Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
SEGUNDO ATO CENA 7
Entra em cena a passeata, comandada por João Alegre; Vitória caminha em direção à multidão
VITÓRIA
Muito bem, minha gente, vamos todos pra casa, vamos circular que a
passeata está suspensa. Estão me ouvindo? Acabou a passeata! Ei, pessoal! Não
tem mais passeata! Vocês estão surdos? Não tem passeata! Não tem. . .
A passeata atropela Vitória e segue em frente; Duran tenta socorrer Vitória
mas ê arrastado; Chaves dá um tiro para o alto, em vão, e se esconde; enfim,
Vitória levanta-se e vai ao proscênio VITÓRIA
Luzes! Eu pedi luzes! Suspende o espetáculo! Luzes na plateia! Ei, vocês aí
em cima na técnica! Pára tudo! Acende a plateia!
Luzes na plateia; a passeata para
VITÓRIA
Mas que absurdo! Que palhaçada! Eu não saí de casa pra vir aqui passar
vexame! Quem é o responsável por essa bagunça? Eu vou me queixar no Jornal
Nacional. Que é que vocês estão pensando? Cadê o produtor?
DURAN/PRODUTOR
Estou aqui, dona Vitória, desculpe. Eu não sei como foi que isso aconteceu.
A senhora está bem?
VITÓRIA
Eu estou ótima, e a tua mãe? Exijo satisfações!
DURAN/PRODUTOR
Pois é, essa baderna não estava no roteiro aprovado por todos nós. . . Ô,
"seu" João Alegre, quer dar um pulinho aqui?
VITÓRIA
Seu sem-vergonha! Preto safado! Filho dum cão!
JOÃO ALEGRE
Sabe como é, dona? A senhora entende. . .
VITÓRIA
Eu não entendo nada!
JOÃO ALEGRE
A gente tá na onda do partido alto. Então, o puxador dá o mote e nego vai
tirando o que pintar na mentalidade, sacou? É uma jogada que dá um pé na
quadra e eu achei que no teatro ficava original. Mas não tive a intenção de ofender
a madame. . .
VITÓRIA
Tua intenção era me mandar daqui pro Miguel Couto!
JOÃO ALEGRE
Não, madame, nunca, de jeito nenhum! Foi só um improviso, sem maldade.
. .
DURAN/PRODUTOR
Dona Vitória, eu não sei o que dizer. Talvez o melhor fosse a gente
esquecer o incidente e recomeçar o final da peça do jeito que tava combinado.
VITÓRIA
Eu, por mim, ia embora imediatamente. Só continuo aqui por respeito a
esse público maravilhoso que pagou ingresso. . . Ô, você! Como é mesmo o nome
do crioulo? Vamos fazer um gran finale decente, mas tem que ser igualzinho ao
ensaio geral!
JOÃO ALEGRE
Ah, isso não dá, não senhora. O que tá feito, tá feito. Partideiro que se
respeita não volta a palavra atrás.
PASSEATA
Viva! Agüenta firme! Boa, João! Salve João Alegre!
VITÓRIA
Que é isso?
DURAN
Tá pensando que é malandro, rapaz?
VITÓRIA
Vai juntar o teu gado e recomeçar o happy end! É pra já!
JOÃO ALEGRE
Vou não senhora.
PASSEATA
Grande, João! É o maior!
JOÃO ALEGRE
Eu também tenho um nome pra zelar.
PASSEATA
É isso mesmo! Segura as pontas, João! Viva!
DURAN/PRODUTOR
Você não pode fazer isso, João. Afinal, teatro é cultura!
JOÃO ALEGRE
Vambora pra rua, pessoal!
PASSEATA
Vamos lá! Apoiado! Já ganhou! Viva o João!
DURAN/PRODUTOR
Está certo, João Alegre, você venceu. A carreira é sua e você tem todo o
direito de acabar com ela. Mas primeiro tem que me acompanhar ali na
administração, que é pra formalizar a rescisão do contrato.
JOÃO ALEGRE
Com todo o prazer, doutor. Pessoal, eu volto já!
DURAN/PRODUTOR
É uma pena. Com um futuro tão promissor. . .
VITÓRIA
Podia até estourar na Broadway. . .
DURAN/PRODUTOR
Ia levantar aquela verba na Funarte. . .
VITÓRIA
Ainda ia ganhar o Oscar!
(Saem Duran, Vitória e João Alegre)
INTERMEZZO Luzes gerais no palco e na plateia
LÚCIA (Entra)
Que é que tá acontecendo, hein?
TERESINHA
O autor se meteu a besta e resolveu embananar o happy end. Daí os
figurantes embarcaram na palhaçada. . .
BEN
Figurante é a mãe! Coadjuvante!
TERESINHA
Vamos, façam alguma coisa aí vocês! Tem que entreter o público!
MAX
Vamos, moçada! The show must go on!
SHIRLEY
Que é que eles tão querendo mais? Tô há quase três horas me esgoelando
neste palco!
JUSSARA
Eles tão pensando que são estrela, só porque ganham dez vezes mais que
a gente.
MIMI
Mas agora mixou. O João Alegre disse que, em peça dele, fodido é que fala
mais alto. Diz que, em letreiro de teatro dele, fodido vai ser estrelo e estrelo vai se
foder.
GENERAL
Disse, pois é. Mas quero ver o que é que ele vai dizer agora que estão
umedecendo a pata dele.
SHIRLEY
Ele aguenta firme. Pelo João Alegre eu ponho a mão na merda.
PHILLIP
Vou te contar. Enquanto artista depender de autor e produtor, tá ferrado!
DÓRIS
Eu digo mais. A melhor coisa que pode acontecer pra gente, mas a melhor
mesmo, coisa de sonho, coisa de Shangri-la, é ter um cara da TV Globo na plateia
e chamar a gente pra novela das oito.
JOHNNY
Sabe duma? Se eu fosse atacar de muamba pra valer, tava numa melhor.
FICHINHA
E eu? O que tô ganhando aqui num mês, puta de verdade fatura numa
noite, rodando a bolsa na Vieira Souto. Aliás, tô decidida. Vou ser puta no duro! Se
alguém aí na plateia se habilita, é só passar no camarim.
GENERAL
Muito me admira é o Barrabás. Como é que é, homem, se bandeou pro
lado dos ricos?
BARRABÁS
Te manca, General. Deixa eu me destacar aqui perto dos figurões.
JOHNNY
Belo espírito de solidariedade.
BARRABÁS
Daí eu pago uma lasanha na Fiorentina.
JOHNNY
Ah, bom.
GENI (Entra com duas bolsas grandes de palha)
Olá, todo mundo.
PHILLIP
Ô, Genival, chegue-se aos bons!
GENI
Quem é esse cara mesmo, hein? Ah, Teresinha, Lúcia, que bom encontrar
vocês!
PHILLIP
Ô, bichona, eu falei contigo!
GENERAL
Qual é, Geni? Não fala com a gente?
GENI
De onde é que eu conheço esses caras mesmo? É do Retiro dos Artistas
ou da TV Educativa? Mas, queridas, olha que barato essas bolsas italianas.
Qualquer butique de Ipanema tá vendendo a oitocentos contos! Eu faço por
quinhentos. . .
TERESINHA
Ai, que graça!
GENI
Tem também um soirée bem metido a antigo, ideal pra festa de entrega do
prêmio Molière!
LÚCIA
Esse é meu!
GENI
Olha só esses penduricalhos. . . Bem art-nouveau. . .
Entram Duran e Vitória.Continua pág 138...
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
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Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3a)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3c)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 7
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Epílogo Ditoso (Ópera)__________________
Chico Buarque -
foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura. Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.
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