Gabriel Garcia Márquez
(12.1)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
AS ÚLTIMAS FÉRIAS de Meme coincidiram com o luto pela morte do Coronel Aureliano Buendía. Na casa fechada não havia lugar para festas. Falava-se por sussurros, comia-se em silêncio, rezava-se o rosário três vezes por dia e até os exercícios de clavicórdio, no calor da sesta, tinham uma ressonância fúnebre. Apesar da sua secreta hostilidade contra o coronel, foi Fernanda quem impôs o rigor daquele luto, impressionada com a solenidade com que o Governo exaltou a memória do inimigo morto. Aureliano Segundo, como de costume, voltou a dormir em casa durante as férias da filha; e alguma coisa Fernanda deve ter feito para recuperar os seus privilégios de esposa legítima, porque no ano seguinte Meme encontrou uma irmãzinha recém-nascida, a quem batizaram, contra a vontade da mãe, com o nome de Amaranta Úrsula.
Meme terminara os estudos. O diploma que a credenciava como concertista de clavicórdio foi ratificado pelo virtuosismo com que executou temas populares do século XVII na festa organizada para celebrar a sua formatura e com a qual se pôs fim ao luto. Os convidados admiraram, mais do que a arte, a sua estranha dualidade. Seu temperamento frívolo e até um pouco infantil não parecia adequado a nenhuma atividade séria, mas quando se sentava ao clavicórdio se transformava numa moça diferente, a quem a maturidade imprevista trazia um ar de adulto. Sempre fora assim. Na verdade não tinha uma vocação definida, mas conseguira as notas altas através de uma disciplina inflexível, para não contrariar a mãe. Poderiam ter-lhe imposto a aprendizagem de outro ofício e os resultados seriam os mesmos. Desde menina a incomodava o rigor de Fernanda, o seu costume de decidir pelos outros, e teria sido capaz de um sacrifício muito mais duro que as lições de clavicórdio, só para não tropeçar na sua intransigência. No ato de encerramento, teve a impressão de que o pergaminho com letras góticas e maiúsculas ornamentadas a liberava de um compromisso que tinha aceito não tanto por obediência quanto por comodidade, e acreditou que a partir de então nem a teimosa Fernanda tornaria a se preocupar com um instrumento que até as freiras consideravam como um fóssil de museu. Nos primeiros anos pensou que os seus cálculos estavam errados, porque depois de ter feito adormecer meia cidade não só na sala de visitas, mas também em quantos saraus beneficentes, festas escolares e comemorações patrióticas foram celebrados em Macondo, sua mãe continuou convidando a todo recém-chegado que supunha capaz de apreciar as virtudes da filha. Só depois da morte de Amaranta, quando a família voltou a se fechar por algum tempo no luto, é que Meme pôde trancar o clavicórdio e esquecer a chave em algum armário, sem que Fernanda se incomodasse em verificar em que momento nem por culpa de quem ela se havia extraviado. Meme resistiu às exibições com o mesmo estoicismo com que se consagrara à aprendizagem. Era o preço da sua liberdade. Fernanda estava tão satisfeita com a sua docilidade e tão orgulhosa da admiração que a sua arte despertava que nunca se opôs a que tivesse a casa sempre cheia de amigas e passasse a tarde nas plantações e fosse ao cinema com Aureliano Segundo ou com senhoras de confiança, sempre que o filme tivesse sid o autorizado no púlpito pelo Padre Antonio Isabel. Naqueles momentos de descontração é que se revelavam os verdadeiros gostos de Meme. A sua felicidade estava no outro extremo da disciplina, nas festas ruidosas, nos fuxicos de namoro, em trancar-se prolongadamente com as amigas em cantos onde aprendiam a fumar e conversavam de assuntos de homem, e onde uma vez passaram a mão em três garrafas de rum e acabaram nuas, medindo e comparando as partes do corpo. Meme não se esqueceu nunca da noite em que entrou em casa mastigando alcaçuz e, sem que percebessem a sua perturbação, sentouse à mesa em que Fernanda e Amaranta jantavam sem se dirigir a palavra. Tinha passado duas horas tremendas no quarto de uma amiga, chorando de rir e de medo, e no outro lado da crise encontrara o estranho sentimento de valentia que lhe faltara para fugir do colégio e dizer à mãe, com estas ou com outras palavras, que ela podia muito bem tomar uma lavagem de clavicórdio. Sentada na cabeceira da mesa, tomando um caldo de galinha que lhe caía no estômago como um elixir de ressurreição, Meme viu, então, Fernanda e Amaranta envoltas no halo acusador da realidade. Teve que fazer um esforço enorme para não jogar na cara delas os seus gestos, a sua pobreza de espírito, os seus delírios de grandeza. Desde as segundas férias que sabia que o pai só vivia em casa para salvar as aparências, e conhecendo Fernanda como conhecia, e tendo dado um jeito, mais tarde, de conhecer Petra Cotes, dera razão ao pai. Ela também teria preferido ser filha da concubina. No embotamento do álcool, Meme pensava com deleite no escândalo que teria provocado se, naquele momento, tivesse expressado os seus pensamentos e foi tão intensa a satisfação intima da picardia que Fernanda percebeu.
— O que é que há com você? — perguntou.
— Nada — respondeu Meme. — É que só agora descobri como eu amo
vocês.
Amaranta assustou-se com a evidente carga de ódio que trazia a
declaração. Mas Fernanda ficou tão comovida que pensou que ia ficar louca
quando Meme acordou à meia-noite com a cabeça estalando de dor e
sufocando em vômitos de bile. Deu-lhe um frasco de óleo de rícino, aplicou-lhe cataplasma no ventre e bolsas de gelo na cabeça, e obrigou-a a seguir a
dieta e o repouso de cinco dias ordenados pelo novo e extravagante médico
francês que, depois de examiná-la durante mais de duas horas, chegou à
conclusão nebulosa de que tinha uma perturbação própria de mulher.
Abandonada pela valentia, num miserável estado de desmoralização, não lhe
restou outro recurso senão aguentar. Úrsula, já completamente cega, mas
ainda ativa e lúcida, foi a única que intuiu o diagnóstico exato. “Para mim”,
pensou, “estas são as mesmas coisas que acontecem com os bêbados.” Mas
não só recusou a idéia, como também reprovou a leviandade do
pensamento. Aureliano Segundo sentiu a consciência doendo quando viu o
estado de prostração de Meme e prometeu a si mesmo se ocupar mais dela
no futuro. Foi assim que nasceu a relação de alegre camaradagem entre o
pai e a filha, que o livrou por algum tempo da amarga solidão das festanças e
livrou a ela da autoridade de Fernanda sem ter que provocar a crise
doméstica que já parecia inevitável. Aureliano Segundo passou a adiar
qualquer compromisso para estar com Meme, para levá-la ao cinema ou ao
circo, e lhe dedicava a maior parte do seu ócio. Nos últimos tempos, o estorvo
da obesidade absurda que já não lhe permitia amarrar os cordões dos
sapatos, e a satisfação abusiva de toda espécie de apetites, tinham começado
a lhe azedar o temperamento. A descoberta da filha restituiu-lhe a antiga
jovialidade e o prazer de estar com ela o ia afastando pouco a pouco da
dissipação. Meme despontava para uma idade frutífera. Não era bela, como
nunca o fora Amaranta, mas em compensação era simpática, simples, e
tinha a virtude de causar boa impressão desde o primeiro momento. Tinha
um espírito moderno que feria a antiquada sobriedade e o mal dissimulado
coração avaro de Fernanda e que, pelo contrário, Aureliano Segundo sentia
prazer em patrocinar. Foi ele quem resolveu tirá-la do quarto que ocupava
desde menina e onde os olhos assombrados dos santos continuavam
alimentando os seus terrores de adolescente, e mobiliou para ela um
aposento com uma cama de dossel, uma penteadeira ampla e cortinas de
veludo, sem perceber que estava fazendo uma segunda versão do dormitório
de Petra Cotes. Era tão pródigo com Meme que nem sequer sabia quanto
dinheiro lhe dava, porque ela mesma o tirava dos seus bolsos; e a mantinha
em dia com quanta novidade embelezadora chegasse aos armazéns da
companhia bananeira. O quarto de Meme se encheu de pedra-pomes para
lustrar as unhas, enroladores de cabelo, polidores de dentes, colírios para
fazer o olhar lânguido, e tantos e tão inovadores cosméticos e aparelhos de
beleza que cada vez que Fernanda entrava no dormitório se escandalizava
com a ideia de que a penteadeira da filha devia ser igual à das matronas
francesas. Entretanto, Fernanda andava nessa época com o tempo dividido
entre a pequena Amaranta Úrsula, que era caprichosa e doentia, e uma
emocionante correspondência com os médicos invisíveis. Por isso, quando
notou a cumplicidade do pai com a filha, a única promessa que arrancou de
Aureliano Segundo foi a de que nunca levaria Meme à casa de Petra Cotes.
Era uma advertência sem sentido, porque a concubina estava tão amolada
com a camaradagem do amante com a filha que não queria saber de nada
com ela. Atormentava-a um temor desconhecido, como se o instinto lhe
indicasse que Meme, bastando querer, poderia conseguir o que Fernanda
não pudera: privá-la de um amor que já considerava assegurado até a morte.
Pela primeira vez, Aureliano Segundo teve que aguentar as caras fechadas e
as violentas ladainhas da concubina, e temeu até que os seus levados e
trazidos baús fizessem o caminho de volta para a casa da esposa. Isto não
aconteceu. Ninguém conhecia melhor um homem que Petra Cotes o seu
amante, e ela sabia que os baús ficariam no lugar para onde tivessem sido
mandados, porque se havia uma coisa que Aureliano Segundo detestava era
complicar a vida com retificações e mudanças. De modo que os baús ficaram
onde estavam e Petra Cotes se empenhou em reconquistar o homem afiando
as únicas armas com que a filha não podia lutar. O que foi também um
trabalho desnecessário, porque Meme nunca tivera o propósito de intervir
nos assuntos particulares do pai e certamente se o fizesse seria em favor da
concubina. Não lhe sobrava tempo para amolar ninguém. Ela mesma varria o
quarto e arrumava a cama, como lhe ensinaram as freiras. De manhã se
ocupava da sua roupa, bordando na varanda ou cosendo na velha máquina
de manivela de Amaranta. Enquanto os outros faziam a sesta, praticava o
clavicórdio durante duas horas, sabendo que o sacrifício diário manteria
Fernanda calma. Pelo mesmo motivo, continuava oferecendo concertos em
bazares eclesiásticos e festas escolares, embora as solicitações fossem cada vez
menos frequentes. Á tardinha se arrumava, punha as suas roupas simples e
as suas duras botinas e, se não tinha nada para fazer com o pai, ia à casa de
suas amigas, onde ficava até a hora do jantar. Era excepcional que Aureliano
Segundo não fosse buscá-la para levá-la ao cinema.
Entre as amigas de Meme havia três jovens norte-americanas que
tinham rompido o cerco do galinheiro eletrificado e feito amizade com as
moças de Macondo. Uma delas era Patricia Brown. Agradecido à
hospitalidade de Aureliano Segundo, o Sr. Brown abriu as portas da sua casa
a Meme e a convidou para os bailes de sábado, que eram os únicos em que os
ianques se misturavam com os nativos. Quando Fernanda soube, esqueceu-se por um momento de Amaranta Úrsula e dos médicos invisíveis e armou
todo um melodrama. “Imagine”, disse a Meme, “o que vai pensar o coronel
no túmulo.” Procurava, é claro, o apoio de Úrsula. Mas a anciã cega, ao
contrário do que todos esperavam, considerou que não havia nada de
reprovável em Meme assistir aos bailes e cultivar amizade com as norte-americanas da sua idade, desde que conservasse a firmeza do seu caráter e
não se deixasse converter à religião protestante. Meme captou muito bem o
pensamento da tataravó e, no dia seguinte aos bailes, se levantava mais cedo
do que de costume para ir à missa. A oposição de Fernanda persistiu até o
dia em que Meme a desarmou com a notícia de que os norte-americanos
queriam ouvila tocar clavicórdio. O instrumento foi tirado uma vez mais de
casa e levado para a do Sr. Brown, onde efetivamente a jovem concertista
recebeu os aplausos mais sinceros e as felicitações mais entusiastas. A partir
de então não só a convidavam para os bailes, mas também para os banhos
dominicais na piscina e para almoçar uma vez por semana. Meme aprendeu
a nadar como uma profissional, a jogar tênis e a comer presunto de Virgínia
com fatias de abacaxi. Entre bailes, piscina e tênis, viu-se de repente falando
inglês. Aureliano Segundo se entusiasmou tanto com os progressos da filha
que comprou de um caixeiro viajante uma enciclopédia inglesa em seis
volumes e com numerosas ilustrações a cores que Meme lia nas horas vagas.
A leitura ocupou a atenção que antes destinava aos fuxicos de namoro ou
aos segredos experimentais com as suas amigas, não porque o impusesse
como disciplina, mas porque já tinha perdido todo o interesse em comentar
mistérios que eram do domínio público. Recordava a bebedeira como uma
aventura infantil e lhe parecia tão divertida que contou a Aureliano
Segundo, a quem pareceu mais divertida ainda. “Se a sua mãe soubesse”,
disse a ela, sufocando de rir, como dizia sempre que ela lhe fazia uma
confidência. Ele lhe havia feito prometer que com essa mesma intimidade
pô-lo-ia a par do seu primeiro namoro e Meme lhe havia contado que
simpatizava com um cabelo-de-fogo norte-americano que tinha vindo passar
as férias com os pais. “Que horror”, riu Aureliano Segundo. “Se a sua mãe
soubesse.” Mas Meme contou também que o rapaz tinha regressado ao seu
país e não dera mais sinal de vida. A sua maturidade de espírito assegurou a
paz doméstica. Aureliano Segundo, então, dedicava mais horas a Petra Cotes
e, embora já o corpo e a alma não estivessem para farras como as de antes,
não perdia ocasião de promovê-las e desencafuar o acordeão, que já tinha
algumas teclas amarradas com cordões de sapatos. Em casa, Amaranta
bordava a sua interminável mortalha e Úrsula se deixava arrastar pela
decrepitude até o fundo das trevas, onde a única coisa que continuava
sendo visível era o espectro de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro.
Fernanda consolidou a sua autoridade. As cartas mensais ao filho José
Arcadio não traziam mais sequer uma linha de mentira e só escondia dele a
sua correspondência com os médicos invisíveis, que lhe haviam
diagnosticado um tumor benigno no intestino grosso e a estavam
preparando para uma intervenção telepática.
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Cem Anos de Solidão (12.1) - As últimas férias
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