sexta-feira, 4 de março de 2022

mulheres descalças: é difícil ser dono

 mulheres descalças



é difícil ser dono
Ensaio 127Bzz – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


a vida à toa pra uns é dum feitio com cara de boi e o resto parecido com gente, boi sem curiosidade ou alegria, boi sem pensamento bão, ardendo de encantamento pelo próprio mugido, escondido pelos mato pastando ou pelos canto cachimbando, escondendo sua fachada pavorosa: meio gente, meio boi

a vida desprezível pra otros é dotro jeito, parece castigo ruim, agitado e enfurecido, é vida esparramando tristura e malvadeza, espiando, destampando e jogando as desgraça e infortúnio da fome e da morte, na villa

no modo divê dos dono de tudo, desembestado ou remansoso, uspretu é à toa, desprezível, astuto e traiçoêro, corpo mole pru trabáio, fujão qui leva açoite – mais num endireita –, molambo qui num merece desculpa e precisa sê castigado como refugo qui num pensa, qui num existe

pretu na villa num tem paz! num tem voz! num tem corpo, mais tem senzala e o laço do cativêro no gargalo, conversa quando muntu nas quitanda, nas cacimba, conversa de pretu e segredo das senzala

na villa, quando num é vida à toa, é vida desprezível, a brancura num tem otro feitio divê, num qué tê, num pode tê, tudo mais na villa tem um, dois, trêis ou mais feitio disivê, mais ali, uspretu qui num se paga é refugo à toa e desprezível

no modo caridoso quius branco se lambuza, nas palavra qui eles anuncia a paz – O caminho da razão sobre a superstição! –, uspretu precisa sê amordaçado e acorrentado no cercado, A negrada não tem corpo, e pior, num sabem que não têm corpo, por isso, não sentem dor, Não diga isso, sinhô Augusto, A escravidão sempre existiu, dona Rosinha, É um pecado, E nunca vai deixar de existir, fazê uspretu sê menos, fazê a muié creditá sê menos, Deus é justo, sinhô Augusto, não vai deixar assim para sempre, Assim é que é – e será para todo o sempre – enquanto a Villa durar e gente de bem quiser viver em paz, simplicidade e tranquilidade!

Meu esposo, é mesmo preciso tanto sofrimento?

Dona Rosinha, a causa de tanta ferida e salmora é da negrada. É o desejo e o apego do molambo por uma vida que não pode ter.

O sinhô meu esposo não acha que está sendo muito cruel?

a risada do siô augusto cortô a sala pianística como uma foice de diamante espalhando respingos de medo, fazendo brotar um sortimento de pesadelos maus

Dona Rosinha, mãe cuidadosa e carinhosa, não se deixe enganar, a prosperidade da Villa e arredores se alicerça nos escravos comprados e fecundados – O feitor deitar com as negras é um benefício para todos –, e também, na multiplicação dos bois nas estâncias, os dono de tudo usa as palavra como dono, num usa medida, exige respeito, mansidão, docilidade e cortesia, nunca é ou vai sê diferente, pelo menos, enquanto eles tivê a força e a fidelidade cachorra dos capitão-do-mato pra empunhá a chibata, fechá a dobradiça das corrente e usá a pólvora no seu gosto, dia e noite, quente e frio, senhor e escravo, é a lei divina, dona Rosinha, nas palavra do siô augusto, pra tê alívio naquela vida cercada dos dono é preciso sê justo e conciliadô, uspretu precisa obedecê e sabê do lugá qui eles fica, abrí mão das vontade qui pode querê, Olhe a praça, dona Rosinha, tudo tem dono, eles tem dono, a praça tem dono, se alguma coisa não dá certo, a culpa é da negrada preguiçosa e desalmada – sem alma porque foi arrancada e enfeitiçada pelos demônios da encruzilhada. Negro é negro e para bicho pouco falta!

um escravista de nariz torcido... metade boi, metade gente desajeitada cheirando o próprio mofo

Ninguém obriga ninguém fugir. E adiantou fugir? Só aumentou os castigos para o negrinho escapista. É bobagem isso de querer desertar das suas obrigações. Depois, é tarde demais para arrependimentos. O fujão só piora a sua situação com outras injúrias e expiação. Essa negrada ignorante não entende que isso afeta a vida de todos?

os dois tava no parapeito da janela panorâmica, um do lado dotro, oiando a movimentação na praça, a correria atrás do fujão, O dono – que não se importa de fazer o que é preciso fazer – quer manter as suas coisas. Ele pagou e quem paga é o dono, é assim, e pronto. Não vai perdoar que o fujão se ausentou sem permissão. Dona Rosinha, vou lhe confessar: é difícil ser dono, às vezes, é preciso esquecer o coração e tomar a decisão que a razão exige.

dona rosinha arriscô oiá pru seu dono, usô a borda das vista, num arriscô oiá de frente, ela tinha suas razão



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é bão lê, tumbém... sequisé:

histórias de avoinha: Sinto-me tão só
histórias de avoinha: um império invisível
histórias de avoinha: uma sombra sem corpo não cruza as pernas
histórias de avoinha: Bagaço hipócrita!
histórias de avoinha: a vaga de marido
histórias de avoinha: a lua na escuridão
histórias de avoinha: chegô no piano
histórias de avoinha: o silêncio no brejo dos pensamento
histórias de avoinha: borboleta preta
histórias de avoinha: Obrigada, Açunta!
histórias de avoinha: ôum velório de vida
histórias de avoinha: o feitiço das trança
histórias de avoinha: o siô ajeitado e as duas miúda
histórias de avoinha: Simão
mulheres descalças: é mansa...
mulheres descalças: Mas você devia!
mulheres descalças: Dez sacas, o amigo concorda?
mulheres descalças: café ralo e mandioca cuzida
mulheres descalças: o descuido da miúda
mulheres descalças: a traste
mulheres descalças: até quando
mulheres descalças: uma sombra silenciosa
mulheres descalças: a perigosa é ela
mulheres descalças: uma resposta deboche
mulheres descalças: gostar sem resistir
mulheres descalças: buraco do barranco
mulheres descalças: caridade é uma brisa morna
mulheres descalças: hipócrita, egoísta e cega d’ódio
mulheres descalças: a pulícia pública
mulheres descalças: a vida num é simples
mulheres descalças: na solidão sozinha
mulheres descalças: usdois contra cadum
mulheres descalças: fofocando comigo mesma
mulheres descalças: felicidade não existe
mulheres descalças: um gosto diódio
mulheres descalças: o café esfriou
mulheres descalças: é difícil ser dono
mulheres descalças: o pecúlio do Theodoro


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