QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda João Ubaldo Ribeiro Para meu amigo Glauber
continuando...
Quanto aos eleitores, as limitações ou restrições são também
importantes. Os Estados organizados de modo democrático costumam
adotar o sufrágio universal. Isto quer dizer que o direito de voto se
estende universalmente a todos os cidadãos. Contudo, esta
universalidade sofre limitações. Distingue-se habitualmente entre o
sufrágio restrito (aquele não estendido arbitrariamente a certas
categorias de cidadãos, como os negros do exemplo acima) e o sufrágio
universal limitado, cuja conceituação é um pouco mais complicada,
porque o que alguns consideram meras limitações, outros consideram
restrições.
Certas limitações, embora haja quem as discuta (como tudo
neste mundo), são mais ou menos pacíficas, como a que se dá por
idade. Já que a idade limita a capacidade do cidadão (ou seja, um
jovem de 15 anos ainda não é um cidadão completo, pois que
depende da autoridade paterna), é compreensível que ele não seja
qualificado para votar também, o que só se dará quando ele atingir a
plena capacidade, embora esta regra não seja universal, inclusive no
Brasil.
Mas há casos bem mais discutíveis. Muitos países que
nominalmente praticavam o sufrágio universal só recentemente
permitiram o direito de voto às mulheres, como a França, por
exemplo, É claro que a negação do direito de voto às mulheres é uma
grave restrição ao sufrágio, mas era considerada apenas uma
limitação à extensão do sufrágio universal. No Brasil, ao contrário da
Índia, o sufrágio só há pouco voltou a ser estendido aos analfabetos,
como o era, já vimos aqui, antes da proclamação da República. Isto
era, no ver de muitos, também uma séria restrição.
Como se vê, é necessário que, no exame dos processos de
escolha de governantes, também se examine com cuidado a existência
dessas e outras limitações, bem como de outros aspectos, quase tão
variados quanto permite a imaginação humana. Já praticamente não se
adotam, nas democracias de hoje, instituições como o voto censitário
(privilégio, como já vimos, dos que fossem capazes de provar certas
condições econômicas — podendo até mesmo haver um “imposto de
urna”, como havia, até pouco tempo, em alguns estados do sul dos
Estados Unidos), o sufrágio qualificado e o ponderado (que não são,
rigorosamente, a mesma coisa, mas que, em última análise,
atribuíam um peso especial aos votos de determinadas categorias de
pessoas “mais bem qualificadas”, por uma razão ou outra), o sufrágio
múltiplo e o sufrágio plural (em que algumas pessoas podiam ter seu
voto “multiplicado” ou votar, na mesma eleição, em várias
circunscrições eleitorais) e assim por diante, embora possam
encontrar-se disfarçados, debaixo de certas instituições.
Finalmente, devem ser lembradas algumas condições en
volvendo o exercício do sufrágio, que afetam a liberdade na
escolha dos governantes através de eleições. Por exemplo, para
garantir a liberdade de cada eleitor, no momento em que ele
faz sua escolha, instituiu-se a prática do voto secreto. Se o voto não
fosse secreto — e isto não acontece universalmente — o eleitor estaria
sujeito a pressões às quais talvez não tivesse condições de resistir.
Há também outra limitação a votar-se em quem se quiser, pois
em quase todas as democracias do mundo, mesmo se descontadas as
limitações ou restrições à candidatura vistas atrás, só os partidos
políticos podem apresentar candidatos, o que significa que, quando os
partidos são controlados por minorias e quando é difícil formar novos
partidos, muitos cidadãos não conseguem ter acesso concreto à
candidatura, embora legalmente qualificados em todos os outros
aspectos.
Assinale-se ainda que as eleições podem não ser diretas, ou
seja, pode dar-se o caso em que a lei determine que os eleitores só
podem votar em representantes, os quais, por sua vez, escolhem os
governantes. Há vários subsistemas possíveis neste caso, inclusive
os que combinam eleições diretas para certos cargos com indiretas
para outros. É mais do que claro que as eleições indiretas afetam a
representatividade da seleção, já que a escolha de representantes
envolve uma espécie de transferência ou delegação de soberania. A
soberania popular é delegada ao corpo de representantes, que pode
ser fiel à vontade dela ou não, a depender das circunstâncias ou do
tipo de instituições existentes.
Este problema de certa forma existe no sistema norte-americano, em que o presidente da República não é escolhido
diretamente pelo sufrágio popular, mas por um corpo de delegados a
cujo cargo fica a eleição real. Na esmagadora maioria dos casos, os
delegados votam de acordo com a vontade popular, mas não são
obrigados legalmente a isto, e já aconteceram dois ou três episódios
em que, de fato, o candidato vitorioso pelo voto popular foi derrotado
na eleição realizada pelos delegados, no colégio eleitoral. Esta
hipótese, contudo, torna-se cada vez mais remota na realidade
política atual dos Estados Unidos, embora seja ainda perfeitamente
legal. Atualmente, tramita no Congresso americano uma emenda
constitucional acabando com o colégio eleitoral e transformando a
eleição do presidente americano numa eleição realmente direta.
Cabe também lembrar que a existência de uma linha sucessória,
mesmo onde haja mecanismos para garantir a representação da
vontade popular expressa por meio do sufrágio, pode vir a mudar os
governantes de forma não prevista pelos eleitores. Por exemplo, em
muitos sistemas elege-se um presidente da República e um vice-presidente, o segundo muitas vezes como uma mera consequência de
alianças políticas feitas pelo primeiro, pois ninguém espera que o
vice venha a assumir o cargo. E a linha sucessória, além disso, não
para aí. No caso de morrerem num desastre tanto o presidente como
o vice-presidente, é claro que a escolha dos governantes a
sucederem-nos não será feita, rigorosamente, por escolha popular,
mas por força da linha sucessória institucionalizada. No Brasil, caso
semelhante aconteceu com a morte inesperada de Tancredo Neves
(que já não tinha sido eleito pelo povo) e a assunção ao poder de José
Sarney, pois entre nós a linha sucessória é a seguinte: presidente,
vice-presidente, presidente da Câmara dos Deputados, presidente do
Senado Federal e presidente do Supremo Tribunal Federal.
Mas o aspecto mais especializado da escolha dos governantes é
a questão dos sistemas eleitorais, que vamos ver no próximo
capítulo.
*
1 O movimento de 1964, no Brasil, foi, na sua opinião, uma
revolução?
2 Um Estado desenvolvido enfrenta sérios problemas políticos,
com uma verdadeira guerra entre duas facções rivais. Depois
de algum tempo, uma grande potência invade o país, elimina os
extremistas e, estabelecendo um governo provisório, explica à
população: “Agora vocês elejam, dentro desse sistema que
estamos ensinando aqui a vocês, os governantes que quiserem,
que nós lhes daremos posse e garantiremos o governo com
nossas forças armadas.” Você acha que a escolha de
governantes daí decorrente é por conquista, ou não? Se você
conhece os casos recentes de El Salvador e do Afeganistão,
talvez seja interessante aplicar a pergunta a eles.
3 Uma ditadura militar é derrubada por um golpe de Estado,
dado por outros militares. Ao assumir o poder, o novo governo
declara que fez uma revolução, porque não se permitirá mais
que militares da ativa sejam governantes. “Tanto assim é”,
acrescenta ele, “que de agora em diante todo militar que
quiser assumir o poder terá que deixar a farda.” Fez-se mesmo
uma revolução?
4 Um governo que tem como pontos básicos a reforma agrária,
a socialização dos bancos e a extinção gradual da livre iniciativa nas
indústrias perde as eleições sucessórias para uma facção que não
admite nenhum dos pontos básicos acima. Antes do dia da posse
dos novos governantes, o governo ainda no poder anula tudo o que
aconteceu. “Golpe!”, diz a facção que ganhou as eleições. “Mentira!
Quem queria dar o golpe eram eles, mudando tudo o que já estava
estabelecido!” É golpe ou não é golpe?
5 O presidente João Figueiredo foi escolhido por seleção interna ou
por algum sistema eleitoral especial? E o presidente Fernando
Henrique Cardoso?
6 O Vaticano é uma democracia?
7 “Aqui a eleição é absolutamente livre. Os candidatos é que têm de
passar por um exame prévio, para que se verifique se têm condições,
de acordo com os melhores interesses do país.” Comente.
8 E se, em vez de “candidatos”, estivesse escrito, na pergunta
acima, “eleitores”?
9 Um Estado resolve multiplicar o valor do voto de cada cidadão
pelo número de filhos que ele tem. Comente.
10 “O voto secreto é uma maneira de o sujeito escapar de sua
responsabilidade social e até vender seu voto a vários candidatos
diferentes.” Comente.
11 Morre o presidente, assume o vice-presidente. No dia seguinte,
um general dá um golpe e diz que vai marcar novas eleições
oportunamente, no interesse público, porque o povo não escolheu
aquele presidente. Comente.
continua na página 092...
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Leia também:
João Ubaldo Ribeiro - Política: Escolha de Governantes(2)
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.
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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32
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