivo sempre na pista das suas. Ó meu anjo, quanto meu coração cresceu enquanto tu diminuías o teu, colocando-o a serviço da sociedade! Espero-te com a impaciência de um solitário. Quero conhecer tua opinião sobre Estorade, da mesma forma que tu deves querer a minha sobre Macumer. Escreve-me da tua última pousada. Os meus homens querem ir ao encontro de nossos ilustres hóspedes. Vem, rainha de Paris, vem à nossa pobre choupana, onde serás querida!





XXXIV –  A SRA. DE MACUMER À VISCONDESA DE L’ESTORADE


Abril de 1826


O endereço da minha carta te anunciará, querida, o êxito de minhas solicitações. Eis teu sogro conde de l’Estorade. Não quis deixar Paris sem ter obtido o que desejavas, e escrevo-te na presença do chanceler, o qual me veio comunicar que a nomeação estava assinada. 

Até breve.




XXXV –  DA MESMA PARA A MESMA 


Marselha, Julho



A minha brusca partida vai causar-te espanto, estou envergonhada, mas, como acima de tudo sou sincera e te quero sempre da mesma forma, vou dizer-te ingenuamente tudo em quatro palavras: eu sou terrivelmente ciumenta. Felipe olhava demasiado para ti. Vocês tinham, um com o outro, pequenas palestras, junto ao teu rochedo, que me torturavam, me tornavam ruim e transformavam meu caráter. Tua beleza verdadeiramente espanhola devia lembrar-lhe sua terra e aquela Maria Heredia de quem sou ciumenta, pois tenho ciúme do passado. A tua esplêndida cabeleira negra, os teus belos olhos castanhos, essa fronte na qual as alegrias da maternidade põem em relevo tuas eloquentes dores passadas que são como as sombras de uma luz radiosa; essa frescura de pele meridional, mais alva do que minha alvura de loura; essas formas imponentes, esse seio que brilha através das rendas como um fruto delicioso, ao qual se pendura o meu lindo afilhado, tudo isso me feria os olhos e o coração.

Por mais que eu pusesse ora escovinhas nos cachos dos meus cabelos, ora temperasse a insipidez de minhas tranças louras com fitas cor de cereja, tudo isso empalidecia diante de uma Renata que eu não esperava encontrar nesse oásis da Crampade.

Felipe por sua vez invejava demasiado aquela criança, que eu começava a odiar. Sim, a insolente vida que enche a tua casa, que a anima, que nela grita, que nela ri, eu a queria para mim. Li pesar nos olhos de Macumer, e isso me fez chorar durante duas noites, sem que ele o soubesse. Tua casa era para mim um suplício. És uma mulher demasiado bela e uma mãe demasiado feliz para que eu possa ficar junto de ti. Ah! Hipócrita, e tu te queixavas! Para começar, o teu Estorade, achei-o muito bem, conversa agradavelmente; seus cabelos negros, entremeados de fios brancos, são bonitos; tem belos olhos, e seus modos de meridional têm esse não sei quê, que agrada. Pelo que vi, mais cedo ou mais tarde, ele será eleito deputado por Bouchesdu- Rhône; fará carreira na Câmara, porque estou sempre às ordens de vocês em tudo que diga respeito às suas ambições. As misérias do exílio deram-lhe essa aparência calma e ponderada que me parece a metade da política. A meu ver, querida, toda a política consiste em parecer grave. Por isso dizia eu a Macumer que ele deve ser um grande homem de Estado.

Enfim, depois de ter adquirido a certeza de tua felicidade, vou-me a toda pressa, contente, para o meu querido Chantepleurs, onde Felipe se arranjará para ser pai; não te quero receber lá senão tendo ao seio uma bela criança, semelhante à tua. Mereço todos os nomes que me quiseres dar: sou absurda, infame, sem espírito. Ai de mim! Somos tudo isso quando temos ciúme. Não te quero mal por isso, mas eu sofria, e tu me perdoarás por ter-me esquivado a tais sofrimentos. Com mais dois dias e eu teria feito alguma asneira. Sim, teria feito alguma coisa de mau gosto. Apesar dos acessos de raiva que me remordiam o coração, sinto-me feliz por ter ido aí, por te haver visto mãe, tão bela e tão fecunda, ainda minha amiga em meio a tuas alegrias maternais, da mesma forma que me conservo tua dentro do meu amor. Vês? Em Marselha, a poucos passos de vocês, sinto-me orgulhosa de ti, orgulhosa dessa grande mãe de família que tu serás. Com que intuição adivinharas a tua vocação! Pois pareces ter nascido mais para mãe do que para amante, ao passo que eu nasci mais para o amor do que para a maternidade. Certas mulheres não podem ser nem mães nem amantes se são muito feias ou muito tolas. Uma boa mãe e uma esposa-amante precisam ter a todo momento espírito, bom-senso, e saber a propósito de tudo exibir as mais sublimes qualidades da mulher. Oh! Observei-te atentamente; não é isso dizer, minha gatinha, que te admirei? Sim, teus filhos serão felizes e bem-educados, viverão mergulhados nas efusões de tua ternura, acariciados pelos clarões de tua alma.

Dize a verdade a respeito de minha partida ao teu Luís, mas colore-a com pretextos decentes aos olhos de teu sogro, que parece ser vosso intendente, e sobretudo aos olhos de tua família, uma verdadeira família Harlowe,[1] com, ademais, o espírito provençal. Felipe não sabe ainda por que parti, e não o saberá jamais. Se perguntar, tratarei de arranjar um pretexto qualquer. Dir-lhe-ei, provavelmente, que tiveste ciúme de mim. Perdoa-me esta pequena mentira oficiosa. Adeus; escrevo-te às pressas a fim de que esta carta te chegue às mãos à hora do almoço, e o postilhão que se encarregou de levá-la está aqui bebendo enquanto espera. Beija por mim meu querido afilhado. Vem a Chantepleurs em outubro, quando estarei sozinha durante o tempo que Macumer for passar na Sardenha, onde pretende fazer grandes transformações na sua propriedade. Pelo menos é esse o projeto de momento; é fatuidade sua ter projetos, pois se julga independente: por isso sempre está inquieto quando mos comunica.


Adeus!


continua pág 322...

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[1] Uma verdadeira família Harlowe: rever esta nota... Girodet: Anne-Louis Girodet de Roussy (1767-1824), pessoa real, pintor famoso na época, autor, entre outros quadros, do Sonho de Endimião. O trecho dá um bom exemplo de como Balzac introduz pessoas reais entre suas criaturas de ficção.

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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