sábado, 5 de março de 2022

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (2)

  Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
                              ______________________________________________________




CAPÍTULO III
A   INICIAÇÃO SEXUAL




continuando...



Mais precisamente o que ocorre é que a inquietação virginal não se traduz por uma necessidade precisa: a virgem não sabe exatamente o que quer. Nela sobrevive o erotismo agressivo da infância; seus primeiros impulsos foram preensivos e ela ainda tem o desejo de abraçar, de possuir. A presa que almeja, ela a quer dotada de qualidades que se lhe revelaram como valores, através do gosto, do olfato, do tato, pois a sexualidade não é um campo isolado, prolonga os sonhos e as alegrias da sensualidade; as crianças e os adolescentes de ambos os sexos apreciam o liso, o cremoso, o acetinado, o fofo, o elástico: o que sem desmoronar nem decompor cede à pressão, desliza ante o olhar ou sob os dedos; como o homem, a mulher se encanta com a doçura morna das dunas de areia tantas vezes comparadas com seios, com a roçadura da seda, o aveludado de uma flor ou de um fruto, e a jovem, particularmente, ama as cores desmaiadas, os tules e musselinas vaporosos. Não gosta dos tecidos rugosos, dos sabores ásperos, dos odores ácidos; o que primeiro acariciou e quis, foi, como seus irmãos, a carne materna; em seu narcisismo, em suas experiências homossexuais difusas ou precisas, ela se punha como sujeito, buscava a posse de um corpo feminino. Quando se defronta com o homem, tem na palma das mãos, nos lábios, a vontade de acarinhar ativamente uma presa. Mas o homem com seus músculos duros, sua pele áspera, seu cheiro forte, seus traços grosseiramente marcados não lhe parece desejável, inspira-lhe até repulsa. É o que exprime Renée Vivien quando escreve:

Sou mulher, não tenho direito à beleza
... Tinham-me condenado às feiúras masculinas
Tinham-me proibido teus cabelos, tuas pupilas
Porque teus cabelos são compridos e cheios de odores (1).

(1) Je suis femme, je n'ai pas droit à la beauté . . . On m'avait condamnée aux laideurs masculines On m'avait interdit tes cheveux, tes prunelles Parce que tes cheveux sont longs et pleins d'odeurs.


Se a tendência preensiva, possessiva permanece a mais forte, a mulher se orientará para a homossexualidade, como Renée Vivien. Ou então se apegará a homens aos quais pode tratar como mulheres: tal é o caso da heroína de Monsieur Vénus de Rachilde, que compra um amante e se compraz em acariciá-lo apaixonadamente mas não se deixa deflorar por ele. Há mulheres que gostam de acariciar rapazes de 13 ou 14 anos e se recusam ao homem feito. Mas já vimos que na maioria das mulheres se desenvolveu também, desde a infância, uma sexualidade passiva: a mulher gosta de ser abraçada, acariciada, e, principalmente após a puberdade, almeja tornar-se carne nos braços de um homem; a este é que cabe normalmente o papel de sujeito, ela o sabe; "um homem não precisa ser bonito", repetiram-lhe amiúde; ela não deve procurar nele as qualidades inertes de um objeto e sim a potência e a força viril. Por isso, ei-la dividida em si mesma: aspira a um amplexo robusto que a metamorfoseará em coisa estremecida; mas a rudez e a força são também resistências ingratas que a magoam. Sua sensualidade localiza-se na pele e na mão ao mesmo tempo. E as exigências de uma são em parte opostas às de outra. Na medida do possível, ela escolhe um compromisso; entrega-se a um homem viril mas bastante jovem e sedutor para ser um objeto desejável; num belo adolescente ela poderá encontrar os atrativos que deseja; no Cântico dos Cânticos há simetria entre a deleitação da esposa e a do esposo; ela apreende nele o que ele procura nela; a flora e a fauna terrestre, as pedras preciosas, os regatos, as estrelas. Mas ela não tem os meios de possuir esses tesouros: sua anatomia condena-a a permanecer inábil e impotente como um eunuco. O desejo de posse aborta na falta de um órgão em que possa encarnar-se. E o homem recusa o papel passivo. Muitas vezes, de resto, as circunstâncias levam a jovem a tornar-se presa de um homem cujas carícias a comovem mas que ela não tem prazer em olhar nem em acariciar por sua vez. Não se disse suficientemente que na repugnância que se mistura a seus desejos não há apenas medo da agressividade masculina como também um profundo sentimento de frustração: a volúpia deverá ser conquistada contra o impulso espontâneo da sensualidade, ao passo que no homem a alegria do tato, da vista, funde-se com o prazer sexual propriamente dito.

Os próprios elementos do erotismo passivo são ambíguos. Nada mais equívoco do que um contato. Muitos homens que, sem nojo algum, trituram entre as mãos qualquer matéria, detestam que ervas ou bichos os toquem; roçada pela seda, o veludo, a carne feminina ora freme agradavelmente ora se eriça: lembro-me de uma amiga de juventude que à simples vista de um pêssego se arrepiava toda; da perturbação à cócega, do agastamento ao prazer, a passagem é fácil: braços enlaçando um corpo podem ser refúgio e proteção, mas encarceram também e abafam. Na virgem essa ambiguidade perpetua-se por causa do paradoxo de sua situação: o órgão em que terminará sua metamorfose é selado. O apelo incerto e ardente de sua carne espalha-se pelo corpo inteiro, salvo no lugar em que o coito deve realizar-se. Nenhum órgão permite à virgem satisfazer seu erotismo ativo; não tem a experiência vivida de quem a condena à passividade.

Entretanto, essa passividade não é pura inércia. Para que a mulher se perturbe é preciso que se produzam fenômenos positivos em seu organismo: inervação das zonas erógenas, intumescência de certos tecidos erécteis, secreções, elevação da temperatura, aceleração do pulso e da respiração. 0 desejo e a volúpia exigem dela, como do homem, um dispêndio vital; receptiva, a necessidade feminina é em certo sentido ativa, manifesta-se por um aumento do tono nervoso e muscular. As mulheres apáticas e lânguidas são sempre frias; trata-se de saber se existe frigidez constitucional, e em relação às capacidades eróticas da mulher os fatores psíquicos desempenham seguramente um papel preponderante; mas é certo que as insuficiências fisiológicas, uma vitalidade empobrecida, se exprimem também pela indiferença sexual. Inversamente, se a energia vital se despende em atividades voluntárias, no esporte, por exemplo, não se integra na necessidade sexual: as escandinavas são sadias, robustas e frias. As mulheres "temperamentais" são as que conciliam o langor ao "fogo", como as italianas ou as espanholas, isto é, cuja ardente vitalidade se funde por inteira na carne. Fazer-se objeto, fazer-se passiva não é a mesma coisa do que ser um objeto passivo: uma mulher amorosa não é nem uma sonsa nem uma morta; há nela um impulso que sem cessar se abate e se renova; é o impulso rendido que cria o encantamento em que o desejo se perpetua. Mas o equilíbrio entre o ardor e o abandono é fácil de destruir. O desejo do macho é tensão: pode invadir um corpo em que nervos e músculos se retesam; atitudes e gestos que exigem do organismo uma participação voluntária não o contrariam e, muitas vezes, ao contrário, servem- -no. Todo esforço voluntário, inversamente, impede a carne feminina de "se possuir"; é por isso que espontaneamente (2) a mulher recusa as formas de coito que solicitam dela trabalho e tensão; mudanças demasiado bruscas, demasiado numerosas de posição, a exigência de atividades conscientemente dirigidas — gestos ou palavras — destroem o encantamento. A violência das tendências desencadeadas pode provocar crispação, contração, tensão: há mulheres que arranham, mordem, arqueiam o corpo com uma força inesperada; mas esses fenômenos só se produzem quando é atingido certo paroxismo e este só se atinge se primeiramente a ausência de qualquer injunção — física ou moral — permite uma concentração sexual de toda a energia viva. Isso quer dizer que não basta à jovem deixar fazerem; dócil, lânguida, ausente, não satisfaz o parceiro nem se satisfaz. É-lhe solicitada uma participação ativa numa aventura que nem seu corpo virgem nem sua consciência atopetada de tabus, proibições, preconceitos, exigências, quer de maneira positiva.

(2) Veremos adiante que pode haver razões de ordem psicológica que modificam sua atitude imediata.

Nas condições que acabamos de descrever, compreende-se que a iniciação erótica da mulher não é fácil. Vimos que acontece frequentemente que incidentes verificados na infância ou na juventude engendrem nela profundas resistências; estas são por vezes insuperáveis: o mais das vezes a jovem esforça-se por desprezá-las, mas surgem nela então conflitos violentos. Uma educação severa, o medo do pecado, o sentimento de culpabilidade em relação à mãe criam barreiras poderosas. A virgindade é tão valorizada em muitos meios que perdê-la fora do casamento legítimo parece um verdadeiro desastre. A jovem que cede por fraqueza ou surpresa pensa que se acha desonrada. A "noite de núpcias", que entrega a virgem a um homem que em geral ela não escolheu realmente, e que pretende resumir em algumas horas — ou instantes — toda a iniciação sexual — não é tampouco uma experiência fácil. De uma maneira geral, toda "passagem" é angustiante por causa de seu caráter definitivo, irreversível: tornar-se mulher é romper sem apelo com o passado: mas essa passagem é a mais dramática; não cria somente um hiato entre ontem e hoje, arranca também a jovem do mundo imaginário em que se desenrolava parte importante de sua existência e joga-a no mundo real. Por analogia com as corridas de touros, Michel Leiris dá ao leito nupcial a denominação de "uma arena de verdade"; é para a virgem que a expressão assume seu sentido mais completo e temível. Durante o período do noivado, do flerte, da corte, por rudimentar que tenha sido, ela continuou a viver em seu universo habitual de cerimônia e sonho; o pretendente falava uma linguagem romanesca ou pelo menos cortês: era ainda possível trapacear. E ei-la repentinamente vista por olhos verdadeiros, segura por mãos de verdade: é a implacável realidade desses olhares e desses amplexos que a apavora.

O destino anatômico e os costumes conferem ao homem o papel de iniciador. Sem dúvida a primeira amante é também uma iniciadora do jovem virgem; mas ele possui uma autonomia erótica que a ereção manifesta claramente; a amante não faz senão entregar-lhe em sua realidade o objeto que ele já ambicionava: um corpo de mulher. A jovem tem necessidade do homem para que seu próprio corpo lhe seja revelado: sua dependência é muito mais profunda. Desde suas primeiras experiências, há geralmente no homem atividade, decisão, ou porque pague a parceira ou porque a corteje e solicite mais ou menos sumariamente. Ao contrário, na maioria dos casos, a jovem é cortejada e solicitada. Mesmo quando é a mulher quem provoca o homem em primeiro lugar, este é que dirige as relações entre ambos; o homem é muitas vezes mais velho, mais sabido e admite- se que é quem tem a responsabilidade dessa aventura nova para ela; o desejo masculino é mais agressivo, mais imperioso. Amante ou marido, é ele quem a conduz ao leito onde só resta entregar- se e obedecer. Mesmo que tenha aceito essa autoridade em pensamento, é tomada de pânico no momento em que ele a exerce concretamente. Tem primeiramente medo do olhar em que se abisma; seu pudor é em parte aprendido, mas tem também raízes profundas; homens e mulheres conhecem todos a vergonha da carne. Em sua pura presença imóvel, em sua imanência injustificada, a carne existe ante o olhar de outrem como a absurda contingência da facticidade, e no entanto a carne é si-mesmo: quer-se impedi-la de existir para outrem; quer-se negá-la. Há homens que dizem que não podem mostrar-se nus diante de uma mulher senão em estado de ereção. Com efeito, a carne torna-se atividade, potência, o sexo não é mais objeto inerte, mas, como a mão ou o rosto, a ereção, a expressão imperiosa de uma subjetividade. É uma das razões pelas quais o pudor paralisa muito menos os jovens do que as mulheres; pelo fato de terem um papel agressivo, são menos expostos a ser olhados, e se o são, receiam pouco ser julgados porque não são qualidades inertes que suas amantes exigem deles: é antes para a potência amorosa e a habilidade em dar prazer que se voltarão seus complexos; podem ao menos defender-se, tentar ganhar a partida. À mulher não é dado transformar a carne em vontade; desde que não a esconde mais, entrega-a sem defesa; mesmo se deseja carícias, revolta-se contra a ideia de ser vista e apalpada, tanto mais quanto os seios, as nádegas, são uma proliferação particularmente carnal; muitas mulheres adultas mal suportam ser vistas de costas, ainda que vestidas; podemos imaginar que resistências precisa superar uma amorosa ingênua para consentir em se mostrar. Sem dúvida uma Frinéia não teme os olhares, põe-se nua, ao contrário, com orgulho: sua beleza veste-a. Ainda que igual a Frinéia, uma jovem não o sabe nunca com certeza; não pode ter o orgulho arrogante de seu corpo enquanto os sufrágios masculinos não confirmam sua jovem vaidade. E é o que a apavora; o amante é mais temível ainda do que um olhar: é um juiz, vai revelá-la a si mesma em sua verdade; mesmo apaixonada pela própria imagem, uma jovem duvida de si no momento do veredito masculino. Eis por que reclama a escuridão, esconde-se nos lençóis. Quando se admirava ao espelho, sonhava ainda: sonhava-se através de olhos de homem; agora esses olhos estão presentes, impossível trapacear, impossível lutar: é uma misteriosa liberdade que decide e a decisão é inapelável. Na prova real da experiência erótica, as obsessões da infância e da adolescência vão enfim dissipar-se ou confirmar- se para sempre; muitas moças sofrem por ter pernas robustas demais, seios demasiados discretos ou pesados, ancas magras, uma verruga; ou temem alguma deformação secreta.

Toda jovem alimenta toda espécie de terrores ridículos que mal ousa confessar, diz Stekel (A Mulher Fria). Não se imagina quantas moças sofrem da obsessão de serem fisicamente anormais e se atormentam secretamente por não terem a certeza de ser normalmente constituídas. Certa jovem, por exemplo, acreditava que sua "abertura inferior" não estava no lugar. Imaginava que as relações sexuais se realizavam pelo umbigo. Sentia-se infeliz por ter o umbigo fechado e não poder nele enfiar um dedo sequer. Outra pensava ser hermafrodita. Outra acreditava-se estropiada e incapaz de manter relações sexuais.





continua página 120...

_____________________

Leia também:


O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (9)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (8)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (7)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (3)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (3)



______________________



As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"


Nenhum comentário:

Postar um comentário