QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda João Ubaldo Ribeiro Para meu amigo Glauber
Até nas ditaduras, os governantes não são eternos. Há sempre,
portanto, um processo de escolha de governantes, mesmo que esta escolha
seja imposta ao povo. Alguns governantes, como sabemos, são escolhidos
por hereditariedade, através do estabelecimento de uma linha sucessória
que pode variar de contexto para contexto. Esse processo, como também
sabemos, tem diminuído consideravelmente de importância nos dias de
hoje, não só porque é típico das monarquias e há poucas monarquias
atualmente, como porque os monarcas do nosso tempo atuam, em geral,
em regimes parlamentaristas, o que significa que o verdadeiro polo decisório
é o Parlamento, do qual são membros o primeiro-ministro (ou premier) e
seu gabinete (o conjunto dos outros ministros). Há ainda, mas quase como
uma relíquia, assembleias escolhidas por hereditariedade, como é o caso
da Câmara dos Lordes, na Inglaterra, cuja importância também vem
diminuindo a cada dia e cuja extinção é abertamente contemplada por boa
parte da opinião pública.
Em Estados onde a religião não é separada da órbita política, existem
processos de escolha mais ou menos autocráticos, em que a seleção se faz
através da qualificação religiosa de alguns governantes, como é, em parte, o
caso do Irã atual. Existem, enfim, os casos em que os governantes são
escolhidos pela força, ou seja, são impostos. Isto acontece, em
primeiro lugar, nos Estados conquistados militarmente ou nos que
permanecem como colônias, pois se, nesta última hipótese a força
não é empregada de modo rotineiro, ela está na raiz do processo e da
manutenção do sistema.
Pela força, igualmente, é a escolha dos governantes operada
através do que se costuma chamar de golpe de Estado. Nos golpes
de Estado, o processo institucionalizado é interrompido
violentamente, seja durante a escolha do sucessor do governante
que está ocupando o cargo, seja depois que a escolha já está feita.
Não é necessário, evidentemente, que o golpe de Estado seja dado por
alguém que não o próprio governante, pois pode muito bem ocorrer
(como ocorreu no Brasil, por ocasião da ditadura de Getúlio Vargas)
que o governante decida romper os limites estabelecidos pelas
instituições e prolongar sua permanência no cargo, ou perpetuá-la,
para isso concentrando em si a maior fatia possível de poder.
Contudo, o mais comum é que o golpe seja dado por facções
descontentes com a situação e com as possibilidades institucionais de
que ela se venha a modificar como estas facções desejam.
O golpe de Estado é, portanto, a tomada violenta do poder por
elementos internos ao país. Esta violência pode assumir diversos
graus, chegando com frequência à execução ou banimento dos
governantes depostos. Há Estados de grande instabilidade política,
onde a ocorrência de golpes é praticamente rotineira, como tem
acontecido em muitos países da América Latina. Tecnicamente, há um
golpe toda vez que o processo institucional é quebrado de maneira
violenta, mesmo que a intenção dos golpistas seja preservar esse
processo (é o chamado “golpe preventivo”, que aconteceu em 1955 no
Brasil, antes da posse do presidente Juscelino Kubitschek, quando
os golpistas tinham razões para crer que havia um esquema
montado para impedir a posse do eleito e tomaram o poder
temporariamente, a fim de garantir a posse — o que de fato se deu).
É comum que muitos golpes de Estado se intitulem, a si
mesmos, de “revolução”. A linha demarcatória entre a revolução e o
golpe de Estado pode não ser muito clara, mas, de modo geral, o que
caracteriza as revoluções são alterações muito mais profundas do que
as criadas por um golpe. O golpe limita-se a algumas mudanças de
composição do quadro de governantes e à interferência no
funcionamento normal das instituições violentadas. Não existem, com
ele, alterações sociais profundas.
A Revolução Russa de 1917, por exemplo, foi realmente uma
revolução, porque modificou profundamente a sociedade e a
economia onde ocorreu. Da mesma forma, pode-se falar de uma
Revolução Americana e de uma Revolução Francesa — ambos casos
historicamente conhecidos e definidos. Não há, entretanto, conceitos
rígidos, e é comum que simples golpes de Estado, simples mexidas
mais ou menos turbulentas dentro do mesmo esquema dominante,
apresentem-se insistentemente como verdadeiras revoluções, cabendo
ao observador julgar se terá havido de fato alguma mudança
fundamental.
Cabe também apontar a especificidade de outros processos de
escolha, que podemos chamar de seleção interna. Acontece essa
seleção interna, por exemplo, no Vaticano, pois o papa não é só um
líder religioso, mas também um chefe de Estado, um governante. Sua
sucessão é realizada através de mecanismos internos da Igreja Católica,
de uma forma razoavelmente conhecida por todos nós. Claro que o tipo
de escolha de governantes do Vaticano não esgota as possibilidades da
seleção interna, que existe, muitas vezes disfarçada, em outros
contextos.
De certa maneira, o México vem escolhendo seus presidentes
através desse processo. Há eleições gerais, mas tem sido tal a
dominância de um partido político (Partido Revolucionário Institucional
— PRI) que a escolha de seu candidato equivale, para todos os efeitos,
à escolha daquele que será, inevitavelmente, eleito. Recentemente, o
México vem dando mostras de que deseja alterar a situação, com a
oposição conseguindo alguns avanços. Mas ainda é muito cedo para
se afirmar que a escolha de seus presidentes passará a ser por uma
eleição realmente democrática, com igualdade de oportunidades para
todos os candidatos.
Obviamente, certos tipos de ditadura também realizam sua
sucessão pelo processo de seleção interna, quando o ditador e seu
círculo de influência preparam seus sucessores. Com diferenças entre
si mais ou menos importantes — e processos diversos para emprestar o
que se alega ser legitimidade aos mecanismos empregados — foi esse o
caso do Haiti, com a morte do ditador Papa Doc e a sucessão por seu
filho, o caso dos presidentes brasileiros nas duas décadas que se
seguiram a 1964, dos dirigentes soviéticos, dos presidentes argentinos
antes da redemocratização e assim por diante.
Deixando de mencionar processos como sorteio (que já teve
grande importância, por exemplo, em certos Estados da Grécia antiga)
e outros de relevância marginal, chegamos enfim ao sufrágio, ou seja,
para simplificar, ao modo de escolha através do voto. Muitas pessoas
identificam as eleições com democracia e com o predomínio da
vontade da maioria, mas isto não é bem assim, como já tivemos ideia
anteriormente e como vamos ver agora em detalhe.
De fato, é muito difícil, hoje, haver democracia sem eleições,
pois as democracias contemporâneas de modo geral são
representativas, e essa representatividade se expressa através da
indicação da vontade dos cidadãos qualificados para votar (os
eleitores). Mas muita coisa depende da maneira pela qual essas
eleições são equacionadas e organizadas, a começar pela própria
qualificação de candidatos e eleitores e a terminar pela maneira através
da qual os votos são dados, apurados e levados em conta para a
escolha dos governantes (grosso modo, o que se chama sistema
eleitoral). É até perfeitamente possível que, mesmo num sistema em
que os votos sejam dados livremente e apurados sem fraudes e sem
distorções mais evidentes, a maioria se veja derrotada nas eleições, ou
seja, acabe por eleger um número de representantes mais reduzido do
que o da minoria. Trata-se de um capítulo extremamente intrincado
da Política, cuja análise exaustiva requereria uma verdadeira biblioteca
especializada. Mas isto, é claro, não impede que possamos ter uma
ideia geral dos principais problemas envolvidos.
A primeira questão, preliminar ao problema do sistema eleitoral,
é a da qualificação dos candidatos. Intuitivamente, seria de concluir-se
que todo aquele que tem o direito de votar tem o direito de eleger-se.
Isto, contudo, não costuma ocorrer. A depender do Estado onde se
realizem as eleições, o número de pessoas que podem candidatar-se é
sempre menor, de uma forma ou de outra, do que o número das que
podem votar. As razões para isto são inúmeras e as hipóteses possíveis
quase sem limites. Uma maneira simples de entender isto é lembrar os
limites mínimos de idade para a ocupação de certos cargos de
governantes, como no Brasil, senadores e presidentes da República,
cuja idade mínima é de 35 anos. Como a idade mínima para votar é de
18 anos (aos 16 anos o exercício do direito de voto já é facultativo), é
claro que o número de pessoas que podem candidatar-se a esses cargos
é de pronto inferior ao número das que podem votar.
Mas a idade não é o único fator limitativo. As limitações à
candidatura, que somente às vezes se identificam com as limitações à
capacidade legal de votar, podem ser derivadas de raça (nos Estados
em que há uma raça dominante, às vezes minoritária), de sexo, de
religião, de convicção ideológica, de condição econômica, de ocupação
e assim por diante. Por conseguinte, o “espelhamento” da realidade que
seria oferecido pela realização de eleições tem que começar a ser
analisado a partir das limitações à candidatura.
Algumas vezes, essas limitações podem ser superadas pela
vontade do pretendente a candidato (ato que, entre nós, é
habitualmente chamado de desincompatibilização). Assim, em país
que proíba a candidatura de militares da ativa, os militares que
desejem exercer cargos eletivos podem reformar-se ou demitir-se. Em
outros contextos, os ocupantes de certos cargos de governante não
podem candidatar-se a certos outros, ou candidatar-se à própria
sucessão.
Em muitos Estados, algumas desincompatibilizações não são
possíveis, seja por motivos jurídicos, seja por motivos, digamos, sociais.
Não é possível, para um negro cidadão de um Estado racista, deixar
de ser negro e candidatar-se, quer o impedimento à candidatura esteja
contido em lei, quer seja do consenso do grupo étnico dominante.
Assim como não é possível, em caso análogo, que uma mulher deixe
de ser mulher para candidatar-se. É possível, por outro lado, que um
comunista impedido de candidatar-se renuncie publicamente a suas
convicções, mas também não é improvável que ele, mesmo assim,
enfrente problemas ou impedimentos.
Enfim, o que se depreende de tudo isto é que a vontade popular
não é inteiramente livre para a escolha dos governantes, dadas essas
limitações, todas as quais, aliás, podem ser, como são, defendidas por
argumentos de ordem diversa, que cabe examinar quando
apresentados.
continua na página 087...
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Leia também:
João Ubaldo Ribeiro - Política: Escolha de Governantes(1)
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.
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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32
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