sábado, 11 de agosto de 2018

Edgar Allan Poe - Contos: Berenice (fim)

Edgar Allan Poe - Contos




Berenice
Título original: Berenice
Publicado em 1835






O fechar de uma porta arrancou-me ao meu alheamento, e, erguendo os olhos, vi que minha prima havia saído da sala. Do âmbito desordenado do meu cérebro é que, ai de mim! não saíra nem sairia o branco e tétrico espectro dos dentes! Na sua superfície não havia uma mancha — nem uma sombra no esmalte — nem uma arranhadura nas suas arestas — mas o que eu vira durante o período do seu sorriso bastara para os gravar para sempre na minha memória. 

Via-os agora ainda mais nitidamente do que então. Os dentes! — os dentes! — estavam aqui, ali, por toda a parte, visíveis e palpáveis ante meus olhos; compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os lábios pálidos arrepanhados sobre eles, como no próprio momento da sua primeira e terrível eclosão. 

Surgiu então, em toda a sua plenitude, a fúria da minha monomania, e em vão lutei contra a sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo externo eu não tinha pensamentos senão para os dentes. Desejava-os com uma ansiedade louca. 

Todas as outras coisas e todos os diferentes interesses se apagavam ante a sua exclusiva e absorvente contemplação. 

Eles e só eles estavam presentes aos olhos do meu espírito, e, na sua única individualidade, tornaram-se a essência da minha vida intelectual. Examinava-os a todas as luzes. Voltava-os em todas as posições. Observava as suas características. Quedava-me a estudar as suas minúcias. Meditava sobre a sua conformação. Cismava sobre a alteração da sua natureza. Estremecia quando, na minha imaginação, lhes atribuía uma sensibilidade, e, até, embora desajudados dos lábios, uma capacidade de expressão moral. 

De Mademoiselle Sallé se disse que tous ses pas étaient des sentiments, e de Berenice eu cria mais seriamente que todos os seus dentes eram ideias

Ideias! — ah, eis o estulto pensamento que deu cabo de mim! Ideias! — ah, era, portanto, esse o motivo que me levava a ambicioná-los tão loucamente! Senti que só a sua posse poderia restituir-me a paz, que só por eles eu poderia recuperar a razão. 

Caiu a tarde, e eu continuava sumido no meu marasmo — cerraram-se as trevas da noite, dissiparam-se e alvoreceu um novo dia — envolveu-me o negrume de uma segunda noite, e eu continuava imóvel, enterrado numa poltrona daquela sala erma: o fantasma dos dentes nem um momento deixara de exercer sobre mim o seu terrível ascendente, pairando com a mais palpitante e hedionda nitidez por entre as luzes e as sombras da sala. 

Por fim, foi o silêncio do meu cismar cortado por um grito de horror e de espanto; após uma pausa, seguiu-se-lhe o ruído de vozes alteradas, de permeio com abafados gemidos de dor ou de pesar. 

Pus-me logo a pé e, abrindo uma das portas da biblioteca, deparou-se-me uma criada, banhada em lágrimas, que me disse que Berenice já não era deste mundo: fora acometida de epilepsia de manhã cedo, e agora, ao fechar da noite, estava a sepultura pronta para a acolher, e concluídos estavam já todos os preparativos para o seu enterro.



***

Achava-me sentado na biblioteca, e outra vez só. Parecia-me que acabava de despertar de um sonho confuso e perturbante. Sabia que era meia-noite e não ignorava que ao pôr do sol Berenice havia sido enterrada. Do lutuoso lapso de tempo decorrido no intervalo não tinha noção positiva nem pelo menos definida. Contudo, a recordação desse período era repleta de horror — horror mais horrível por ser vago, e terror mais terrível devido à sua ambiguidade. 

Era uma terrível página nos anais da minha existência, escrita de alto a baixo com obscuras, horrendas e ininteligíveis reminiscências. Esforcei-me por decifrá-las, mas debalde; e a cada momento, como o espírito de um som extinto, pareciam ressoar-me aos ouvidos as agudas e penetrantes vibrações de uma voz feminina. 

Alguma coisa eu havia praticado — que foi? Interroguei-me em voz alta vezes sem conta, e só os ecos da sala respondiam ao meu anseio: que foi? 

Na mesa ao pé de mim ardia uma lâmpada, e perto dela estava uma pequena caixa. Nada tinha que a destacasse, e muitas vezes a vira eu antes, pois pertencia ao médico de minha família; mas, como veio ela para ali, para cima da minha mesa, e por que motivo estremecia eu ao olhar para ela? 

Não atinava com explicação possível para estas coisas, e os meus olhos, por fim, posaram nas páginas abertas de um livro e numa frase nele sublinhada. 

Eram as palavras singulares, mas singelas, do poeta Ebn Zaiat: Dicebant mihi sodales si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas

Por que motivo então, ao relê-las, se me puseram os cabelos em pé, e nas veias se me gelou o sangue? 

Bateram de mansinho à porta da biblioteca, e, pálido como um cadáver, entrou em bicos de pés um criado. Tinha o olhar esgazeado de terror e falou-me numa voz trémula, roufenha e quase imperceptível. Que disse ele? — apenas lhe ouvi umas frases entrecortadas. 

Falou-me de um grito feroz que cortara o silêncio da noite; do alarme que atraíra toda a gente da casa; de pesquisas na direção do grito; e, finalmente, a sua voz adquiriu maior clareza ao falar de uma sepultura violada, de um corpo desfigurado, amortalhado e, todavia, ainda palpitante, ainda vivo! 

Apontou para a minha roupa: estava toda empastada de lama e sangue. Eu não falei, e ele pegou-me muito de leve na mão: estava toda marcada com impressões de unhas humanas! 

Chamou a minha atenção para um objeto qualquer que estava encostado à parede: olhei para ele e examinei-o durante alguns minutos — era uma pá... 

Soltei um grito e de um pulo atirei-me para a mesa e agarrei a caixa que nela estava pousada. Não a pude, porém, abrir; no meu tremor, ela escorregou-me das mãos e caiu pesadamente ao chão, partindo-se em bocados: do seu interior saltaram então, com estrépito, alguns instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e dois objetozinhos brancos que pareciam de marfim e que se espalharam em todos os sentidos pelo chão!...


(fim)


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 



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