segunda-feira, 4 de março de 2024

João Ubaldo Ribeiro - Política: Escolha de Governantes(2)

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


12
Escolha de Governantes

continuando...

   Quanto aos eleitores, as limitações ou restrições são também importantes. Os Estados organizados de modo democrático costumam adotar o sufrágio universal. Isto quer dizer que o direito de voto se estende universalmente a todos os cidadãos. Contudo, esta universalidade sofre limitações. Distingue-se habitualmente entre o sufrágio restrito (aquele não estendido arbitrariamente a certas categorias de cidadãos, como os negros do exemplo acima) e o sufrágio universal limitado, cuja conceituação é um pouco mais complicada, porque o que alguns consideram meras limitações, outros consideram restrições.
   Certas limitações, embora haja quem as discuta (como tudo neste mundo), são mais ou menos pacíficas, como a que se dá por idade. Já que a idade limita a capacidade do cidadão (ou seja, um jovem de 15 anos ainda não é um cidadão completo, pois que depende da autoridade paterna), é compreensível que ele não seja qualificado para votar também, o que só se dará quando ele atingir a plena capacidade, embora esta regra não seja universal, inclusive no Brasil.
   Mas há casos bem mais discutíveis. Muitos países que nominalmente praticavam o sufrágio universal só recentemente permitiram o direito de voto às mulheres, como a França, por exemplo, É claro que a negação do direito de voto às mulheres é uma grave restrição ao sufrágio, mas era considerada apenas uma limitação à extensão do sufrágio universal. No Brasil, ao contrário da Índia, o sufrágio só há pouco voltou a ser estendido aos analfabetos, como o era, já vimos aqui, antes da proclamação da República. Isto era, no ver de muitos, também uma séria restrição.
   Como se vê, é necessário que, no exame dos processos de escolha de governantes, também se examine com cuidado a existência dessas e outras limitações, bem como de outros aspectos, quase tão variados quanto permite a imaginação humana. Já praticamente não se adotam, nas democracias de hoje, instituições como o voto censitário (privilégio, como já vimos, dos que fossem capazes de provar certas condições econômicas — podendo até mesmo haver um “imposto de urna”, como havia, até pouco tempo, em alguns estados do sul dos Estados Unidos), o sufrágio qualificado e o ponderado (que não são, rigorosamente, a mesma coisa, mas que, em última análise, atribuíam um peso especial aos votos de determinadas categorias de pessoas “mais bem qualificadas”, por uma razão ou outra), o sufrágio múltiplo e o sufrágio plural (em que algumas pessoas podiam ter seu voto “multiplicado” ou votar, na mesma eleição, em várias circunscrições eleitorais) e assim por diante, embora possam encontrar-se disfarçados, debaixo de certas instituições.
  Finalmente, devem ser lembradas algumas condições en volvendo o exercício do sufrágio, que afetam a liberdade na escolha dos governantes através de eleições. Por exemplo, para garantir a liberdade de cada eleitor, no momento em que ele faz sua escolha, instituiu-se a prática do voto secreto. Se o voto não fosse secreto — e isto não acontece universalmente — o eleitor estaria sujeito a pressões às quais talvez não tivesse condições de resistir.
   Há também outra limitação a votar-se em quem se quiser, pois em quase todas as democracias do mundo, mesmo se descontadas as limitações ou restrições à candidatura vistas atrás, só os partidos políticos podem apresentar candidatos, o que significa que, quando os partidos são controlados por minorias e quando é difícil formar novos partidos, muitos cidadãos não conseguem ter acesso concreto à candidatura, embora legalmente qualificados em todos os outros aspectos.
   Assinale-se ainda que as eleições podem não ser diretas, ou seja, pode dar-se o caso em que a lei determine que os eleitores só podem votar em representantes, os quais, por sua vez, escolhem os governantes. Há vários subsistemas possíveis neste caso, inclusive os que combinam eleições diretas para certos cargos com indiretas para outros. É mais do que claro que as eleições indiretas afetam a representatividade da seleção, já que a escolha de representantes envolve uma espécie de transferência ou delegação de soberania. A soberania popular é delegada ao corpo de representantes, que pode ser fiel à vontade dela ou não, a depender das circunstâncias ou do tipo de instituições existentes.
   Este problema de certa forma existe no sistema norte-americano, em que o presidente da República não é escolhido diretamente pelo sufrágio popular, mas por um corpo de delegados a cujo cargo fica a eleição real. Na esmagadora maioria dos casos, os delegados votam de acordo com a vontade popular, mas não são obrigados legalmente a isto, e já aconteceram dois ou três episódios em que, de fato, o candidato vitorioso pelo voto popular foi derrotado na eleição realizada pelos delegados, no colégio eleitoral. Esta hipótese, contudo, torna-se cada vez mais remota na realidade política atual dos Estados Unidos, embora seja ainda perfeitamente legal. Atualmente, tramita no Congresso americano uma emenda constitucional acabando com o colégio eleitoral e transformando a eleição do presidente americano numa eleição realmente direta.
   Cabe também lembrar que a existência de uma linha sucessória, mesmo onde haja mecanismos para garantir a representação da vontade popular expressa por meio do sufrágio, pode vir a mudar os governantes de forma não prevista pelos eleitores. Por exemplo, em muitos sistemas elege-se um presidente da República e um vice-presidente, o segundo muitas vezes como uma mera consequência de alianças políticas feitas pelo primeiro, pois ninguém espera que o vice venha a assumir o cargo. E a linha sucessória, além disso, não para aí. No caso de morrerem num desastre tanto o presidente como o vice-presidente, é claro que a escolha dos governantes a sucederem-nos não será feita, rigorosamente, por escolha popular, mas por força da linha sucessória institucionalizada. No Brasil, caso semelhante aconteceu com a morte inesperada de Tancredo Neves (que já não tinha sido eleito pelo povo) e a assunção ao poder de José Sarney, pois entre nós a linha sucessória é a seguinte: presidente, vice-presidente, presidente da Câmara dos Deputados, presidente do Senado Federal e presidente do Supremo Tribunal Federal.
   Mas o aspecto mais especializado da escolha dos governantes é a questão dos sistemas eleitorais, que vamos ver no próximo capítulo.


*

1 O movimento de 1964, no Brasil, foi, na sua opinião, uma revolução?

2 Um Estado desenvolvido enfrenta sérios problemas políticos, com uma verdadeira guerra entre duas facções rivais. Depois de algum tempo, uma grande potência invade o país, elimina os extremistas e, estabelecendo um governo provisório, explica à população: “Agora vocês elejam, dentro desse sistema que estamos ensinando aqui a vocês, os governantes que quiserem, que nós lhes daremos posse e garantiremos o governo com nossas forças armadas.” Você acha que a escolha de governantes daí decorrente é por conquista, ou não? Se você conhece os casos recentes de El Salvador e do Afeganistão, talvez seja interessante aplicar a pergunta a eles.

3 Uma ditadura militar é derrubada por um golpe de Estado, dado por outros militares. Ao assumir o poder, o novo governo declara que fez uma revolução, porque não se permitirá mais que militares da ativa sejam governantes. “Tanto assim é”, acrescenta ele, “que de agora em diante todo militar que quiser assumir o poder terá que deixar a farda.” Fez-se mesmo uma revolução?

4 Um governo que tem como pontos básicos a reforma agrária, a socialização dos bancos e a extinção gradual da livre iniciativa nas indústrias perde as eleições sucessórias para uma facção que não admite nenhum dos pontos básicos acima. Antes do dia da posse dos novos governantes, o governo ainda no poder anula tudo o que aconteceu. “Golpe!”, diz a facção que ganhou as eleições. “Mentira! Quem queria dar o golpe eram eles, mudando tudo o que já estava estabelecido!” É golpe ou não é golpe? 

5 O presidente João Figueiredo foi escolhido por seleção interna ou por algum sistema eleitoral especial? E o presidente Fernando Henrique Cardoso?

6 O Vaticano é uma democracia? 

7 “Aqui a eleição é absolutamente livre. Os candidatos é que têm de passar por um exame prévio, para que se verifique se têm condições, de acordo com os melhores interesses do país.” Comente. 

8 E se, em vez de “candidatos”, estivesse escrito, na pergunta acima, “eleitores”? 

9 Um Estado resolve multiplicar o valor do voto de cada cidadão pelo número de filhos que ele tem. Comente. 

10 “O voto secreto é uma maneira de o sujeito escapar de sua responsabilidade social e até vender seu voto a vários candidatos diferentes.” Comente. 

11 Morre o presidente, assume o vice-presidente. No dia seguinte, um general dá um golpe e diz que vai marcar novas eleições oportunamente, no interesse público, porque o povo não escolheu aquele presidente. Comente.    

continua na página 092...

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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Escolha de Governantes(2)

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

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