terça-feira, 21 de agosto de 2018

Edgar Allan Poe - Contos: Morella

Edgar Allan Poe - Contos




Morella
Título original: Morella
Publicado em 1835


O mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, homogéneo, eterno. 
— Platão




Senti um estranho e profundo afeto pela minha amiga Morella. Conhecemo-nos casualmente há muitos anos. A minha alma, desde o primeiro momento, incendiou-se com um fogo desconhecido — mas não o fogo de Eros. 

O meu espírito foi desde logo atormentado pela convicção crescente de que nunca poderia definir o singular caráter de Morella, nem dominar a sua intensidade errante. O destino uniu-nos perante o altar. Nunca falei de paixão, nunca pensei em amor. Ela fugia dos outros e, consagrando-se a mim, fez-me feliz. A surpresa já é uma felicidade; não o será também o sonho? 

A erudição de Morella era profunda. Vou demonstrar que o seu talento não era secundário e que o poder do seu espírito alcançava proporções gigantescas. Fui seu discípulo em muitas ocasiões. 

Cedo me apercebi de que Morella, por virtude da sua educação feita em Presburgo, preferia os escritos místicos, considerados geralmente como a essência da melhor literatura germânica. Estes livros constituíam a sua obsessão constante e predileta. Com o tempo também o foram para mim, mas fui indubitavelmente sugestionado pelo exemplo e pelo hábito. 

A razão não intervinha em coisa alguma destas. As minhas convicções não se basearam nunca num ideal, e, por mais que aprofundasse, nunca as minhas leituras, os meus atos ou os meus pensamentos tiveram a menor inclinação mística. Convencido disso, abandonei-me cegamente à direção de minha mulher, e entrei, com o coração tranquilo, no labirinto dos seus estudos. 

Quando, ao mergulhar nas páginas malditas, sentia que um espírito maligno se ia introduzindo em mim, Morella aproximava-se e, colocando a sua mão iria sobre a minha, expulsava as cinzas de uma filosofia morta, com graves e singulares palavras, cujo sentido estranho se incrustava na minha memória. Eram essas as horas em que gostava de sonhar ao pé dela e de mergulhar na música da sua voz até que os acentos melódicos me penetravam de horror e uma sombra caía sobre a minha alma fazendo-a empalidecer e estremecer com essas vibrações de sons ultra telúricos. 

Desta maneira o prazer transformava-se subitamente em terror e o ideal do belo convertia-se num ideal odioso. É inútil procurar definir o aspecto real dos problemas que, surgindo dos livros já citados, constituíram durante longo tempo o único motivo de conversa entre mim e Morella. Os eruditos, nisso a que chamam a moral teológica, compreendê-lo-iam facilmente. O estranho panteísmo de Fichte, a palingenesia modificada dos pitagóricos e sobretudo a doutrina da Identidade, tal como a apresenta Schelling, eram geralmente os pontos principais cuja discussão encantava a imaginativa Morella. 

Esta identidade, chamada pessoal, baseia-a Locke — e no meu entender muito justamente — na permanência do ser racional. Desde que por pessoa entendemos uma consciência sempre acompanhada de pensamentos, é precisamente essa consciência o que nos faz a todos sermos nós mesmos, distinguindo-nos assim dos outros seres pensantes e conferindo-nos uma identidade pessoal. 

Mas o principium individuationis, a noção desta identidade — que na morte se perde ou não perde para sempre — constituiu para mim um problema do maior interesse, não somente pela inquietante natureza das suas consequências, mas também pela maneira singular e agitada com que Morella falava a esse respeito. 

Tinha, na realidade, chegado o momento em que o mistério da natureza de minha mulher me oprimia como um encantamento. Não podia suportar o contato dos seus dedos pálidos, nem o timbre profundo da sua palavra musical, nem o resplendor dos seus olhos melancólicos. 

Ela sabia tudo isto e não me censurava. Parecia ter consciência da minha debilidade ou da minha loucura e chamava-lhe, sorrindo, o Destino. Parecia saber o segredo da causa, para mim desconhecida, daquela diminuição gradual do meu afeto, mas não dava nenhuma explicação nem aludia, por pouco que fosse, à natureza dessa causa. E, no entanto, Morella não era mais que uma mulher que se aproximava da morte todos os dias. 

Manchas purpúreas fixaram-se, imutáveis, nas suas faces. As veias azuis da sua fronte tornaram-se salientes. E quando o meu espírito se enchia de piedade ao vê-la, encontrava o relâmpago dos seus olhos carregados de pensamentos, e a compaixão transformava-se em mal-estar. Sentia vertigem do lúgubre e insondável abismo onde aquele olhar me mergulhava. 

Atrever-me-ei a dizer que aguardava, com um desejo intenso e devorador, o momento da morte de Morella? 

Assim era. Mas o frágil espírito agarrou-se ao seu invólucro argiloso durante muitos dias, muitas semanas, muitos meses, de uma forma tão aborrecida que, por fim, os nervos torturados venceram a razão. Enfureciam-me todos esses atrasos, e com o coração enraivecido maldisse os dias, as horas, os minutos amargos que pareciam alongar-se, alongar-se incessantemente, à medida que a sua nobre vida declinava, como a luz ao agonizar do dia. 

Mas uma noite de outono, quando o ar dormia imóvel no céu, Morella chamou-me para a sua cabeceira. 

A névoa cobria a terra. Sobre as águas flutuavam ondas ardentes e o esplendor de outubro, sobre o fundo da selva, era como um arco-íris caído do firmamento.

 — Eis o dia dos dias! — exclamou ela ao ver-me aproximar. — Um dia entre todos para viver ou para morrer! Formoso dia para os filhos da terra e da vida. Mas — ai! — mais formoso ainda para os filhos do céu e da morte! 

Beijei-lhe a fronte e ela continuou: 

— Vou morrer, e, no entanto, viverei. 

— Morella! 

— Em nenhum dos dias anteriores te foi permitido amar-me; mas, àquela que aborreceste viva, adorá-la-ás morta. 

— Morella! 

— Repito que vou morrer. Mas há de perdurar uma recordação do afeto — pobre afeto! — que sentiste por Morella. E quando o meu espírito partir, o filho viverá; teu filho, o meu filho, o filho de Morella. Os teus dias serão cheios de dor, dessa tristeza que é a mais duradoura das impressões, como o cipreste é a mais viva de todas as árvores. As horas da tua felicidade passaram, e o prazer não se colhe duas vezes na mesma vida, como as rosas de Paestum não brotam duas vezes por ano. Não representarás já, com o tempo, o papel de homem de Teos. O mirto e a vinha ser-te-ão desconhecidos e arrastarás, por toda a terra, o teu sudário como o muçulmano. 

— Morella! — exclamei — como sabes isso? 

Mas ela voltou o rosto sobre a almofada; um ligeiro tremor percorreu todo o seu corpo — e morreu. 

Não voltei a ouvir a sua voz. No entanto, tal como o tinha dito, seu filho, aquele filho que, ao morrer, dera à luz, e que não começou a respirar sem que a mãe deixasse de respirar — viveu. 

Era uma menina. O seu corpo cresceu estranhamente; estranhamente aumentou a sua inteligência e veio a ser o perfeito retrato da que tinha partido. E eu amei-a com o amor mais intenso que um homem pode sentir. 

Não passou muito tempo sem que o céu desse puro carinho se ensombrasse e sem que a melancolia, o horror e as angústias passassem sobre ele como nuvens maléficas. Já disse que a menina cresceu estranhamente e que estranhamente se desenvolveu a sua inteligência. 

Nenhuma outra designação além da de estranha merecia realmente aquele rápido crescimento do seu corpo. Oh! Que terríveis e tumultuosos foram os meus pensamentos enquanto vigiava o desenvolvimento do seu ser intelectual! 

Poderia ser de outra maneira, se eu descobria, quotidianamente, nas suas concepções infantis, o poder oculto e as faculdades de uma verdadeira mulher? Se as lições da experiência saíam dos seus lábios de criança? Se via, a cada instante, a sabedoria e as paixões da maturidade brilhar no seu olhar amplo e meditativo? Se já era impossível à minha alma dissimular, por mais tempo, a certeza de que qualquer coisa de terrível e de inquietante se tinha introduzido no meu espírito e que todos os meus pensamentos estavam influenciados pelos estranhas histórias e pelas penetrantes teorias da falecida Morella? 

Furtei então à curiosidade do mundo um ser que o destino me mandava adorar, e no rigoroso refúgio da minha casa continuei a velar com mortal ansiedade por tudo quanto dizia respeito àquele ente adorado. 

Passaram os anos. Todos os dias contemplava o seu santo, o seu doce, o seu eloquente rosto, e ia descobrindo nele numerosos pontos de contato entre a filha e a mãe, entre a melancólica e a morta, e cada vez essas sombras e semelhanças se tornavam mais espessas, mais cheias, mais definidas, mais inquietantes e mais
assustadoramente terríveis de aspecto. 

Era admissível que o seu sorriso se parecesse com o sorriso materno, mas esta semelhança era uma identidade que me fazia estremecer. Era lógico que os seus olhos se parecessem com os de Morella, mas penetravam demasiado nas profundidades da minha alma como outrora o estranho e intenso pensamento da própria Morella. 

No contorno da sua fronte elevada, nos caracóis da sua sedosa cabeleira, no hábito de mergulhar nela os dedos pálidos, no timbre grave e musical da voz e, sobretudo — sobretudo isto! — nas frases e expressões da morta, sobre os lábios da viva, alimentava-se o horrível pensamento devorador, o verme que não queria morrer. 

Assim passaram dois lustros da sua vida e a minha filha continuava sem nome sobre a terra. 

«Minha filha» e «meu amor» eram os nomes habituais ditados pelo meu afeto paternal. A severa reclusão da sua existência não consentia outros. O nome de Morella morrera com Morella. 

Nunca falei de Morella à filha; era-me impossível falar dela. Desta forma, durante o breve período da sua existência, não recebeu quaisquer impressões do mundo exterior além das que eram inevitáveis nos estreitos limites do nosso refúgio. 

Mas, fatalmente, a cerimónia do batismo apareceu ao meu espírito, nesse estado de enervamento e de agitação, como para me libertar dos terrores do destino. Já na pia batismal, hesitei em escolher os nomes : uma série de epítetos de sabedoria e de beleza, de nomes antigos e modernos do meu país e de estranhos países, acudiu-me aos lábios, assim como uma infinidade de apelativos evocadores de nobreza, de ventura e de bondade. 

Que foi que então agitou em mim a recordação da morta? Que demônio me obrigou a suspirar uma palavra cuja simples recordação me fazia sempre afluir torrentes de sangue ao coração e às fontes? Que mau espírito falou do fundo dos abismos da minha alma quando, sob as abóbadas escuras e no silêncio da noite, murmurei ao ouvido do padre as sílabas: Mo-re-lla? Que foi que convulsionou as feições de minha filha e as cobriu da cor da morte quando, ao estremecer ao som quase imperceptível desta palavra, voltou os olhos límpidos para o céu e, caindo prosternada sobre as negras lajes, murmurou: «Aqui estou»? 

Estas simples palavras, clara e friamente distintas, caíram-me no ouvido e dali, como chumbo derretido, infiltraram-se-me, assobiando, no cérebro. Podem passar os anos, mas a recordação daqueles instantes não passará nunca. Ah! As flores e a vinha não eram desconhecidas para mim, mas o acônito e o cipreste cobriram-me de sombras noite e dia. 

Perdi completamente a noção dos lugares e do tempo; as estrelas do destino desapareceram do céu e desde então a terra tornou-se tenebrosa e todas as figuras terrenas passaram junto de mim como sombras voltejantes, entre as quais eu só via uma: Morella! 

O vento suspirava apenas um som, e o mar só tinha um rumor: Morella! 

Morreu, e foram as minhas mãos que a levaram para o túmulo. E ri com um riso amargo quando, ao pôr na campa a segunda, não descobri o menor vestígio da primeira Morella!






_______________________


Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


____________________



Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 







Nenhum comentário:

Postar um comentário