sábado, 16 de março de 2024

Memórias - 10: família e vacas

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

10 – família e vacas

Juanito foi o único dos filhos e filhas que ficou para tocar o negócio de espremer e puxar tetas do velho Caraca quando uma das mãos do pai endureceu torta, adoecimento conhecido como desgraça de um lado só

o homem deitou alinhado, acordou velho e desarrumado, um dos lados deformado, justamente o lado que mais usava

por algum motivo acharam que deveriam benzer, mesmo desconfiando de tudo, algum mau jeito ou golpe de ar, até quem sabe, praga de um dos filhos, chamaram dona Lothária para benzimento

chegou com um galho de arruda atrás da orelha, toda vestida de simplicidade, voz arrastada e áspera, perguntou de alguma queda, Só se foi da cama, respondeu Juanito, Não é bastante pra tanto estrago... alguma batida ou golpe de ar, Não, dona Lothária, ele deitou reto e acordou torto da boca, da mão e do pé.

deu para ver que estava desconsertada e sem entender do porquê daquele entortamento súbito, a ansiedade só fazia aumentar, Vô benzê... mais cura não prometo, vai sê benzedura pra num piorá o aleijume que já tá bem ruim.

aquela benzedura foi só pra ninguém dizer que nada foi feito ou tentado, tudo que era gente sabia, mesmo sem entender tudo, que o velho tinha dado meia volta na vida

Juanito saiu, foi desabafar com suas vacas, desconfiava que tudo estava mudando com jeito de não voltar atrás

embora não abandonasse da ideia das benzeduras, o médico da vila não lhe deu nenhum alento que algo feito pudesse desentortar o que já estava torto, percebeu que a vida apontava novos caminhos que devia trilhar, escutava vozes das suas vacas na cabeça, elas estavam à sua volta, fechou os olhos para ver com o coração

o tempo foi acomodando a vida, dia após dia, o velho Caraca parecia forte e quase cheio de vida, mas bastava desviar atenção para direita e ele se mostrava como alguém que se perdia para algum propósito casual, olhar enviesado pelo canto mais apropriado, a mão sem força para espremer e puxar, conformada com a moldura de garra, a perna dura com pé apontando à esquerda

o crepúsculo passou espreitar a vida como um bêbado desalinhado, a pálpebra do olho erguida pela metade, boca e olhar perdidos da forma de prontidão, língua confusa e pastosa, sem a conversa consistente com suas vacas, foi assim que os gritos do velho cessaram

daquela voz poderosa ficara apenas o rosnar indefeso dos gatinhos, como um sussurro sem malícia em meio ao caos, perdera aparência ameaçadora, na verdade, ficara inofensivo, e até mesmo frágil

o braço se contraiu para dentro de si mesmo, a mão e as pinças ficaram em desenho de concha, não apertavam mais os úberes nem levavam à boca o fumo de palha, para esse serviço deixou no seu lado uma índia velha e cansada para reclamar, montava o seu palheiro e oferecia acesso na mão boa

passou a viver uma vida desencantada em algum canto do casarão com sua teimosia e vício de defumar seu fumo de corda

a velha índia afastada dos seus quefazeres montava guarda ao lado do velho, usava as mãos para acender no velho a chama do fumo de corda enrolado e mijado, trocava palha de milho e fraldas, os panos que o velho Caraca passou usar no meio das pernas

o palheiro se recusava abandonar, repetia que sempre que soprava fumaça estranhos poderes surgiam, plantas cresciam mais rápido, curava ferimentos e até mesmo afugentava criaturas perigosas do mato

com o passar das histórias de boca em boca, os poderes do velho Caraca se espalharam pelo tambo, algumas vacas passaram a temê-lo, outras se maravilhavam com suas novas habilidades para proteger o mato, ajudar as vacas que precisavam ajuda

foi tornando-se uma lenda entre o gado

apesar dos avisos dos médicos para parar de fumar, continuou fumando seu palheiro e se afumentando nas mãos da velha índia, repetia que seus poderes com as vacas estavam diretamente ligados ao seu fumo de corda, Esses doutores não sabem de nada, tudo enganação.

sua teimosia combinada com o fumo, fez dele um personagem para ser esquecido através das gerações, o fumante teimoso com poderes mágicos de conversar com vacas, um mito entortado

a perna continuava durona de não se dobrar, caminhar passou a ser um gesto desumano de equilíbrio e acidentes

o velho havia perdido harmonia das coisas simples, perdeu o fio prumo e o poder do chicote que lançava no ar, lambia o chão ao lado dos filhos sempre que algum guri enfraquecia ou parava de apertar e puxar tetas, Por que o descansado parou? A teta não derrama sozinha!

pararam os gritos e estalos no chão, restaram as fraldas, babeiros e a índia velha

um a um, os filhos e filhas que restavam no tambo foram embora, doze resistiram de um total de vinte e um até a idade de fugirem para o mundo, bem antes, cada um dos filhos do velho Caraca aprendeu começar e terminar suas tarefas nos estábulos da vacaria

todo dia, o chicote convencia qualquer vontade em contrário e deixava suas marcas no chão

o filho que lhe sobrou jurou, Papá... filho meu jamais vai conhecer golpe de trança de couro!

Assim, seja, amém...

depois, o velho ficava quieto

não sabia mais o que lhe responder, nada parecia lhe interessar além do palheiro na boca e trocar as fraldas

Papá, desconfio que a vida é só família e vacas...

E a Pátria, Juanito! E a Pátria..., levou a mão desgarrada até o canto da boca, sentia a baba melosa escorrendo

___________________

Memórias - 10: família e vacas

Nenhum comentário:

Postar um comentário