D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
Vol 1
O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
PRIMEIRA PARTE
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXVIII
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXVIII
Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro.
continuando...
Quando Cardênio lhe ouviu que se chamava Dorotéia, tornou de novo aos seus sobressaltos, e acabou de se confirmar no que já supusera; mas não quis interromper a narrativa, desejoso de saber em que parava o que ele já quase sabia; só disse:
— Que, senhora! Dorotéia é o vosso nome? de uma Dorotéia já eu ouvi falar, que talvez em pontos
de desgraça vos não fique atrás. Prossegui; tempo virá, em que vos diga coisas, que hão-de
assombrar tanto como lastimar-vos.
Fez Dorotéia reparo nas palavras de Cardênio, e em seu trajar extravagante e miserável, e lhe rogou
que, se por acaso sabia alguma coisa tocante a ela, lha dissesse logo, porque, se alguma coisa boa
lhe tinha ficado na desgraça, era o ânimo para sofrer qualquer novo infortúnio, pela persuasão de
que nenhum podia já chegar aos atuais, quanto mais acrescentá-los.
— Não perderei eu tempo, senhora — respondeu Cardênio — em dizer-vos o que penso, se o que
penso não é errado: mas não nos faltará oportunidade, nem isto vos releva muito.
— Seja o que for — respondeu Dorotéia — prossigo a minha história. Tomando uma devota
imagem, que no aposento se achava, invocou-a como testemunha do nosso desposório, e com frases
eficacíssimas, e extraordinários juramentos, me deu palavra de ser meu marido, apesar de que, antes
de finalizada a sua jura, eu lhe pedi que reparasse bem no que fazia, e ponderasse no desgosto que o
senhor Duque seu pai sentiria de o ver casado com uma vilã sua vassala; que se não cegasse com a
minha formosura, tal qual era, pois não era suficiente para desculpa do seu desatino; e que, se algum
bem me queria fazer, pelo amor que me tinha, fosse deixar correr a minha sorte por onde convinha à
minha qualidade, pois casamentos desiguais nem se gozam, nem aturam muito no gosto com que
principiam. Todas estas razões lhe ponderei, com outras muitas, que nem já me lembram; mas todas
foram para ele escusadas. Quem não tenciona satisfazer não regateia condições no contratar. Aqui
fiz dentro de mim este rápido discurso: “Não serei eu a primeira, que por via de matrimônio haja
subido a grandezas; nem D. Fernando também será o primeiro, a quem formosura ou cegueira de
afeição, que é o mais natural, tenha feito procurar companheira inferior. Se eu não posso mudar o
mundo, nem introduzir nele costumes novos, convém-me aproveitar esta honra que a sorte me
depara, ainda que neste o fervor presente só dure enquanto o desejo se lhe não sacia. Ao menos
perante Deus serei sua esposa. Se com desprezos o despedisse no aperto em que me vejo, em lugar
de cumprir o que deve abusará da força, e ficarei irremediavelmente desonrada, e sem desculpa aos
olhos de quem não souber quão inocentemente sucumbi. Como poderão convencer-se meus pais, e
as outras pessoas, de que este fidalgo entrou no meu aposento sem anuência minha?” — Todas estas
dúvidas e certezas me tumultuaram instantaneamente no espírito, e começaram a inclinar-me ao que
se tornou, sem o eu cuidar, a minha perdição. Eram os juramentos de D. Fernando; eram os
testemunhos que invocava, as lágrimas que o inundavam, e, por último, o seu garbo e a sua
gentileza, que, reforçando-se com tantas e tamanhas mostras de verdadeiro amor, sobrariam a
render a qualquer outro coração tão livre e recatado como era o meu. Chamei pela minha criada,
para ter também na terra uma testemunha, além das do outro mundo, que depusesse em meu favor.
Reiterou e confirmou de novo D. Fernando os seus juramentos, juntou novos santos por
testemunhas, imprecou sobre si mil castigos para o caso de não cumprir o que me prometia, tornou
a chorar, suspirar e gemer, apertou-me mais entre os braços, donde ainda me não tinha soltado; e
com isto, e com sair do aposento a minha donzela, deixei eu de o ser, e ele consumou o seu feito de
traidor. O dia seguinte à noite da minha desgraça não alvoreceu tão depressa como D. Fernando
desejaria, segundo penso, porque, saciado um apetite brutal, ouço que o maior gosto para um
desalmado é fugir donde o extorquiu. D. Fernando apressou-se, com efeito, em se apartar de mim;
e, auxiliado pela minha serva, que era a própria que para ali me introduzira, antes de amanhecer
estava já na rua. Na despedida ainda me disse que tivesse fé nas suas promessas, mas já então com
menos intimativa. Para mais confirmação da sua palavra, passou do seu para o meu dedo um rico
anel. Com efeito partiu, deixando-me não sei se triste, se contente; confusa e pensativa, sei eu que
sim, e quase fora de mim com a minha transformação. Não tive ânimo nem lembrança de ralhar à
minha aia pela traição que me fizera, encerrando a D. Fernando no meu próprio aposento, porque
nem ainda atinava se realmente era bem, ou mal, o que me havia acontecido. No momento de se
partir D. Fernando, disse-lhe eu que, pelo mesmo modo como entrara naquela noite, podia vir todas
as mais que desejasse, visto ser eu já sua, faltando só publicar-se o sucesso, o que seria quando ele
quisesse. Voltou ainda na seguinte noite, mas foi então pela última vez; nem eu o tornei a avistar,
nem na rua nem na Igreja, no decurso de um mês, por mais que me cansasse em solicitá-lo (ainda
que soube que estava na cidade, e que ia quase diariamente à caça, seu exercício de predileção).
Todo este comprido prazo foi para mim de horas minguadas e amargas, bem o posso dizer.
Entraram-me a crescer dúvidas; principiei a descrer da verdade de D. Fernando, e a minha aia
começou a ouvir-me as justas repreensões, que eu dantes lhe poupava. Foi-me necessário resguardar
as minhas lágrimas e disfarçar as mostras do semblante, para não dar azo a que meus pais me
perguntassem de que andava eu pesarosa, obrigando-me com isso a idear mentiras para os
satisfazer. Mas tudo isto se acabou de repente; chegou um lance em que se atropelaram respeitos, e
os discursos honrados deram fim; perdeu-se-me a paciência e saíram a público os meus segredos.
Toda esta resolução rebentou por se ter espalhado a cabo de alguns dias, no povo do lugar, que
numa cidade perto se havia casado D. Fernando com uma donzela em todo o extremo formosíssima
e de mui esclarecida ascendência, posto que não tão rica, que em razão do dote pudesse aspirar a tão
nobre casamento. Disse-se que se chamava Lucinda, com outras coisas que naquele desposório
ocorreram, dignas de admiração.
Cardênio, ao nome de Lucinda, o que só fez foi encolher os ombros, morder os lábios, franzir as
sobrancelhas, e, passado pouco, deixar correr dos olhos duas fontes de lágrimas.
Dorotéia nem por isso deixou de seguir a sua fala, dizendo:
— Chegou-me aos ouvidos esta nova terrível; e, em lugar de se me gelar o coração, tamanha foi a
raiva que nele se me acendeu, que pouco faltou para eu não sair pelas ruas dando vozes, e
publicando a aleivosia que se me tinha feito; mas aquietei por então o excesso da fúria, com a ideia
de pôr essa mesma noite por obra o que realmente pus, que foi entrajar-me neste hábito que me deu
um dos chamados pegureiros nas casas de lavoura, que era servo de meu pai, ao qual descobri toda
a minha desventura, rogando-lhe me acompanhasse até à cidade em que assentei encontrar o meu
inimigo. O pastor, depois de ter repreendido a minha ousadia e encarecido a fealdade da minha
determinação, vendo-me inabalável no meu propósito, prontificou-se a acompanhar-me até ao cabo
do mundo que fosse. No mesmo instante atei numa trouxinha de pano de linho um vestido de
mulher, e algumas joias e dinheiros, para o que pudesse suceder; e pela calada da noite, sem nada
dizer à minha traidora donzela, saí de casa acompanhada do meu criado, e entregue a mui diversas
fantasias, e me pus a caminho para a cidade a pé, voando, não tanto pelo desejo de chegar, pois não
podia estorvar o que tinha por consumado, como para perguntar a D. Fernando como tivera valor
para acumular tantas perfídias. Em dois dias e meio cheguei à cidade, e perguntei pela rua dos pais
de D. Lucinda. O primeiro a quem me dirigi respondeu-me mais do que eu desejara ouvir; mostrou-me a casa, e me referiu quanto no desposório sucedera, coisa tão falada, que por toda a parte se
faziam conventículos, em que se não tratava doutra coisa. Disse-me que na noite do casamento de
D. Fernando com D. Lucinda, depois dela ter proferido o sim, lhe tinha dado um rijo desmaio, e
que, chegando o marido a desatacar-lhe o peito para lhe dar o ar, lhe achou um papel escrito do
próprio punho dela, em que declarava que não podia ser esposa de D. Fernando, porque já o era de
Cardênio, que, segundo o homem me disse, era um cavaleiro mui principal da mesma cidade, e que
se havia dado o sim a D. Fernando, fora por sujeição a seus pais. Em suma, tais razões disse
conterem-se no papel, que bem se entendia que a intenção dela tinha sido de matar-se logo após o
ato do desposório, e ali mesmo dava os porquês do seu suicídio. Dizem que a verdade de tudo
aquilo se confirmou por lhe terem achado uma adaga oculta no vestido, não sei onde. Presenciado
tudo aquilo por D. Fernando, este, por entender que Lucinda o havia burlado e escarnecido,
arremeteu a ela ainda desmaiada, e com a mesma adaga que lhe acharam a quis atravessar; e fá-lo-ia,
se os pais e mais pessoas presentes o não estorvassem. Mais disseram que D. Fernando
desaparecera logo dali, e que D. Lucinda não tornara em si até ao outro dia, e que então contara a
seus pais que era verdadeira esposa do sobredito Cardênio. Soube, além disso, que ele, o Cardênio,
assistira, segundo se dizia, àquele tremendo desposório, e vendo-a casada (o que ele nunca
imaginara) saiu da cidade desesperado, deixando-lhe uma carta em que explicava a Lucinda o
agravo que lhe havia feito, e que ele se ia para onde nunca mais alguém o visse. Tudo isto era
público e notório. Ninguém falava doutra coisa, e mais vieram a falar ainda, quando se espalhou
que Lucinda tinha desaparecido da casa paterna e da povoação, pois em parte nenhuma deram com
ela, coisa de que seus pais andavam loucos, sem saberem que fizessem para a recobrarem. Estas
novas que recebi afugentaram de todo as minhas esperanças, e tive por melhor o não haver achado a
D. Fernando, que se o achasse casado, por me parecer que assim não era de todo impossível a
minha reparação. Chegou-se-me a figurar que talvez o céu tivesse posto aquele impedimento ao
segundo matrimônio, para lhe dar ocasião de conhecer o que ao primeiro devia, e a cair na conta de
que era cristão, e que mais devia à sua alma que aos respeitos humanos. Tudo isto revolvia eu na
fantasia, supondo em vão consolar-me com umas esperanças remotas e desmaiadas para alimento da
vida que já aborreço. Ora conservando-me eu ainda na cidade sem saber que fizesse, pois não
achava a D. Fernando, chegou aos meus ouvidos um pregão público, prometendo um grande prêmio
a quem me achasse, dando os sinais da minha idade e do meu trajar; e ouvi que se dizia ter-me
tirado de casa de meus pais o moço que me acompanhara, coisa que me feriu no íntimo, por ver
quão decaído me andava já o crédito. Não bastava a minha fuga, faltava-me para raptor um homem
tão baixo e tão pouco merecedor das minhas atenções. Logo que tal pregão ouvi, pus-me fora da
cidade com o meu servo, que já principiava a dar mostras de titubear na lealdade prometida, e nessa
mesma noite entramos pela espessura deste monte para não sermos achados. Mas bem dizem que
um mal nunca vem só, e que o fim de uma desgraça é princípio de outra maior. Assim me sucedeu a
mim, porque o bom do meu criado, homem até então fiel e seguro, assim que me viu naquela
solidão, mais incitado da sua velhacaria que da minha formosura, quis aproveitar a oportunidade
que ao seu parecer lhe deparavam estes ermos; e sem resguardo de vergonha, nem temor de Deus,
nem respeito à minha pessoa, me requestou. Desenganado com as minhas respostas injuriosas e
justas aos seus desavergonhados projetos, deixou-se das rogativas por onde havia começado e
passou a empregar a força. O céu, porém, que poucas vezes deixa de ajudar o que é justo, olhou por
mim, de modo que eu, débil e sem grande trabalho, dei com ele de um precipício abaixo, onde o
deixei não sei se morto, se vivo; e logo, com mais presteza do que se pudera esperar da minha
canseira e de tamanho sobressalto, me entranhei por estes sítios montesinos, sem outro intuito senão
homiziar-me às pesquisas de meus pais, e da gente que por ordem sua me andava rastreando. Aqui
me embosquei há não sei já quantos meses; achei um maioral, que me levou por seu criado a um
lugar no coração destes montes. De pastor lhe tenho servido todo este tempo, procurando sempre os
descampados para encobrir estes cabelos, que tão inesperadamente agora me revelaram. Nada me
valeram porém tantas cautelas; veio meu amo a saber que eu não era varão, e entrou na mesma
danada tentação do servo; e, como nem sempre a fortuna põe a par dos males os remédios, não
achei precipício nem barranco onde despenhar e despenar ao amo, como ao outro havia feito, e
assim tive por melhor fugir-lhe e esconder-me de novo entre estas asperezas, que experimentar com
ele as minhas forças, desculpas ou rogativas. Tornei pois a embrenhar-me onde sem impedimento
pudesse com suspiros e lágrimas suplicar ao céu se condoesse das minhas desventuras e me
concedesse modo como sair delas, ou deixar a vida entre estas soledades, sem que fique lembrança
desta triste, que tão sem culpa sua deu causa a que se fale dela, e a desabonem na terra do seu
nascimento e nas alheias.
Leia também:
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XV
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXVIII(b)
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXIX(a)
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D. QUIXOTE
VOL. I
Cervantes
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte
(1605)
Miguel de Cervantes [Saavedra]
(1547-1616)
Tradução:
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875)
Visconde de Castilho
Edição
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Fonte Digital
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com
(1999, 2005)
Copyright
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho
António Feliciano de Castilho
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879)
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914)
Edição: 2005 eBooksBrasil.com
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