sábado, 2 de junho de 2018

Edgar Allan Poe - Contos: Berenice (começo)

Edgar Allan Poe - Contos




Berenice
Título original: Berenice
Publicado em 1835






A miséria da terra é multiforme. Sobrepujando o vasto horizonte como o arco-íris, as suas cores são tão variadas como as deste — tão distintas e tão intimamente combinadas como elas. Sobrepujando o vasto horizonte como o arco-íris! Como foi que da beleza eu derivei um tipo de horror? — do símbolo da paz um símile de sofrimento? Mas, como, na ética, o mal é a consequência do bem, assim do prazer nasceu, com efeito, a dor. Ou a recordação da ventura passada é a amargura de hoje, ou as angústias presentes têm a sua origem nos êxtases porventura gozados.

O meu nome de batismo é Egeu; o de minha família, esse não o citarei. Todavia, não há no país torres mais antigas e mais venerandas do que o meu velho, severo, hereditário solar. Chamaram à minha linhagem raça de visionários; e em muitos e frisantes pormenores — no caráter do solar familiar — nos frescos do salão nobre — nas tapeçarias dos quartos de dormir — nos cinzelados de algumas traves de armaria — mas, mais especialmente, na galeria de pinturas antigas — na feição da sala da biblioteca — e, finalmente, na índole especialíssima do recheio da biblioteca, existe mais do que o suficiente para à evidência provar a justeza do asserto.

As recordações dos meus primeiros anos andam ligadas a esta sala e aos seus volumes — dos quais nada mais direi. Foi aí que morreu minha mãe. Foi ai que eu nasci. Mas é ocioso dizer que eu não havia vivido antes — que a alma não tem existência anterior. Negai-lo? — não discutamos o problema. Como eu estou convencido, não procuro convencer. Existe, porém, em mim uma lembrança de formas aéreas — de olhos espirituais e expressivos — de sons, musicais, conquanto tristes — uma lembrança que jamais se desvanecerá; uma recordação semelhante a uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconsistente, e que a uma sombra se assemelha ainda na impossibilidade em que eu me debato de me libertar dela, enquanto se me não apagar o sol da razão.

Foi nesta sala que eu nasci. Assim, acordando da longa noite do que parecia, mas não era, não-existência, para de chofre ser lançado em pleno país de fadas — num palácio de imaginação — nos peregrinos domínios do pensamento e do saber monásticos — não é de estranhar que eu olhasse em roda de mim com olhos espantados e ardentes, que passasse a minha infância imerso em livros e dissipasse a minha mocidade em sonho e devaneio; mas o que é de estranhar é que os anos fossem passando, que eu atingisse o apogeu da minha virilidade e me conservasse sempre a dentro dos muros do solar de meus pais. Que prodigiosa estagnação imobilizou as fontes da minha vida! Que prodigiosa inversão se operou no caráter do meu mais banal pensamento!

As realidades do mundo afetavam-me como visões, e como visões apenas, ao passo que as desvairadas ideias do país dos sonhos se tornavam, por sua vez — não o material da minha existência quotidiana — mas, na realidade, essa mesma existência exclusiva e absorvente.


***


Berenice e eu éramos primos e fomos criados juntos no meu solar paterno. Todavia, as nossas índoles divergiam absolutamente: eu era débil e doente e vivia imerso em sombras e melancolia — ela era ágil, grácil e exuberante de energia; a sua predileção era correr pelos montes — a minha, estudar no claustro; eu comprazia-me em confinar a minha vida dentro do meu coração e abismava-me de corpo e alma no mais intenso e penoso meditar — ela vagueava descuidosamente pela vida, alheia às sombras do caminho ou ao voo silencioso das horas de asas negras.

Berenice! — evoco o seu nome — Berenice! — e a esta palavra surgem das brumosas ruínas da memória mil tumultuosas recordações.

Ah! A sua imagem ergue-se diante de mim, radiosa e bela, como nos tempos idos da sua gracilidade e alegria! Oh! que beleza deslumbrante e fantástica! Oh! silfo por entre as matas de Arnheim! Oh! náiade por entre as suas fontes! — e depois... depois, tudo é mistério e terror, e uma história que se não devia narrar.

A doença — doença fatal — empolgou-a como um simum, e, mesmo enquanto os meus olhos a estavam contemplando, o espírito de transformação abateu sobre ela as suas asas, lançando as garras à sua inteligência, aos seus hábitos, ao seu caráter, e, transtornando até, da maneira mais terrível e subtil, a identidade da sua pessoa! Ai de mim! O flagelo chegou e partiu, e a vítima — onde estava ela? Eu não a conhecia — ou já não a conhecia como Berenice.

Entre o numeroso séquito de doenças derivadas daquela fatal e primária, que operou uma revolução tão horrível no moral e no físico de minha prima, pode mencionar-se, como a mais aflitiva e obstinada, uma espécie de epilepsia que não raras vezes rematava pela própria catalepsia — catalepsia que muito de perto se assemelhava a uma positiva dissolução, e da qual ela, na maior parte dos casos, se recobrava abruptamente.

No entretanto, a minha doença — pois disseram-me que um doente eu me devia considerar — ia acelerando os seus progressos, até, finalmente, assumir um caráter monomaníaco de forma nova e extraordinária — que foi, hora a hora, momento a momento, redobrando de intensidade e, por fim, obteve sobre mim o mais incompreensível ascendente. Esta monomania, se assim a devo classificar, consistia numa mórbida irritabilidade daquelas propriedades intelectuais que na metafísica se denominam atentivas. É mais do que provável que eu não seja compreendido; mas eu, na verdade, receio que não seja de modo algum possível dar ao leitor uma ideia adequada dessa nervosa intensidade de interesse com que, no meu caso, as faculdades da meditação (para não recorrer aos termos técnicos) se absorviam e se sepultavam na contemplação dos objetos mais banais do universo.

Quedar-me longas e repousadas horas com a atenção aferrada a alguma garatuja na margem ou no texto de um livro; passar a melhor parte de um dia de verão absorto no exame de uma sombra projetada sobre as tapeçarias ou sobre o soalho; abismar-me uma noite inteira na contemplação da chama de um candeeiro ou das brasas de um fogão; embeber-me dias seguidos no perfume de uma flor; repetir monotonamente alguma palavra vulgar, até o som, à força de repetido, deixar de acordar no meu espírito a mais ténue ideia; perder toda a noção de movimento ou de existência física, por meio de uma absoluta imobilidade física em que eu perseverava longa e obstinadamente — eis aí algumas das mais comuns e menos perniciosas extravagâncias, oriundas de uma condição especial das minhas faculdades mentais, não, decerto, absolutamente única no mundo, mas, sem dúvida, de dificultosíssima análise ou explicação.

Todavia, compreendei-me bem: a insólita, insistente e mórbida atenção assim excitada por objetos em si mesmo fúteis, não se deve confundir com aquela propensão meditabunda, comum a toda a humanidade e a que são mais particularmente atreitas as pessoas de imaginação ardente.

Nem sequer era, como a princípio se poderia supor, uma condição extrema, um exagero de tal propensão, mas originária e essencialmente distinta e diferente. Habitualmente, o sonhador ou entusiasta, interessando-se por um objeto não fútil, imperceptivelmente perde de vista este objeto num emaranhamento de deduções e sugestões derivadas umas das outras, até que, ao cabo da divagação, muitas vezes repleta de prazer, ele encontra o incitamento ou a causa primária do seu devaneio inteiramente apagada ou esquecida. No meu caso, porém, o primitivo objeto era invariavelmente fútil, embora assumisse, devido à minha desequilibrada visão, uma importância refrata e irreal. Poucas deduções fazia, se é que as fazia; e essas poucas refluíam pertinazmente ao objeto primitivo como a um centro. As minhas meditações nunca me causavam prazer; e, ao cabo do meu alheamento, a causa primária, em vez de se encontrar já longe do meu alcance, havia atingido aquele interesse sobrenaturalmente exagerado, que era a feição característica da doença. Numa palavra, as minhas faculdades intelectuais que mais particularmente entravam em ação eram, como eu disse atrás, as da atenção e não, como no caso do meditativo vulgar, as da especulação.

Os meus livros, nesta época, se na realidade não serviam para irritar o meu desarranjo mental, participavam, como facilmente se compreenderá, na sua índole imaginativa e incoerente, das qualidades características do próprio desarranjo. Recordarei, entre outros, o tratado do nobre italiano Coelius Secundus Curio, Amplitudine Beati Regni Dei; a grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus; e Tertuliano, De Carne Christi, em que a paradoxal sentença «Mortuus est Dei filius; credibile est quia ineptum est: et sepultus resurrexit; certum est quia impossibile est» ocupou ininterruptamente o meu tempo durante muitas semanas de laboriosa e infrutífera investigação.

Destarte parecerá que, desviada do seu equilíbrio apenas por coisas triviais, a minha razão se assemelhava àquele recife citado por Ptolomeu Hephestion, que, afrontando rijamente os ataques da violência humana e a fúria selvática dos ventos e das vagas, somente tremia ao ser tocado pela flor chamada asfódelo. E embora, ao pensador superficial, possa parecer indubitável que a alteração produzida pela doença na condição moral de Berenice, me proporcionasse muitos objetos para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza eu tive alguma dificuldade em explicar, o certo é que tal se não deu.

Nos intervalos lúcidos da minha enfermidade, o seu infortúnio afligia-me deveras, e, condoído profundamente daquela total submersão de uma mocidade tão formosa e tão gentil, muitas vezes meditei com amargura na maneira maravilhosa como nela se operara tão súbita e estranha revolução.

Estas reflexões, porém, não participavam da idiossincrasia da minha doença, e eram as mesmas que, em igualdade de circunstâncias, ocorreriam à massa ordinária da humanidade. Fiel ao seu caráter próprio, o meu desarranjo pascia-se nas mudanças menos importantes, mas mais flagrantes, operadas no aspecto físico de Berenice — na singular e horripilante deformação da sua identidade pessoal.

Durante os radiosos dias da sua beleza sem par, é mais que certo que eu nunca a amara. Na estranha anomalia da minha existência, os meus sentimentos nunca foram do coração, e as minhas paixões foram sempre da inteligência.

Na luz pardacenta das primeiras horas matutinas, por entre as sombras da floresta ao meio-dia, e no silêncio da minha biblioteca à noite, ela perpassara pelos meus olhos e eu vira-a — não como a Berenice real e viva, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser terreno, mas como uma abstração; não como uma coisa a admirar, mas a analisar; não como um objeto de amor, mas como tema da mais abstrusa e desconexa especulação.

E agora — agora eu tremia na sua presença e empalidecia ao vê-la aproximar-se; todavia, lastimando amargamente a sua desditosa e misérrima situação, eu evocava no meu espírito o pensamento de que ela havia muito tempo me amava e, num momento fatal, falei-lhe de casamento.

A época aprazada para as nossas núpcias ia-se, finalmente, aproximando, quando, numa tarde de inverno — uma tarde calma, nevoenta e de uma temperatura imprópria da estação — estando eu sentado na sala interior da biblioteca, levantei de repente os olhos e vi na minha frente Berenice!

Era a minha imaginação excitada — era o brumoso influxo da atmosfera — era o dúbio crepúsculo da sala — ou eram as roupagens cinzentas que a revestiam — o que lhe dava um contorno tão vacilante e tão vago? Eu não poderia dizê-lo.

Não proferiu palavra, e eu por nada deste mundo poderia pronunciar uma sílaba. Percorreu-me o corpo todo um gélido calafrio; oprimiu-me uma sensação de incomportável ansiedade; avassalou-me a alma uma mortificante curiosidade; e, enterrando-me na poltrona, ali permaneci algum tempo imóvel e sem fôlego, de olhos cravados no seu vulto.

Ai de mim! estava excessivamente magra, e em nenhuma linha do seu contorno se lobrigava o mínimo vestígio do que fora antes! Por fim os meus olhos ansiosos fixaram-se-lhe no rosto.

Tinha a fronte alta, muito pálida e de uma placidez singular; o cabelo, outrora negro de ébano, caía-lhe em parte sobre a testa, formando inúmeros caracóis de um amarelo gritante, que, no seu caráter fantástico, faziam um flagrante contraste com a melancolia predominante da fisionomia. Os olhos eram baços e sem vida e pareciam até desprovidos de pupila, e, involuntariamente, desviei deles os meus e pus-me a contemplar os lábios finos e arrepanhados. Entreabriam-se; e, num sorriso de significação peculiar, os dentes da transformada Berenice surgiram, lentamente, à minha vista. Prouvera a Deus que eu nunca os houvesse visto, ou que, havendo-os visto, morresse instantaneamente!


***

(continua)



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 


Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista (final)

Edgar Allan Poe - Contos: Berenice (fim)




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