sexta-feira, 22 de março de 2024

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXX - NAUFRÁGIOS (Desterro)

Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA


O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos


DISPERSAS 

NAUFRÁGIOS 
(Desterro) 

O Mar! O mar! Quem nunca viajasse... 
Quem nunca dentre dúvidas sentisse 
O coração e ai, nunca embarcasse... 
Oh! quem do mar as cóleras punisse! 

Ora o mar é sereno, é calmo, é manso, 
As vagas são melódicos arpejos 
Dando à embarcação leve balanço, 
Como um afago maternal de beijos. 

Ora o mar franco, livre e transparente, 
Tão tranquilo que está, tão brando, rindo, 
Que até parece, que até cuida a gente 
Que os corações podem boiar, dormindo. 

Ora ferve, rebenta, estoura, estala, 
Rude, feroz, em convulsões, profundo, 
Abrindo a corpos pavorosa vala 
E mundos de agonia num só mundo! 

II 
Filho! Filho! Adeus, querido, 
Vou viajar para além, 
Sejas de Deus protegido... 
Que sempre me queiras bem. 

Vou deixar-te nesta terra, 
Entregue aos destinos teus; 
Filho, o que este adeus encerra 
Só o pode saber Deus. 

Levo as crenças em pedaços, 
Como pedaços de céus. 
Vou ver mar, vou ver espaços, 
Ver temporais, escarcéus. 

Filho amado, vou deixar-te 
Cá na terra, pelo mar; 
Porém, crê, de qualquer parte, 
Crê, meu filho, hei de voltar. 

III 
Adeus, noiva, vou-me embora, 
Vou-me com Deus, é preciso. 
Que colhas em cada aurora 
Muita messe de sorriso. 

Sou soldado, o meu destino 
É viver bem longe, é certo, 
Longe do canto divino 
Da tua voz, sol aberto. 

Custa bem esta partida 
A mim que entanto sou forte. 
Ninguém sabe o que é a vida 
Para quem vive da morte. 

Da morte, sim, pomba amada; 
Que as minhas crenças já mortas 
Tu, com essa alma estrelada, 
Nem tu sequer me confortas. 

Perdi pai, perdi carinhos 
De mãe, de irmãos e de todos. 
Eu sou como a flor de espinhos 
Nascida por entre lodos. 

Tu vieste, ó noiva, apenas, 
Como um íris de esperanças, 
Dar-me alvoradas serenas, 
Encher-me de confianças. 

Só em ti confio, espero 
Com ardor, com fé veemente, 
Pomba de luz que eu venero, 
Doce vésper do oriente. 

Adeus, pois chegou a hora, 
Vou-me com Deus, minha filha; 
Não chores, que o mar não chora: 
– Olha, vê que canta e brilha. 

IV 
Adeus, esposa estremosa, 
Vou-me, não sei para quando 
Voltar – minh’alma saudosa 
Por meus filhos vai chorando. 

Ficam-te eles no entretanto 
Pra tirarem-te os pesares, 
Para enxugarem-te o pranto 
Que há de ser maior que os mares. 

Maior que os mares, não minto, 
Não exagero tão pouco, 
Porque ai, só tu e só eu sinto 
O nosso amor como é louco. 

Vou-me às viagens, aos dias 
Passados entre horizontes 
E mares e ventanias 
Sem arvoredos, sem montes. 

Os dias de céus eternos 
E de mar ilimitado, 
Com tempo de atros infernos 
Com tempo de sol doirado. 

Adeus! Cá dentro do peito 
Há dois corações unidos; 
Sobre um o mar tem direito, 
Sobre outro – os filhos queridos. 

V
Eis as canções e adeuses de saudade 
Que as desgraçadas almas palpitantes 
Soluçam na sombria imensidade 
Desta vida de angústias lacerantes. 

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras 
Aflam nas ondas maviosamente. 
Que balada de plácidas venturas, 
Que sinfonias, que gemer dolente! 

Os céus abertos, claros, luminosos 
Lembram a candidez branda das virgens. 
Vítreos ares, magníficos, radiosos 
Onde o sol arde em férvidas vertigens. 

Lindíssimos painéis, bela paisagem 
Abre na vista do viajante o ouro 
Da luz que salta como uma homenagem 
De oriental, esplêndido tesouro. 

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio. 
As vagas desenrolam-se de leve. 
Parece um berço por de sobre um rio 
Manso, prateado, espúmeo, cor de neve. 

Vive-se a bordo como em terra. – As vagas 
Nunca foram tão doces e tão meigas, 
Como em desertas, viridentes plagas 
É doce e meigo o mole chão das veigas. 

Viver assim, na realidade, é gozo 
Que até parece não haver na terra! 
Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso, 
Tal confiança nos semblantes erra! 

Vogando assim a embarcação, quem pensa 
Ir acordado afora pela Vida?! 
Tudo é um sonho de esperança imensa 
Um bom sonho de aurora indefinida. 

VI 
Súbito os ares enchem-se de noite 
E grita e zune, zargunchando o vento 
Que esbraveja, morde com rijo açoite 
O mar que espuma e empola num momento. 

Não estrugem os raios pela treva 
Não há trovões bravios rebentando 
Como canhões que estouram – mas se eleva 
Do oceano um vendaval que vai urrando 

Com fúrias e com cóleras enormes 
Como potros sanhudos relinchando 
Em pinotes e berros desconformes. 

Caiu talvez no mar o etéreo espaço, 
Toda a cúpula azul tombou, quem sabe? 
Céus! há lutas ali, de braço a braço. 
Horror! Crível será que o mundo acabe? 

Ninguém calcula o que será tudo isso... 
Mas os ventos elétricos, largados 
Nas amplidões do mar antes submisso, 
Rugindo vão como desesperados. 

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam, 
E se afervora mais e mais a crença. 
Mas, onde os astros muita vez palpitam 
No céu, há noite cada vez mais densa. 

Ah! que mudez de túmulo nos ares. 
Nada responde, oh! nada então responde! 
Mas onde está o grande Deus dos mares 
E da terra, onde está, aonde, aonde? 

Tudo está mudo – a natureza inteira, 
Tudo emudece e não responde nada; 
E só os vendavais têm a maneira 
De responder dando uma gargalhada. 

Gargalhada de lágrimas atrozes, 
De lágrimas de morte e de agonia 
Que abafa e extingue na garganta as vozes, 
Gera a coragem que é a luz do dia. 

Ó valentes e rudes marinheiros 
Vindos da pátria para pátria nova, 
Que sepultais amores verdadeiros 
Do tão profundo coração na cova; 

Ó viajantes de longe, de países 
Onde a vida cintila e canta alerta 
Como um turbilhão de aves felizes 
Numa campina de rosais, deserta; 

Ó vós todos que vindes lá do oceano, 
Entre as mais bruscas e hórridas tormentas, 
Lá do mar alto, à vela, a todo o pano, 
Com as almas ansiosas e sedentas. 

De chegar cedo ao porto desejado, 
Calculai, calculai o quanto é triste 
Ver dar à praia um pobre desgraçado 
Em cuja carne a podridão existe! 

À praia! À praia! Dai à praia, morto, 
Rejeitado por ondas convulsivas, 
Indo encontrar na sepultura o porto, 
Deixando ao mundo as ilusões mais vivas. 

O eterno amor de mãe, de filho, esposa, 
Tanta fé, tanto riso de alegria, 
Tanta coisa dourada, ai tanta coisa 
Que ao recordar toda a nossa alma esfria. 

Morrer no mar, os nervos contraídos, 
Numa asfixia atroz, cerrando os dentes, 
Num abismo de dores e gemidos, 
De maldições e de uivos de descrentes; 

Morrer no mar, sem o farol amigo, 
Esse farol que os náufragos anima, 
Fora de proteção, fora de abrigo, 
Sem sequer uma luz no espaço, em cima; 

Morrer no mar, sem astros no infinito, 
Na solidão das águas, fria, imensa, 
Enquanto a treva dura de granito, 
Ri-se de tudo, com indiferença; 

Morrer no mar, só e desamparado 
E num terror que não acaba nunca, 
Vendo rasgar o corpo enregelado 
O desespero como garra adunca. 

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles 
Que morrem mesmo assim lá no mar fundo 
Sem ter alguém que ao menos neste mundo 
Derrame uma só lágrima por eles! 

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Leia também:
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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.
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Organização e Estudo
Lauro Junkes
Presidente da Academia Catarinense de Letras
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Projeto Gráfico, Editoração e Capa
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Revisão Linguístico-Ortográfica
PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES
PROF. Dr. LAURO JUNKES
Impressão e Acabamento
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Formato
14 x 21cm

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167
S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898
                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)
                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.
                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.
                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1

"A gente só tem saída na poesia."

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