quinta-feira, 17 de março de 2022

O Brasil Nação - V2: § 89 – O indispensável preparo - Manoel Bomfim

  Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 89 – O indispensável preparo


Falta-nos povo para a livre vida contemporânea. Falta-nos; mas um povo se faz em duas ou três gerações como também rapidamente se amesquinha. Verso e reverso do mesmo motivo, nos mesmos processos, daí resultam todas as vicissitudes que enchem a história: povos que se elevam e se valorizam, enquanto outros declinam, às vezes, até a degradação... Então, se procuramos alcançar – o porquê e o como, de tais variações, encontramo-nos fatalmente com estes dois fatos: nos que se engrandecem, um explícito ideal como estímulo, o prosseguir de uma acurada educação como processo. O ideal marca o ponto a alcançar, a educação faz o treino de virtudes precisas, na realização da ação que é o programa exigido pelo mesmo ideal. Apaga-se o ideal, afrouxa-se a educação, é o declínio, talvez em degeneração. E, com isso, não há inferioridades essenciais, nem irrecusáveis superioridades, nem degradações incuráveis... nem, sobretudo, milagres, que dispensem o ideal vivificante e a educação formadora. Em compensação, nem mesmo os gênios são indispensáveis para a grandeza de um povo. O ideal romano, assistido por aquela tenacíssima educação, bastou para que os medíocres Metelos, Cincinatos e Cipiões afirmassem o incontrastável poder de Roma, mesmo em contestação com os maiores gênios do Mediterrâneo. Ali, no mundo antigo: o primeiro romano que conheceu os germanos pintou-os como tribos bárbaras, num viver primitivo e selvático (só comparável ao do nosso gentio tupi). Nem povoações estáveis, nem indústrias evoluídas, nem comércio regular, nem riqueza feita, nem propriedade individual, nem capacidade política... Montavam pirogas cavadas nos troncos, mudavam de terra, de ano para ano, moviam-se para guerrear e saquear... Davam o maior tempo às festanças, celebravam e cantavam as façanhas guerreiras, cultivavam o heroísmo... Lutavam heroicamente, mas não sabiam fazer a guerra, registra Cesar. Lutavam, principalmente, contra a civilização, em vista das suas restrições policiais e fórmulas jurídicas. Em verdade, os nossos potiguaras e tamoios não eram mais irredutíveis, nem mais ciosos das franquias comunistas da tribo do que as hordas germânicas em face do romano. Cesar assim as conheceu, e Tácito repete os conceitos de Cesar, justificando-os numa experiência de século. E, assim, Pomponius Mela, Veleius Paterculus, Dion Cassius... Dir-se-ia a irremissível inferioridade, cara à ciência fácil dos arianizantes. Momsen, alemão, em são critério germânico, teve de acentuar a condição dos seus antepassados: “... não tinham registros históricos, nem outros nomes que os distribuíssem, além dos de nômades, soldados de fronteiras (Suevos, Marcomanos)...” A própria tenacidade romana teve de ceder, ante a selvageria dos indisciplinados germanos. Do Reno para lá, aquilo teve de continuar como o viveiro de onde saíam as ondas de bárbaros, a invadirem a civilização, que só aceitavam como dominadores. Os que por lá ficavam continuavam a barbaria selvática dos tempos de Cesar. E assim os encontrou Carlos Magno. Vigor teutônico, em fórmulas latinas, o franco empreendeu, não a conquista, mas a educação da sua gente; organizou-a, e, antes de três gerações, os irredutíveis germanos tinham subido ao nível da civilização galo-romana. Antes de um século, dos encourados guerreiros, havia saído um povo que nunca mais deixou de ser fronteira de novas perspectivas no pensamento humano.

Os mesmos efeitos, de preparo e elevação, destacam-se em todas as nações modernas, sempre que lhes tem sido preciso valor específico para manter o nível de civilização, ou para disputar primazia entre rivais. Na Inglaterra do começo do século XVIII, esgotada a aura da grande revolução e da reação restauradora, quando pareciam anuladas todas as energias nacionais, por todos os lados, a questão da educação foi tratada como o recurso mais próprio para soerguer as forças sociais e reviver o desenvolvimento do país. E o apelo se repetirá, em 1882... quando, finalmente, a palavra miséria andava em todas as bocas, como também em 1885- 90, como remédio à flacidez em que se pronunciava o fim do período vitoriano. Na Alemanha, abatida a Prússia em Iena, quando o desastre já parecia queda definitiva, eleva-se a voz de Fitch, em deprecação de profeta, a pedir a educação do povo alemão, como o único remédio possível, na suprema desgraça. Fitch moveu os espíritos, e foi consagrado, depois, como o fundador da grande pátria germânica, essa que se impôs em Sadowa e Sedan. E o próprio Bismark, a justificar o sucesso, explicava: Quem venceu foi o mestre-escola alemão. O conceito foi repetido, sobretudo na França derrotada, e que, imediatamente, se voltou para o recurso infalível, em que poderia remir o desastre. E a terceira República


definiu o seu intento no programa dos chamados ministros- -pedagogos. Ferry, Paul Bert... Começou pelo próprio Gambeta, o glorioso libertador do território, quando afirmava: “A instrução é mais do que a libertação do território nacional, porque é a libertação do gênio nacional.” Aqui mesmo, na América do Sul. Leiam-se as descrições dos próprios argentinos – do que era a vida pública, ali: dá para horrorizar... Vieram os governos educadores; Sarmiento foi um nome nacional, e dessa política formadora saiu a Argentina atual, dianteira do progresso no continente. Nem seria preciso lembrar o caso da grande República do Norte, com sua política de há um século, quando a questão da instrução do povo aparecia no programa de todos os partidos, para uma sincera realização. Ainda há pouco, os transes tremendos da grande guerra: foi no mais duro da campanha, em 1916, que a Alemanha, a procurar remédio para a crise em que se via, criou a escola nacional única, reformando, então, por meio da instrução, o processo de formação das elites, ao mesmo tempo que instituía o ensino profissional obrigatório – dos 14 aos 17 anos. Na Inglaterra, também em plena luta – 1917, o governo se voltou explicitamente para o problema da educação, e, reformando os respectivos serviços, elevou a sua dotação de dez milhões de libras, quando o total era de trinta milhões. Foi quando o Ministro Fischer, ao justificar o aumento, não hesitou em afirmar: “O dinheiro de mais rendimento é o que se emprega nos serviços da instrução.” Por isso mesmo, a República dos Sovietes, empenhada em fazer obra durável, apesar de empenhada numa extensa reconstrução, em luta com todos os governos da Entente, combatida pelas diversas facções reacionárias, quando ali ainda se morria de fome, deu à instrução todos os recursos possíveis, a ponto de que, logo no ano seguinte ao da Revolução, a imparcialidade de Wells, apesar de toda sua antipatia pelo comunismo, teve de registrar um serviço de ensino primário melhor que o da Inglaterra. Então, ninguém estranhará 
a solidez dessa obra revolucionária, a mais formidável da história moderna. Parecia, em vista do seu radicalismo, e das infinitas dificuldades, uma revolução condenada ao fracasso; no entanto, multiplicam-se as provas de validez, que já fazem admitir como probante a arriscada experiência do leninismo. De sorte que, haja reação vitoriosa: mudará o cenário político, mas, segundo o universal testemunho, a Rússia antiga desapareceu irremissivelmente, que da obra educativa, empreendida, e em parte realizada pelo bolchevismo, sortiu uma Rússia nova, potente nas energias essenciais do seu povo. 

Essa verificação, nos fatos, comprova deduções irrecusáveis. O homem, como produto da natureza, não existe: é a educação que o forma. Sim, como todo ser vivo ele só pode subsistir adaptado ao meio; mas, no seu caso, a importante adaptação refere-se ao meio moral-social, adaptação que resulta exclusivamente da educação. Tanto vale dizer: é a educação que socializa o homem. E, por isso, ela se torna, cada vez mais, uma função da vida social. Referimonos, explicitamente, à sociedade-nação, representada no Estado, como fórmula ativa dos direitos da coletividade. Então, impõe-se a conclusão: educar não é somente o dever, correlato do direito que tem a criança a ser levada à plena condição de homem; mas, sobretudo, o interesse social-nacional, de melhorarem-se as unidades, a fim de elevar o nível da nação. Somos 36 milhões de brasileiros, gente plástica acessível ao progresso, inteligência alerta, livre de preconceitos, cordialmente unida numa terra farta de recursos... e valemos como qualquer amesquinhada nação de rala população, em esgotamento. É que, nesses 36.000.000 de criaturas, nem 20% estão nas condições de preparo, indispensáveis à plenitude da vida contemporânea. E, se tal perdura, o Brasil se perderá, para a tradição realmente brasileira. Incapacidade sobrenadando à ignorância: não poderia prevalecer uma tal fórmula nacional. Imaginemos, porém, que se formam e se preparam, próprios para o momento, esses milhões de brasileiros... Ah! No dia em que eles forem criaturas capazes de compreender a vida moderna, bem servindo-se daquilo que o progresso lhes tem trazido; nesse dia, os destinos nacionais se dobrarão no sentido do mesmo progresso. E há que começar pela inteligência, início necessário de toda obra educativa: a consciência há de conhecer e aceitar, antes de conformar-se, e isto exige, antes de tudo, que se ilumine a inteligência. Ainda há objeções, quando se alega que a cultura da inteligência também se aproveita para o crime... São conceitos de ignorância, ou de quem se interessa pela ignorância. Nem há mais deslavada mentira do que o afirmar-se que a instrução tenha tornado em qualquer parte a massa popular mais imoral, ou degradada. Aí estão, para provar, os países, onde mais difundida se acha a instrução popular – Suíça, Bélgica, Alemanha, Norte-América, Países escandinavos... Quem ousará afirmar que aí, alfabetizadas, relativamente instruídas, as populações tenham decaído para o crime? 

Além de valorizar as inteligências e definir lucidamente os deveres, a campanha de que resultasse a efetiva instrução, tinha de ser, antes de tudo, uma excelente escola de disciplina e de apuro moral: estudar significa metodizar o esforço, tomar conhecimento de si mesmo, conter-se para o trabalho assíduo e conscientemente livre. No entanto, admitamos que se indague: finalmente, em que consistirá a educação?... Em verdade, não basta repetir o termo, como se nele houvera qualquer mirífica virtude. Para dar a significação da obra educativa e destacar-lhe o valor, é preciso caracterizá-la, definindo-lhe muito nitidamente os motivos, para os efeitos necessários: uma corrente que se orienta com o prosseguir da vida consciente, na afirmação de novos valores humanos. Então, a educação que hoje se reclama tem de ser um treino sincero para as conquistas morais e sociais que se incluem no indiscutido ideal de humanidade, no sentido de uma solidariedade cada vez mais perfeita. A nação, organização natural, viva, faz-se, por igual, do passado, presente e futuro, e é a educação que, guardando do passado o bem já conquistado, o depura, aliviando-o de todo peso morto, cuja conservação é mal, pois significa a própria fixação na morte. A humanidade se realiza em grupos nacionais, cujas glórias verdadeiras são as que incorporam as realizações de progresso e as instituições definidoras da civilização. Ora, a parte primeira da educação consiste na aquisição desse patrimônio – conhecimentos, métodos, fórmulas de ascendente moralidade. Daí, derivará, necessariamente, com o poder de cada nova geração, maior valor do homem, socialização mais perfeita da espécie, concretizada nos grupos nacionais. E temos o progresso assegurado com a consciência mais lúcida do interesse social e da elevação humana, o que significa ascendência do espírito sobre a materialidade, a justiça lavrando nos corações. Com isto, nenhum dos interesses legitimamente nacionais será sacrificado, e os grupos pátrios ganharão na medida em que se eleva o conjunto humano. Mas, tanto será possível sem o preparo educativo? 

A vida social é a atividade harmônica que progride como se complica. Se, ainda humildes, queremos participar do progresso, e, porque somos humildes, temos de educar-nos para o complexo das relações humanas, compensando, na mesma educação, toda a inferioridade de que sofremos. Harmonia instável, móbil, a vida social se torna cada vez mais exigente, mais pedindo ao caráter e ao pensamento, à proporção que avança e se complica. Destarte, hoje, só há possibilidade de garantir os seus destinos, para os grupos nacionais onde cada indivíduo é um fator ativo e consciente. E porque a educação é, assim, função social, eminentemente garantidora, todas as grandes nações a incluem nos serviços nacionais, como dever essencial do Estado. O órgão da nação deve formar as unidades capazes de assegurar-lhe soberania e progresso. De fato, quando a tradição se desdobra em tantas instituições; quando, em cada pátria tantas atividades diversas cooperam, fora impossível ter população homogênea em sentimentos, unida em destinos, sem um preparo especialmente dirigido nesse intuito. Pensemos agora no nosso caso – tanta coisa que nos falta, do indispensável a um povo livre, na vida moderna. Só um grande esforço educativo poderá levar o Brasil à condição de ser, de fato, senhor dos seus destinos. Temos que formar homens, e preparar brasileiros, para uma vida realmente próspera, disciplinarmente livre, na melhor aproximação da verdadeira justiça. Tanto nos é possível, no regime em que vivemos?... Tudo demonstra que os nossos dirigentes não sentem a importância do problema educativo, e, ainda que o sentissem, e soubessem resolvê-lo, não no fariam, que uma população assim feita não toleraria a realidade política em que é governada. No bragantismo aqui implantado, a extinção da escravidão houve que se fazer revolucionariamente: que dizer da extinção da ignorância, em que se escraviza a legítima nação brasileira?...




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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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