quinta-feira, 7 de março de 2024

Moby Dick: 19 - O Profeta

Moby Dick

Herman Melville


1 - O PROFETA

“Marinheiros! Vos engajastes naquele navio?”

   Queequeg e eu havíamos acabado de deixar o Pequod e afastávamo-nos lentamente do mar, cada um ocupado com os seus pensamentos, quando aquelas palavras foram proferidas por um estranho, que parou diante de nós, e apontou seu grande dedo indicador na direção do navio. Estava vestido com um casaco surrado e calças remendadas; um pedaço de um lenço negro envolvia seu pescoço. Uma máscara pustulenta de bexigas espalhara-se por todas as direções de seu rosto, do qual restava algo como uma complicada rede de córregos, cujas águas já haviam secado.

“Vos engajastes como marinheiros naquele navio?”, repetiu.

“Você quer dizer o Pequod, eu imagino”, disse eu, tentando ganhar tempo para dar mais uma olhada nele.

“Sim, o Pequod – aquele navio ali”, ele disse, retraindo o braço, e então lançando-o rapidamente para a frente de novo, com a baioneta fixa de seu dedo apontada para o navio.

“Sim”, eu disse, “acabamos de assinar contrato.”

“Alguma coisa nele sobre vossas almas?” 

“Sobre o quê?” 

“Bem, talvez vós nem tenhais almas”, ele respondeu depressa. “Não importa, conheço muitos tipos que não têm – estão numa situação melhor. A alma é uma espécie de quinta roda em uma carroça.”

“Que conversa besta é essa, companheiro?”, perguntei.

“Mas ele tem o suficiente para compensar todas as deficiências de outros camaradas”, disse o estranho, abruptamente, colocando uma ênfase nervosa na palavra ele. 

“Queequeg”, eu disse, “vamos embora; esse sujeito escapou de algum lugar; está falando sobre uma coisa e uma pessoa que não conhecemos.”

“Parai!”, gritou o estranho. “Disseste a verdade – não viste o Velho Trovão, não é?”

“Quem é o Velho Trovão?”, perguntei fascinado pelo seu jeito insensato e veemente. 

“O Capitão Ahab.”

“O quê? O capitão do nosso navio, o Pequod?” 

“Sim, de todos nós, marinheiros velhos de guerra, é ele que atende por esse nome. Vós não o vistes, não é?”

“Não. Disseram que está doente, mas que está melhorando e que em breve ficará direito de novo.” 

“Em breve ficará direito de novo!”, riu-se o estranho com uma gargalhada de escárnio. “Vede bem; quando o Capitão Ahab estiver direito, este meu braço esquerdo também ficará; não antes!”

“O que você sabe a respeito dele?”

“O que vos contaram a respeito dele? Dizei!” 

“Não contaram muita coisa sobre ele; sei apenas que ele é um bom pescador de baleias e um bom capitão para sua tripulação.” 

“Isso é verdade, isso é verdade – sim, as duas afirmações são verdadeiras. Mas quando ele dá uma ordem é preciso obedecer imediatamente. Marchar e rosnar; rosnar e ir – é assim com o Capitão Ahab. Mas não contaram nada sobre o que aconteceu com ele perto do cabo Horn, há muito tempo, quando ele ficou deitado como um morto por três dias e três noites; não contaram nada sobre o combate mortal com o espanhol diante do altar em Santa? – não ouvistes nada a respeito disso? E nada sobre a cabaça de prata na qual ele cuspiu? E nada sobre como perdeu sua perna na última viagem, para que se cumprisse uma profecia? Não ouvistes nada sobre esses assuntos e alguns outros, não é? Não, acho que não; como poderíeis? Quem é que sabe? Acho que ninguém sabe em Nantucket. Mas em todo caso ouvistes falar da perna e de como a perdeu; sim, isso vós escutastes. Ah, sim, isso todos sabem – ou seja, sabem que ele só tem uma perna; e que um cachalote levou a outra.” 

“Meu amigo”, eu disse, “aonde você quer chegar com esse blábláblá, eu não sei e nem quero saber; porque me parece que você não bate muito bem. Mas se estiver falando do Capitão Ahab, daquele navio ali, o Pequod, permita que eu lhe diga que sei tudo sobre a perda da perna.”

“Tudo sobre a perna, é? Tens certeza? Tudo?”

“Absoluta.”

   Com o dedo apontado e os olhos erguidos na direção do Pequod, o estranho com cara de mendigo ficou parado por uns instantes, como se estivesse mergulhado numa conturbada meditação; depois se mexeu um pouco, virou-se e disse: – “Vos engajastes como marinheiros, não é? Com os nomes no papel? Bem, o que está assinado, assinado está; e o que será, será; talvez não aconteça nada. De qualquer modo, já está combinado e determinado; imagino que alguns marinheiros tenham que ir com ele; de uns e de outros, que Deus tenha piedade! Um bom dia, companheiros de bordo, bom dia; que os inefáveis céus vos abençoem; lamento ter-vos incomodado.”

“Escute aqui, amigo”, eu disse, “se você tem algo importante a nos dizer, desembuche; mas, se estiver querendo engambelar a gente, está perdendo o seu tempo; é tudo o que tenho a dizer.” 

“Muito bem, gosto de ouvir um camarada falando desse jeito; você é o homem certo para ele – como outros iguais a ti. Bom dia, companheiros, bom dia! Ah, quando chegarem lá, digam que decidi não ser um deles.”

“Ah, meu caro amigo, não pode nos enganar dessa maneira – não pode nos enganar. Nada mais fácil para um homem do que fingir que guarda consigo um enorme segredo.” 

“Bom dia, companheiros, bom dia.”

“De fato, bom dia”, eu disse. “Venha, Queequeg, vamos deixar esse louco. Mas espere aí, não quer dizer como se chama?”

“Elijah.”

   Elijah! Pensei, e afastamo-nos fazendo comentários, cada um a seu modo, sobre o velho marinheiro maltrapilho; e concordamos que devia ser apenas um cara-de-pau querendo se fazer de bicho-papão. Mas não tínhamos nos afastado nem cem jardas quando, ao virar uma esquina e olhar para trás, vi Elijah a certa distância. De certo modo, fiquei impressionado ao vê-lo, mas não disse nada a Queequeg, e prossegui com meu camarada, ansioso por ver se o estranho viraria a mesma esquina que nós. Ele virou; então me pareceu que estava nos seguindo, mas não tinha ideia de qual seria sua intenção. Aquelas circunstâncias, combinadas com seu jeito ambíguo, meio revelador, meio escondido de falar, despertou em mim todos os tipos de apreensões e questionamentos em relação ao Pequod; ao capitão Ahab; à perna que tinha perdido; ao ataque que sofrera no cabo Horn; à cabaça de prata; ao que o capitão Peleg tinha dito sobre ele quando eu saí do navio no dia anterior; à profecia da indígena Tistig; à viagem que íamos empreender; e centenas de outras coisas obscuras. 
   Para saber, afinal, se o maltrapilho Elijah estava mesmo nos seguindo, atravessei a rua com Queequeg; do outro lado, andamos em sentido contrário. Mas Elijah prosseguiu como se não tivesse percebido. Foi um alívio para mim; e mais uma vez, e definitivamente, do fundo de meu coração, repeti para mim mesmo, que cara-de-pau.  

Moby Dick: 19 - O Profeta
Moby Dick: 20 - Tudo em atividade
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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