Os Bruzundangas
Lima Barreto
Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.
Capítulo I
Um grande financeiro
A República dos Estados Unidos da Bruzundanga tinha, como todas as repúblicas que se prezam,
além do presidente e juízes de várias categorias, um Senado e uma Câmara de Deputados, ambos
eleitos por sufrágio direto e temporários ambos, com certa diferença na duração do mandato: o dos
senadores, mais longo; o dos deputados, mais curto.
O país vivia de expedientes, isto é, de cinquenta em cinquenta anos, descobria-se nele um
produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos taxavam-no a mais não poder, de modo que os
países rivais, mais parcimoniosos na decretação de impostos sobre produtos semelhantes, acabavam,
na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e, assim, ela fazia morrer a sua riqueza, mas não sem os
estertores de uma valorização duvidosa. Daí vinha que a grande nação vivia aos solavancos, sem
estabilidade financeira e econômica; e, por isso mesmo, dando campo a que surgissem, a toda a hora,
financeiros de todos os seus cantos e, sobretudo, do seu parlamento.
Naquele ano, isto há dez anos atrás, surgiu na sua Câmara um deputado que falava muito em
assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e indiretos e outras cousas cabalísticas da ciência
de obter dinheiro para o Estado.
A sua ciência e saber foram logo muito gabados, pois o Tesouro da Bruzundanga, andando quase
sempre vazio, precisava desses mágicos financeiros, para não se esvaziar de todo.
Chamava-se o deputado — Felixhimino Ben Karpatoso. Se era advogado, médico, engenheiro
ou mesmo dentista, não se sabia bem; mas todos tratavam-no de doutor.
O doutor Karpatoso tinha uma erudição sólida e própria em matéria de finanças. Não citava
Leroy-Beaulieu absolutamente. Os seus autores prediletos eram o russo-polaco Ladislau Poniatwsky, o
australiano Gordon O’Neill, o chinês Ma-Fi-Fu, o americano William Farthing e, sobretudo, o doutor
Caracoles y Mientras, da Universidade de Caracas, capital da Venezuela, que, por ser país sempre em
bancarrota, dava grande autoridade ao financista de sua principal universidade.
O físico do deputado era dos mais simpáticos. Tinha um ar de Gil-Blas de Santillana, em certas
ilustrações do romance de Le Sage, com as suas barbas negras, cerradas, longas e sedosas, muito cuidadas
e aparadas à tesoura diariamente. A tez era de um moreno espanhol; os cabelos, abundantes e de azeviche;
os olhos, negros e brilhantes; e não largava a piteira de âmbar, com guarnições de ouro, onde fumegava
sempre um charuto caro.
O seu saber em matéria de finanças e economia política determinava a sua constante escolha para
relator do orçamento da receita. Era de ver como ele escrevia um substancial prefácio ao seu relatório.
Não me recordo de todas as passagens importantes de alguns deles; mas, de certas, e é pena que sejam
tão poucas, eu me lembro perfeitamente. Eis aqui algumas. Para o orçamento de 1908, o doutor Karpatoso
escreveu o seguinte trecho profundo: “Os governos não devem pedir às populações que dirigem, em
matéria de impostos, mais do que elas possam dar, afirma Ladislau Poniatwsky. A nossa população é
em geral pobríssima e nós não devemos sobrecarregá-la fiscalmente.” Não impediu isto que ele
propusesse o aumento da taxa sobre o bacalhau da Noruega, pretextando haver produtos similares nas
costas do país.
No orçamento do ano seguinte, ainda como relator da receita, ele dizia: “É missão dos governos
modernos, em países de fraca iniciativa individual (o nosso o é), fomentar o aparecimento de riquezas
novas, no dizer de Gordon O’Neill. A província das Jazidas, segundo um sábio professor francês, é um
coração de ouro sob um peito de ferro. O pico de Ytabhira, etc.”
E lembrava à Câmara que indicasse medidas práticas para o aproveitamento do ouro e do ferro da
província das Jazidas. A Câmara e o Senado ouviram-no e votaram algumas centenas de contos para
uma comissão que estudasse o meio prático de aproveitar o ferro da rica província central. A comissão
foi nomeada, montaram o escritório de pesquisas na capital, em lugar semelhante ao Largo da Carioca,
e o pico de Ytabhira ficou intacto.
A fama do doutor Karpatoso subia e a sua elegância também. Fez uma viagem à Europa, para
estudar o mecanismo financeiro dos países do Velho Mundo. Voltou de lá naturalmente mais sábio; o
que, porém, ele trouxe de fato, nas malas, e foi verificado pelos elegantes do país, foram fatos, botas,
chapéus, bengalas, dernier bateau, como dizem os smarts das colônias francesas da Ásia, da África, da
América e da Oceania.
Arreado de novo e inteiramente europeu, o doutor Karpatoso começou a figurar nas seções
mundanas dos jornais, e, vencendo o senhor Mikel de Longueville, outro deputado da Bruzundanga, foi
tido como o parlamentar mais chic do Congresso Nacional.
“A elegância do doutor Mikel de la Tour d’Auvergne é um tanto pesada; tem algo da solidez
lusitana quando enrijou os músculos ao machado nos cepos dos açougues; a do doutor Ben Karpatoso
é mais leve, mais ligeira, mais nervosa. Parece ter sido obtida com o exercício do florete.”
Tudo isto foi dito na seção elegante — “De Cócoras” — do Diário Mercantil, jornal da capital,
seção redigida por escritor que tinha, em matéria de compor romances, um grande parentesco com
aquela raposa das uvas, cuja história La Fontaine contou. “Ils sont trop verts, et bons pour des goujats”,
disse a raposa quando não pôde atingir as uvas. Lembram-se?
O elogio que o tal senhor fez aos ademanes do doutor Karpatoso tinha origem no boato a correr
de que, muito em breve, ele seria indicado para ministro da Fazenda, e o tal redator da seção — “De
Cócoras” — tinha sempre em mira descobrir os ministros futuros, para ulteriores serviços de sua
profissão e recompensas consequentes.
Mikel de Bouillon é que ficou aborrecido com a cousa; mas como tinha certeza de sair, pelo
menos, vice-presidente da Bruzundanga, abafou o azedume, encerou bem os bigodes e continuou a
pisar os passeios das ruas centrais da capital, com uma estudada solenidade — lento, ereto como um
soba africano que tivesse envergado um fardão de oficial de marinha e se coberto com o respectivo
chapéu armado, encontrados nos salvados de um naufrágio, em uma praia deserta. Via-se bem que
Turenne Calmon era daqueles que se satisfazem em ser o segundo em Roma, e que segundo!
Desde que se rosnou que o doutor Karpatoso seria ministro da Fazenda do futuro quadriênio, a
sua casa começou a encher-se. Karpatoso era casado com uma senhora da roça, muito segura das suas
origens nobres; ela pertencia à família dos Silvas, cujo armorial e pergaminhos não tinham sido
outorgados por nenhum príncipe soberano. Como Napoleão que, segundo dizem, na sua sagração de
imperador, pôs ele mesmo a coroa na cabeça, Dona Hengrácia Ben Manuela Kilva tinha ela mesmo se
enobrecido.
Felixhimino, como bom financeiro que era, possuía qualidades harpagonescas de economia e
poupança, de forma que se zangava muito com aquelas despesas de chá e biscoutos, que era obrigado
a oferecer aos visitantes. A fim de não mexer nas economias que fazia sobre seu subsídio teve a ideia
genial de fundar uma casa de herbanário, em uma espécie de Rua Larga de São Joaquim da capital da
República da Bruzundanga. Arranjou uma pessoa de confiança, que pôs à testa do negócio; e ei-lo a
vender chá mineiro, alfavaca, “língua-de-vaca”, cipó-chumbo, malícia-de-mulher, erva-cidreira, jurubeba,
catinga-de-bode, mata-pão, erva-tostão, bicuíba, óleo de capivara, cascos de jacarés, corujas empalhadas,
caramujos, sapos secos, jabutis, etc. Em breve, ficou sendo o principal fornecedor dos feiticeiros da
cidade, e os lucros foram grandes, de modo que ele pôde, sem mais gravame nas suas finanças, sustentar
o seu salão.
Mme. Hengrácia Ben Karpatoso, centro de conversa, não se cansava de gabar os árduos trabalhos
do marido.
Certa vez, em que houvera recepção na casa do famoso deputado, quando ele já se tinha retirado
para os aposentos do andar superior, a fim de estudar não sei o que, sua mulher ficou na sala de visitas
a conversar com algumas amigas e alguns amigos. Alguém, a um tempo da conversa, observou:
— Isto vai tão mal, que não sei mesmo quem nos salvará.
Mme. Hengrácia, tal e qual Mme. de Girardin, em certa ocasião, apontou o dedo para o teto e
disse sacerdotalmente:
— Ele!
Todos se entreolharam e o doutor Moscoso completou:
— Sim: Deus!
— Não, — observou Dona Hengrácia. — Ele, o Felixhimino, quando for ministro da Fazenda.
Ele há de sê-lo em breve.
Todos concordaram. Não se cumpriu, porém, a profecia da pitonisa conjugal, pois o novo presidente
da Bruzundanga — Idle Bhrás — não fez Ben Karpatoso ministro do Tesouro.
O sábio deputado continuou, porém, na sua atividade financeira, a relatar orçamentos com saldos,
mas que sempre, ao fim do exercício, se fechavam com deficits.
Certo dia, Idle Bhrás de Grafofone e Cinema mandou-o chamar a palácio e disse-lhe:
— Karpatoso, o orçamento fecha-se sempre com deficit. Este cresce de ano para ano... Tenho que
satisfazer compromissos no estrangeiro... Espero que você me arranje um jeito de aumentarmos a
receita. Você tem estudos sobre finanças e não será difícil para você...
A isto Felixhimino respondeu com toda a segurança:
— Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa.
Três dias após, ele tinha as ideias salvadoras: aumentava do triplo a taxa sobre o açúcar, o café, o
querosene, a carne-seca, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca, o trigo e o bacalhau; do dobro, os
tecidos de algodão, os sapatos, os chapéus, os fósforos, o leite condensado, a taxa das latrinas, a água,
a lenha, o carvão, o espírito de vinho; criava um imposto de 50% sobre as passagens de trens, bondes e
barcas, isentando a seda, o veludo, o champagne, etc., de qualquer imposto. Calculando tudo, ele obtinha
trinta mil contos. Levou a cousa a Idle Bhrás de Grafofone e Cinema, que gabou muito o trabalho de
Ben Karpatoso:
— Tu és um Colbert e mais ainda: és o João Ben Venanko, aquele—não sabes? — que foi presidente
da Câmara de Guaporé, minha terra. Ele sempre teve ideias semelhantes às tuas, mas não as aceitavam,
por isso nunca o município prosperou. Entretanto, era um pobre meirinho... Que financeiro!
Apresentadas as ideias de Felixhimino à Câmara, muitos deputados se insurgiram contra elas.
Um objetou:
— Vossa Excelência quer matar de fome o povo da Bruzundanga.
— Não há tal; mas mesmo que viessem a morrer muitos, seria até um benefício, visto que o preço
da oferta é regulado pela procura e, desde que a procura diminua com a morte de muitos, o preço dos
gêneros baixará fatalmente.
Um outro observou:
— Vossa Excelência vai obrigar o povo a andar nu.
— Não apoiado. O vestuário deve ser uma cousa majestosa e imponente, para bem impressionar
os estrangeiros que nos visitem. A seda e a lã ficarão pouco mais caras que os tecidos de algodão. Toda
a gente vestir-se-á de seda ou de lã e as populações das nossas cidades terão um ar de abastança que
muito favoravelmente há de impressionar os estrangeiros.
Um outro refletiu:
— Vossa Excelência vai impedir o movimento de passageiros dentro da cidade e dentro do país.
Será um benefício. O barateamento das passagens só traz a desmoralização da família. Com as
passagens caras, diminuirão os passeios, os bailes, as festas, as visitas, os piqueniques, conseguintemente
os encontros de namorados, a procura de casas suspeitas, etc., de forma que os adultérios e as seduções
sensivelmente hão de ser mais raros.
Dessa maneira, o genial Karpatoso, êmulo do meirinho Ben Venanko, o financeiro, foi arredando
uma por uma as objeções que eram feitas ao seu projeto de orçamento da receita.
Houve uma crise no ministério e logo ele foi nomeado ministro da Fazenda, com o orçamento
que fizera votar. Foram tais os processos de contrabando que teve de estudar, tanto meditou sobre eles,
que, um dia, telegrafou a um seu subalterno que apreendera um grande, um imenso contrabando e
prendera os infratores, desta forma: “Fuzile todos”.
O homem estava louco e morreu pouco depois. A seção elegante de um jornal de lá, o Diário
Mercantil — “De Cócoras” — fez-lhe o necrológio; o novo ministro, entretanto, não pagou, ao redator
dela, nada pelo serviço assombroso que prestara às letras do país.
continua na página 14...
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Leia também:
Os Bruzundangas - Capítulo I : Um grande financeiro
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
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Departamento Nacional do Livro
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