quarta-feira, 9 de maio de 2018

Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista (final)

Edgar Allan Poe - Contos



A Entrevista
Título original: The Visionary
Publicado em 1834



(... continuação)


Inclinei-me agradecendo. O esplendor deslumbrante do salão, a música, os perfumes, a excentricidade inesperada do acolhimento e maneiras do meu hóspede haviam-me impressionado em demasia para que pudesse traduzir em palavras o apreço daquela exceção, que olhava como um fino cumprimento.

«Aí tem, tornou ele, erguendo-se para meter-me o braço e passearmos no salão, aí tem quadros de todos os tempos desde os gregos até Cimabué e de Cimabué até hoje. Muitas dessas telas — bem o vê — foram escolhidas sem a consulta dos entendedores; apesar disso formam todas uma tapeçaria conveniente para uma sala como esta. Aí tem mais esboços de artistas célebres no seu tempo, cujos nomes a atilada perspicácia das academias pôde atirar ao esquecimento e à minha retentiva. Que me diz, prosseguiu, encarando-me bruscamente, desta Madonna della Pietà? — Lembra Guido! Bradei com todo o entusiasmo de que era capaz; pois que estava examinando atentamente a tela indicada, que era de uma beleza surpreendente. Um Guido puro e verdadeiro! Onde descobristes vós o primor? Essa Virgem é em pintura o que a Vénus é em escultura!»

— Há! sim, volveu num tom de cismador. A Vênus? a Vênus formosa, a Vênus de Medieis, não é assim? A Vênus da cabeça pequena e dos cabelos de ouro? Uma parte do seu braço esquerdo (neste ponto desceu a voz de modo que me custou a ouvi-lo) e todo o braço direito são meras restaurações; segundo o meu modo de ver a atitude coquette deste braço direito representa a hipérbole da afetação...

Falai-me de Canova! Este Apolo não é mais que uma cópia, sem a menor dúvida, não poderia existir... Cego que eu ando, ainda não vinguei descobrir em que consiste a tão preconizada inspiração desta obra. Não posso deixar... lastimai-me... de preferir-lhe o Antinoo... Não foi Sócrates quem disse que o escultor acha no torço de mármore a sua estátua feita e acabada?

Sendo assim nem por isso Miguel Ângelo foi muito original no dístico:


Non ha l’ottimo artista alcuno concetto
Che un marmo solo in se no circonscriva.

— Tem-se notado, ou na maioria dos casos deveria notar-se, que sabe cada um discriminar entre as maneiras de um gentleman e as de um mariola, sem contudo se inferir disto que define precisamente onde está a diferença. Admitido que pudesse aplicar-se esta observação em toda a sua força às maneiras do meu hóspede, reconheci que mais aplicável ainda se tornava, nesta memorável manhã, ao seu caráter e temperamento moral. Havia uma certa particularidade do seu espírito, que parecia isolá-lo completamente de seus semelhantes, e que eu só bem definirei, designando-a como um hábito de meditação profunda e contínua, que o acompanhava nas suas ações mais triviais, perseguindo-o até no meio da conversação a mais jovial, misturando-se com as suas expansões de alegria, como estas víboras que vemos sair, enovelando-se, dos olhos das máscaras, que estão a gargalhar zombeteiramente nas cornijas dos templos de Persépolis.


— A despeito porém do tom meio jocoso meio sério em que falava de umas e outras coisas, não pude fugir a notar-lhe em muitos relanços, já nos gestos já no porte, uma espécie de trepidação, de satisfação nervosa, uma irritabilidade inquieta, que me pareceram estranhíssimas desde o princípio, e que a intervalos chegavam mesmo a ocasionar-me graves cuidados. Suspendia-se muitas vezes no meio de uma frase, cujas primeiras palavras denunciava ter esquecido, ajeitando-se como a escutar com uma profunda atenção, como se esperasse uma outra visita, ou ouvisse um soído que só pudesse existir na sua imaginação.

— Aproveitei-me desses momentos de devaneio, ou de aparente distração, para folhear a primeira tragédia nacional da Itália, o Orfeo, do poeta e sábio Poliziano, cuja obra admirável jazia sobre um divã; deparei com um trecho sublinhado a lápis. Homem nenhum será capaz de ler esta passagem, engastada no fim do terceiro ato sem experimentar o choque de uma emoção nova, assim como mulher nenhuma sem suspirar — apesar da imoralidade que a enrosca e abraça amorosamente. Uma página inteira estava humedecida de lágrimas recentes; sobre uma folha branca, esquecida no volume, se liam uns versos ingleses manuscritos, cujos caracteres tão pouco se aparentavam com a escritura um pouco fantástica do meu hóspede, que me custou bastante a conhecê-la.



I

Não sei se era teu seio ilha encantada...

Paraíso de canto,
De perfume, d’amor e formosura...
Se um templo à beira-mar ... um templo santo.
De luz e aroma cheio...
Não sei... pois sabe alguém sua ventura?
Mas dormia embalada no teu seio
Minh‘ alma, sossegada.


II

Um suspiro... uma prece...
Leva-os o vento pela noite escura!
Sonho! um sonho que esquece!
Mas não se esquece o sonho da Ventura!
Que fantasma nos brada avante avante,
Esquecer! esquecer?
O coração não quer!
Não quer ... não pode... luta vacilante!
Onde teve seu ninho e seu amor ,
Aí há de ficar , sombrio, incerto...
Há de ficar , pairar no céu deserto,
Ave eterna de dor!


III

— Nunca mais! nunca mais!
Que diz a onda à praia?
Há um destino
Triste partido, em seu gemer divino,
E um mistério infeliz naqueles ais!
— Nunca mais! nunca mais!
E o coração que diz às mortas flores
Do seu jardim d’amores?
Como a onda — jamais!


IV

Se eu pudesse sonhar?
Ah! posso ainda
Sonhar ... se for contigo!
Sempre! sempre a meu lado, imagem linda...
A noite é longa... vem falar comigo!
Estende os tem cabelos...
O céu da tua Itália, não, não brilha
Como brilham meus sonhos, vagos, belos,
Se me falas à noite em sonhos, filha!


V

Levaram-te! levou-te a onda dos mares!
A asa da águia! o vento!
Geme cativa — chora sem alento,
Pomba d’amor , saudosa dos teus lares!
Teu ninho agora, é triste, glacial...
Um leito conjugal!
Antes a terra escura, pobre escrava,
Aonde — sob a abóbada sombria
Tua alma os voos livres entendia...
E o coração amava!

Estes versos eram escritos em inglês, circunstância esta, que me não admirou sobremaneira, apesar da convicção que me tomara, sobre a ignorância desta língua pelo meu hóspede. Bem sabia a extensão de seus conhecimentos, e o estranho prazer, que o possuía, em os esconder, para me assombrar com sua descoberta. Confesso todavia que o lugar donde vinham datados estes versos me fez bastante surpresa.


A palavra Londres traçada no fundo da página havia sido raspada cuidadosamente, mas não tanto, que não enleiasse um olhar penetrante na sua decifração. Disse ter sido alguma surpresa: com efeito sabendo positivamente que a marquesa Afrodite habitara na Inglaterra antes do seu casamento, ocorrera-me um dia perguntar ao meu gracioso hóspede se porventura a conhecera em Londres. Declarou que nunca visitara aquela metrópole. Acrescentarei de passagem, que ouvira também dizer, mas sem prestar fé a um boato tão pouco verosímil, que o meu interlocutor não só nascera, senão que fora educado em Inglaterra.

— «Há um outro quadro que ainda não vistes», disse ele enfim, sem deixar transparecer o mínimo indício da indiscrição que acabava de praticar.

— Ao pronunciar aquelas palavras correu uma cortina e descobriu o retrato em pé da marquesa Afrodite. Nunca a arte humana reproduzira com igual esmero a beleza sobre-humana.

A etérea visão que me aparecera na noite precedente na escada do palácio ducal, levantou-se novamente diante de mim. Mas na expressão deste semblante, todo esplêndido de sorrisos, alvorecia, notável contradição! aquela vaga tristeza, que é companheira inseparável da beleza real. O braço direito cruzava-se no seio enquanto a mão esquerda, estendida, indicava um vaso de forma esquisita.

Um de seus pequeninos pés, único visível, parecia apenas roçar o chão e trás ela quase invisíveis na brilhante atmosfera, que envolvia e divinizava sua beleza, flutuavam duas asas tão delicadas e leves como só a fantasia é dado concebê-las. Depois de contemplar o retrato relanceei de novo o rosto do meu companheiro, e as palavras do poeta Chapman, no seu Bussy d’Amboise me acudiram aos lábios:


Il se tient là,
Comme une statue romaine! Il ne bougera pas!
Avant que la Mort l’ait transformé en marbre!

— Vamos! Bradou ele, voltando-se para uma mesa de prata maciça ricamente esmaltada, em que avultavam taças de cores esquisitas; e dois vasos etruscos de uma forma nada comum, iguais aos que o artista representara no primeiro plano do retrato da marquesa Afrodite, e transbordados, ao que me pareceu, de puro Johannisberg.


Vamos! toca a beber! É cedo; mas bebamos sempre!... Na verdade é ainda muito cedo, repetiu com acento devaneador, em quanto que um querubim, armado com um martelo de ouro feria o quadrante para anunciar a primeira hora depois do sol nado. Não importa! Ofereçamos uma libação a este pesado sol, cujos vividos fulgores estas lâmpadas e incensórios forcejam por mitigar.

Depois de me haver convidado a beber com ele, encheu e esvaziou o copo repetidas vezes.

— Sonhar! Continuou achegando-se a uma luz com um daqueles magníficos vasos etruscos já mencionados. Foram sempre a ocupação da minha vida os sonhos; donde como vedes cuidei em afofar um ninho propício aos devaneios. No centro de Veneza acaso poderia construir outro mais aprazível! Verdade é que me cerca um caos de ornatos arquiteturais.

A castidade da arte jónica magoa-se nestes embelezamentos antediluvianos, e as esfinges do Egito parecem deslocadas sobre um tapete de ouro.

Todavia só os espíritos tímidos poderão aquilatar de dislates, semelhantes aproximações. A conveniência local e sobretudo a unidade não passam de meros papões que aterram o homem e o desviam da contemplação do magnífico.

Tempo houve em que eu também me não eximia a estas influências de convenção; mas hoje esta loucura das loucuras varreu para bem longe. Tanto melhor! Semelhante a estes incensórios arábicos, o meu espírito contorce-se nas chamas; e o esplendor do quadro que se desprega ante meus olhos inicia-me nas visões miraculosas do país dos verdadeiros sonhos que breve hei de conhecer. No fim destas palavras calou-se de súbito, pendeu a cabeça sobre o seio, e pareceu escutar um rumor que eu não pude ouvir. Enfim erguendo-se apontando os olhos para o céu repetiu os versos do bispo de Clichester:


Attends-moi là! je ne manquerai pas
De te rejoindre au fond de ce creux vallon...

Um minuto depois, subjugado decerto pela força do vinho, deixou-se cair sobre um divã. Um passo rápido ecoou na escada e bateram à porta com violência. Acudi apressadamente com o intuito de prevenir nova pancada, quando um pajem da marquesa Afrodite se precipitou no salão, bradando em gritos entrecortados:


— «Minha senhora!... minha querida senhora!... envenenada! Envenenou-se! Ó bela, bela Afrodite!»

— Corri desatinado ao divã para acordar o dormente e comunicar-lhe a nova fatal. Mas os membros estavam hirtos e a boca lívida; a morte gelava-lhe os olhos ainda há pouco cheios de fulgor e vida.

— Horrorizado recuei estrebuchando na mesa de prata; a minha mão deparou com uma taça enegrecida, quebrada, e subitamente compreendi toda a terrível verdade.


Fim


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 



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